Liberação de armas tornou EUA mais violento

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Foto: Getty Images

Uma das falas que mais chamaram a atenção na já histórica reunião ministerial de Jair Bolsonaro em 22 de abril foi aquela em que o presidente defendeu a liberação geral de armas para os cidadãos como uma forma de resistir à opressão do Estado. Para os muitos críticos, o presidente inspirava a instalação de milícias nos moldes do fascismo italiano ou do chavismo venezuelano; para seus defensores, Bolsonaro bebeu na tradição dos colonizadores norte-americanos do direito ao armamento como contraposição ao poder dos governos.

Especialistas ouvidos por ÉPOCA balizam melhor esse debate. Segundo esses estudiosos, essa mesma defesa histórica de armar a população para defender a democracia levou, nas últimas décadas, à formação de autodenominadas milícias nos Estados Unidos — grupos armados de extrema direita que contestam, na marra, determinações de governantes.

Nas últimas semanas, alguns desses autoproclamados milicianos modernos americanos inclusive tomaram as ruas em desafio às ordens de confinamento baixadas por prefeitos e governadores. Algo muito parecido, portanto, com o que Bolsonaro defende. No Brasil, Sara Winter, uma ex-feminista transformada em ultradireitista ardorosa, imita estas práticas, e afirma querer fundar uma força paramilitar.

Disse o presidente na reunião, como mostrou o vídeo divulgado pelo Supremo Tribunal Federal: “Por isso que eu quero, ministro da Justiça e ministro da Defesa, que o povo se arme! Que é a garantia que não vai ter um filho da puta [pra] aparecer pra impor uma ditadura aqui! Que é fácil impor uma ditadura! Facílimo!”. E completou: “Um bosta de um prefeito faz um bosta de um decreto, algema, e deixa todo mundo dentro de casa. Se tivesse armado, ia pra rua. Por que que eu tô armando o povo? Porque eu não quero uma ditadura!”.

Nos Estados Unidos, a ideia de autodefesa coletiva remete ao século XVII, quando, antes da formação de um Exército, a defesa das comunidades cabia a todos os homens capazes de carregar armas, que formavam as chamadas “milícias”. Estes soldados compuseram o grosso da fileiras na Guerra da Independência em 1775, e sua vitória infundiu nos primeiros americanos uma grande confiança em suas milícias, e uma desconfiança em Exércitos centrais.

A questão inclusive influenciou a formulação da Constituição dos EUA, que afirmou em sua segunda emenda, ainda válida: “Sendo uma milícia bem regulamentada necessária para a segurança de um estado livre, o direito do povo de manter e portar armas não deve ser violado”.

“Este tipo de base cultural é necessário para entender a relação entre americanos e armas. Há uma tradição de hostilidade muito forte ao governo central, que é considerado muito poderoso, com uma tendência a abusar do poder.

E, se o governo fizer isso, o último sistema de defesa são os próprios cidadãos”, afirma Jeffrey Bale, especialista em extremismo do Instituto Middlebury de Estudos Internacionais, em Vermont. Bale acrescenta que “esta é uma noção romântica, porque, se o governo destacasse seus militares domesticamente para impor sua autoridade, seria muito difícil resistir”.

Ainda assim, há uma longa tradição paramilitar nos EUA, que ganhou fôlego renovado na década de 90, quando surgiram o chamado “Movimento das Milícias”, grupos que faziam alusão a à história do país como forma de obter legitimidade.

Diversos fatores contribuíram para o surgimento destes paramilitares, como a aprovação de leis contra a venda armas semiautomáticas em 1994 e dois episódios, em Ruby Ridge, Idaho, em 1992, e Waco, Texas, em 1993, em que forças do governo adotaram táticas agressivas contra grupos armados.

Em meados da década de 1990, os grupos de “milicianos modernos” estavam presentes em todos os 50 estados, e calcula-se que contassem com entre 20 mil e 50 mil membros. As estimativas dos membros atuais variam muito, entre 10 mil e 80 mil integrantes.

Segundo a Liga Anti-Difamação (ADL), ONG judaica baseada em Nova York, 42% dos 150 ataques terroristas provocados pela extrema direita nos EUA entre 1993 e 2017 foram cometidos por ativistas antigoverno, incluindo membros do Movimento das Milícias. Alguns foram presos planejando atacar prédios do governo e bases militares, em ataques solitários ou coletivos.

Para Mark Pitcavage, pesquisador da ADL especialista em extrema direita, a paranoia antigoverno e as teorias da conspiração são a principal característica destes milicianos atuais. “Eles não se opõem a nenhuma lei em particular, mas acreditam que o governo inteiro é ilegítimo. Entendem que há uma Nova Ordem Mundial, que impôs um governo globalista, que rouba a liberdade das pessoas. Os Estados Unidos seriam o último bastião da liberdade, a ser defendido. Por vezes, também dizem que o governo irá suspender a Constituição, após um ataque terrorista falso ou pandemia”.

Estes movimentos, segundo Pitcavage, “tiveram problemas nos últimos anos, porque apoiaram muito Trump, e é difícil ser um extremista antigoverno quando o presidente é um aliado. Alguns se focaram, assim, na esquerda, ou em imigrantes”.

