Ocupação de UTIs não serve para medir pandemia

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Foto: AFP

A rotina atual do infectologista Guilherme Pivoto nem de longe lembra o sufoco que passou no início de maio em Manaus.

O sistema de saúde da capital do Amazonas entrou em colapso ao ser atingido em cheio pelo novo coronavírus.

Mas os dias de pacientes pelos corredores, doentes ao lado de corpos e covas rasas nos cemitérios parecem ter ficado para trás.

“A maior UTI do SUS daqui, com 40 leitos, deu alta aos últimos casos de covid-19, e o hospital de campanha vai fechar”, conta Pivoto.

Faz três semanas que os pacientes com covid-19 e insuficiência respiratória se tornaram raros nas unidades de tratamento intensivo (UTI) dos três hospitais públicos em que o infectologista trabalha.

“Quem é internado com coronavírus vem por causa de outro motivo — levou um tiro ou vai fazer uma cirurgia —, faz o teste para o coronavírus e dá positivo.”

A BBC News Brasil conversou na última semana com médicos de algumas das cidades brasileiras mais atingidas pela pandemia e ouviu histórias parecidas de como eles notaram algum alívio nas UTIs dos seus hospitais.

“A demanda caiu bastante. Dos nossos 64 leitos para covid-19, já desativamos 21”, disse uma médica que trabalha no Hospital Geral de Fortaleza, o maior da rede estadual do Ceará. “Mas, antes disso, já tínhamos notado uma diminuição das transferências para a UTI.

“Uma UTI e uma ala para covid-19 foram fechadas, e o que restou está com metade dos leitos vagos”, diz uma médica que trabalha em um hospital de uma das maiores redes privada do país no Rio de Janeiro. “Toda a rede reduziu leitos.”

Mais médicos têm compartilhado relatos como esses pelas redes sociais e grupos de WhatsApp. São sinais de que, quase quatro meses após a confirmação do primeiro caso no país, o rumo desta crise pode estar finalmente começando a mudar.

Mas essa taxa, pelo que a BBC News Brasil apurou, não é exatamente o melhor critério para medir a gravidade de uma pandemia, especialmente quando se leva exclusivamente a ocupação de UTIs em consideração.

Há casos em que esse índice simplesmente não reflete o agravamento de uma epidemia, como mostra o exemplo de Porto Alegre.

O número de pacientes com covid-19 internados em UTIs na capital gaúcha estava relativamente estável desde o começo de abril, variando entre 42 e 49 leitos ocupados.

Mas esse total começou a subir na primeira semana de junho, depois de a capital gaúcha flexibilizar as medidas de quarentena, em 20 de maio.

“Está acontecendo o que a gente esperava. Estamos colhendo o que plantamos com a flexibilização, que fez o número de internações disparar”, diz Eduardo Sprinz, chefe do serviço de infectologia do Hospital de Clínicas de Porto Alegre.

As internações chegaram em 22 de junho ao seu nível mais alto até agora: 102 pessoas estavam internadas em UTIs por causa do novo coronavírus, segundo a Prefeitura, que decidiu dar um passo atrás na reabertura da economia por causa disso.

Esse número representa 121% a mais do que o registrado em 5 de junho, último dia antes da escalada de internações. Havia então 46 pacientes com covid-19 em UTIs.

Mas a taxa de ocupação de UTIs naquele dia, de 74,7%, foi maior do que os 72,2% registrados em 21 de junho, segundo dados da Secretaria Estadual de Saúde do Rio Grande do Sul.

Isso ocorre porque Porto Alegre tem duas vezes mais leitos de UTI para pacientes que não têm covid-19 do que para aqueles com coronavírus. Mas a ocupação dos leitos para outras doenças é cinco vezes menor, o que puxa a média geral para baixo.

Um fenômeno parecido vem ocorrendo no oeste catarinense, aponta o epidemiologista Lúcio Botelho, professor do Departamento de Saúde Pública da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC).

“A incidência de casos está altíssima, a epidemia está se espalhando, mas a ocupação de leitos está baixa”, diz Botelho.

Segundo o epidemiologista, uma explicação possível para isso é que a maior parte dos pacientes infectados pelo coronavírus na região são jovens adultos.

“Neles, a doença costuma ser menos grave, por isso pode haver menos internações”, diz Botelho.

Taxa pode cair com a expansão do número de leitos
Usar apenas a ocupação de leitos para avaliar a gravidade da pandemia também não é recomendado porque a taxa pode cair sem que o número de pacientes internados tenha diminuído de fato.

Isso ocorre “pelo simples fato de que o total de leitos disponíveis foi ampliado” em uma cidade ou Estado, diz Domingos Alves, professor da Faculdade Medicina da Universidade de São Paulo (USP) em Ribeirão Preto.

“Há governadores e prefeitos que têm recorrido a esse truque para dizer que a situação melhorou e fazer a reabertura do comércio, mas, quando você olha, o número de casos está aumentando”, afirma o pesquisador, que é colaborador do portal Covid-19 Brasil, que monitora a pandemia no país.

Um levantamento da Associação Brasileira de Medicina Intensiva (Amib) aponta que, em março, quando a pandemia havia acabado de chegar ao Brasil, o país tinha 45.848 leitos de UTI, dos quais 22.844 no Sistema Único de Saúde (SUS).

