Mudança de juiz de Flávio é irregular

Todos os posts, Últimas notícias

Foto: Pablo Jacob / Agência O Globo

Para advogados e juristas ouvidos pelo GLOBO, a decisão que tirou a investigação contra o senador Flávio Bolsonaro (Republicanos-RJ) da primeira instância e a levou para o Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Rio (TJ-RJ) não seguiu a jurisprudência construída pelo Supremo Tribunal Federal (STF) após um parecer, em 2018, que limitou o foro por prerrogativa de função a crimes relacionados ao exercício do mandato. Especialistas também alertam para uma situação jurídica “complexa” caso o Ministério Público do Rio (MP-RJ) tente recorrer da decisão, que tirou o caso da alçada do Grupo de Atuação Especializada no Combate à Corrupção (GAECC), responsável pela operação que prendeu o ex-assessor de Flávio, Fabrício Queiroz, e também por ações de busca e apreensão e quebras de sigilo.

A defesa de Flávio Bolsonaro alegou, em habeas corpus acolhido por 2 votos a 1 pelos desembargadores da 3ª Câmara Criminal do TJ-RJ, que a investigação da prática de “rachadinha” com participação de Queiroz diz respeito a supostas situações ocorridas durante o mandato como deputado estadual. Os advogados de Flávio argumentaram que o caso deveria ser conduzido no Órgão Especial do TJ-RJ, formado por 25 desembargadores e indicado como foro para deputados estaduais. A 3ª Câmara Criminal aceitou o argumento, mas manteve as decisões do juiz Flávio Itabaiana, da 27ª Vara Criminal. A defesa de Flávio, no entanto, já afirmou que pedirá a nulidade das decisões na primeira instância, já que o caso passa a ser investigado pelo procurador-geral de Justiça, Eduardo Gussem.

Em 2018, o plenário do STF decidiu restringir o foro privilegiado a crimes relacionados ao mandato, e apenas durante o exercício do cargo. Para Ricardo Prado, presidente do Movimento do Ministério Público Democrático e mestre em Direito Processual Penal, a jurisprudência da Corte tem sinalizado nos últimos anos que, cessado o mandato, cessa também o foro por prerrogativa de função

— Flávio não era senador, portanto, a competência originária não é do STF. Como o mandato de deputado estadual dele já está extinto, isso também extingue a competência do órgão especial do TJ — opina Prado.

O STF já criou jurisprudência com este entendimento. No início de 2019, por exemplo, o ministro Marco Aurélio Mello enviou à primeira instância um inquérito por corrupção e lavagem de dinheiro contra Aécio Neves (PSDB-MG), eleito deputado federal no ano anterior. Mesmo que o cargo de deputado conferisse foro privilegiado no Supremo, o entendimento de Marco Aurélio é que o inquérito dizia respeito a ações relacionadas ao mandato de Aécio como senador, que havia se encerrado no fim de 2018.

— Pela jurisprudência do STF, ele (Flávio) perde o foro quando deixa de ser deputado. Pela decisão do Supremo de maio de 2018, o caso ficaria na primeira instância — afirmou o professor da FGV Thiago Bottino.

Não existe, porém, consenso sobre o assunto. Um advogado criminalista ouvido pelo GLOBO, que preferiu não ser identificado por não ter lido a íntegra da decisão dos desembargadores do TJ-RJ nesta quinta-feira, entende que a decisão do STF de 2018 tinha o objetivo de evitar o “sobe e desce” de processos por mudanças de cargo, e não de retirar a prerrogativa de foro em crimes ligados ao mandato cometidos por alguém que ainda tenha posição na administração pública.

— O foro existe para que a Justiça seja aplicada sem influências, pressões. A situação dele (Flávio) é um pouco híbrida, por se tratar de um senador investigado por suposto crime de quando era deputado. Mas na primeira instância é que não deveria ficar — diz o advogado.

Já para o ex-procurador da República Daniel Sarmento, especialista em Direito Constitucional e professor da Uerj, a investigação da “rachadinha” teria que descer à primeira instância mesmo se tivesse começado durante o mandato de Flávio Bolsonaro como deputado estadual. O inquérito, aberto no fim de 2018, após a eleição de Flávio para o Senado, só incluiu o senador oficialmente como alvo em maio de 2019, quando ele teve seu sigilo fiscal e bancário quebrado por decisão da Justiça.

— A decisão do TJ é totalmente incompatível com o que disse o Supremo. Quando a pessoa deixa de exercer a função pública, ela perde este foro por prerrogativa de função. Não tem como substituir essa prerrogativa. Isso, inclusive, atrapalha e pode ter um efeito muito ruim para investigações — avaliou.

Especializado na área criminal, o advogado Gustavo Badaró lembra que, segundo o STF, o foro privilegiado só se mantém caso a fase de instrução processual já tivesse terminado antes da perda de cargo, o que não é o caso de Flávio. Segundo Badaró, um entendimento como o adotado pela defesa de Flávio, de que o foro de deputado estadual se mantém mesmo após o fim do mandato, poderia ter levado à anulação da condenação do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva no caso do sítio de Atibaia, relacionado ao exercício do mandato. Lula foi julgado e condenado em primeira instância, pelo juiz Sérgio Moro, em decisão mantida neste ano pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4).

Para o advogado, embora a decisão em relação a Flávio Bolsonaro tenha descumprido norma do STF, o MP do Rio não pode recorrer à Corte porque o estabelecimento do foro para deputado estadual é regulado por leis estaduais.

— O teto é o próprio TJ-RJ. Como não é possível um recurso diretamente ao STF, um alternativa seria recorrer ao próprio TJ-RJ alegando a incompetência do tribunal e, em caso de negativa, buscar um mandado de segurança no STJ (Superior Tribunal de Justiça). Mas é uma situação complicada, já que recorrer pode atrasar o processo — disse Badaró.

O Globo