A pandemia permitiu que o movimento ganhasse nova energia. Após prefeitos e governadores decretarem quarentena, os milicianos americanos viram novos inimigos nas forças locais., e passaram a frequentar os protestos contra o isolamento social. A ação mais dramática aconteceu no dia 30 de abril, quando o Congresso de Michigan foi ocupado por centenas de manifestantes, incluindo vários homens de roupas camufladas e rifles automáticos nas mão.

Aqui no Brasil, ganhou fôlego no início dos anos 2000 a argumentação desses paramilitares — que não têm relação direta com as milícias que atuam em cidades como o Rio, formadas por policiais e ex-policiais para extorquir cidadão em troca de uma pretensa segurança.

Diretora de programas do Instituto Igarapé, Melina Risso percebe na fala do presidente uma “importação do discurso americano”. “Essa não é uma atitude nova, e vem de grupos armamentistas brasileiros que são muito próximos à National Rifle Association (NRA). Ela começa em 2003, com o Estatuto do Desarmamento, e se intensifica a partir de 2005, com o referendo sobre as armas. Importam um discurso que vem um contexto de violência totalmente diferente do brasileiro”.

O problema, no entanto, existe há décadas por aqui. Uma das primeiras expressões de milícias extremistas no Brasil foram as integralistas lideradas por Gustavo Barroso, na primeira metade do século XX. “Por um lado, as milícias integralistas queriam exteriorizar a prática fascista, ostentar o aspecto paramilitar como se fosse poder político. Além disso, serviam para embates com adversários”, afirma Odilon Caldeira Neto, professor de História Contemporânea da UFJF especializado em extremismo.

Este também foi o Comando de Caça aos Comunistas, fundado na Faculdade de Direito da USP em 1963, que, segundo estimativas, chegou a reunir só em São Paulo 5 mil membros. De acordo com Gustavo Esteves Lopes, historiador do tema hoje na Universidade de Coimbra, muitos de seus membros acabaram participando de órgãos de repressão da ditadura. “Começaram como uma milícia paramilitar que fazia arruaça, depois participaram da Operação Bandeirante, e vários depois foram para o DOI-CODI”.

Na atualidade, avalia Caldeira, há pequenas cédulas neonazistas, que, desde a década de 90, praticam treinamentos militares no país. Isso fortalece “não só uma prática política, mas também um sentimento de camaradagem”. O pesquisador diz que além do sentimento nacionalista, os anima “a noção de que participam de um fenômeno da extrema direita transnacional”.

Este foi o impulso de Sara Winter, que, antiga neonazista, após se converter ao feminismo, voltou à extrema direita, e diz que pretende criar um novo grupo paramilitar no Brasil, que intitula “Os 300 do Brasil”. Durante a pandemia, antes de ser alvo da Polícia Federal na última quarta-feira, ela montou um acampamento de cerca de 20 barracas em frente ao Congresso, afirmou ter treinados 150 pessoas no “primeiro treinamento de guerrilha da direita” e que pretendia “ucranizar o Brasil”.

A menção à Ucrânia se deve a 2014, quando, diante da intervenção militar russa, houve a formação de grupos paramilitares para resistir à invasão. Segundo Vyacheslav Likhachev, que pesquisa extremismo em Kiev, remanescentes destes grupos hoje atuam como as milícias cariocas, isto é, com extorsão e corrupção.

“Há formações paramilitares formadas por veteranos de guerra que se tornaram instrumentos para se obter as coisas pela violência. O governo é fraco, há muitas armas disponíveis por causa da guerra e muitas vezes é mais fácil conseguir as coisas pela força. Eles vendem suas armas e seus músculos”, afirmou.

Este foi, também, o caso dos “Colectivos”, na Venezuela, onde hoje operam dezenas de grupos paramilitares. Após uma tentativa de golpe em 2002, Hugo Chávez decidiu que precisava de uma força de segurança independente das Forças Armadas. Em 2006, começou a fortalecê-las cada vez mais, oferecendo rádios, motocicletas em armas. Em alguns bairros de Caracas, a polícia foi substituída, e a segurança foi transmitida aos grupos. Sua função, contudo, vai muito além da vigilância.

“Elas começaram de uma forma muito pacífica, mas uma de suas tarefas hoje é manter a disciplina política. Se há manifestações em Caracas, irá aparecer um grupo de 50 ou 60 motoqueiros, geralmente com armas escondidas, para intimidar. Também podem bater nas pessoas, e, em grandes manifestações, como em 2014, mataram várias pessoas”, afirmou Phil Gunson, do International Crisis Group (ICR) em Caracas.

Segundo Gunson, criadas com objetivos de evitar um golpe, os paramilitares da Venezuela hoje se dedicam a uma “combinação entre crime política e política”. “Elas não são todas iguais entre si, mas variam do polo que vai do tráfico de drogas à intimidação política. Às vezes dominam algum territórios, ou o sistema de distribuição de alimentos. Quando você garante impunidade, armas e liberdade de ação para alguém, essa pessoa começa a agir como quiser”.

Época