O governo federal afirma que, de abril até a primeira semana de junho, foram abertos 7.513 leitos de UTI no SUS, uma expansão de 33% da capacidade.

“Mas vai saber se estes leitos estão ativos, se tem gente contratada, se tem respirador…”, diz Alves.

Suzana Lobo, presidente da Amib, ressalta também que esse tipo de estratégia tem um limite, porque o número de profissionais capacitados para atender essas unidades é limitado.

“Em muitos lugares, já foi atingido o limite máximo da expansão da equipe. Se o número de casos aumentar, vai ter um colapso mesmo que haja leitos, porque não vai ter equipe especializada”, afirma Lobo.

O que diz a OMS?
“A ocupação de leitos não pode ser como o grande parâmetro, ainda mais se for o único analisado”, diz Lúcio Botelho, da UFSC. “É preciso observar um conjunto de indicadores.”

É o que aponta a Organização Mundial da Saúde (OMS) em um documento publicado em 12 de maio, no qual foram divulgados os critérios para dizer se uma epidemia está ou não controlada.

O principal é ter uma taxa de reprodução do vírus, conhecida também como Rt, abaixo de 1. Isso significa que cada pessoa contaminada é capaz de infectar menos de uma outra. Só assim o número de novos casos começa a cair.

A OMS recomenda ainda:

. uma redução de 50% ao longo de três semanas na incidência de casos confirmados e prováveis;

. uma taxa de menos de 5% de testes positivos para covid-19 por duas semanas, quando há uma ampla testagem;

. que pelo menos 80% dos novos casos sejam ligados a infecções já existentes e focos identificados da doença;

. uma queda de mortes entre casos confirmados e prováveis por três semanas.

E, por fim, um declínio do número de hospitalizações ou internações em UTI de casos confirmados ou prováveis — mas isso deve ocorrer por ao menos duas semanas.

Esse período corresponde ao tempo máximo de incubação do novo coronavírus, ou seja, quantos dias uma pessoa pode levar para ter sintomas depois de ser infectada.

É o tempo mínimo para avaliar alterações nas tendências dos indicadores da pandemia, diz a OMS, e identificar que foram mudanças consistentes e não apenas oscilações temporárias.

Domingos Alves, da USP, aponta para o caso de outra cidade para explicar porque a queda da ocupação que vem sendo observada em algumas capitais não indica que a pandemia está se abrandando no país.

Severínia é um município de apenas 15 mil habitantes, localizado a 450 km de São Paulo. Ali, não havia sido registrado um único caso sequer de covid-19 até a primeira semana de junho. Agora, já são 23.

Assim como em Severínia, a pandemia só chegou a vários outros municípios do interior paulista na últimas semanas. E a lotação de UTIs nas maiores cidades desta região, como Campinas, Ribeirão Preto, Sorocaba e Barretos, se esgotou ou ficou muito próxima de se esgotar.

O mesmo está acontecendo em outros Estados do Sudeste, do Centro-Oeste e do Sul, diz Suzana Lobo. “O que temos visto é um alívio nas capitais, como São Paulo ou Manaus, mas uma interiorização muito grande da pandemia”, afirma a presidente da Amib.

É o que vem ocorrendo no Amazonas, por exemplo. Agora, quem chega com covid-19 aos hospitais de Manaus vem sobretudo do interior, diz o infectologista Guilherme Pivoto. “Antes, era um ou outro. Hoje, são uns três ou quatro por dia”, conta o médico.

Esse fenômeno cria um desafio adicional para tratar os doentes e evitar ainda mais mortes, sobretudo em Estados onde as UTIs estão concentradas na capital.

Muitas vezes, quem vive no interior precisa viajar muitos quilômetros para ser internado neste tipo de unidade. “A pessoa morre antes de conseguir chegar. Ou, se não tem transporte para fazer essa viagem, morre em casa”, diz Alves.

A interiorização da pandemia é um dos motivos pelos quais Jaques Sztajnbok, supervisor da UTI do Instituto de Infectologia Emílio Ribas, que é um hospital de referência para o tratamento de covid-19 na cidade de São Paulo, não está confiante de que o pior já passou.

A taxa estava acima de 90% na Grande São Paulo em meados para o fim de maio. Mas, no último dia 21, havia caído para 69,3%.

Sztajnbok diz ter sentido um certo alívio nestas últimas semanas. “Ainda estou com minha UTI lotada, mas a pressão por vagas diminuiu”, diz o médico.

Antes, os funcionários que fazem a gestão destes leitos no seu hospital estavam sempre presentes na unidade. “Mas, noutro dia, fui eu que tive que ir atrás deles para informar que estava com vagas abertas.”

Mas Sztajnbok ressalta que a taxa de ocupação de UTIs é muito dinâmica — mais do que o padrão de comportamento de uma pandemia. “A taxa é uma agora, mas amanhã pode ser outra”, diz ele.

Sua expectativa é de que, assim como em Porto Alegre, ocorra, em breve, um aumento das internações com a flexibilização das medidas de isolamento em São Paulo, a cidade brasileira mais afetada pelo coronavírus.

“O que estamos vivendo agora é um reflexo do isolamento de 15 dias atrás. Estamos vivendo uma calmaria porque estamos no olho do furacão, mas isso deve mudar com todo mundo voltando às ruas.”

BBC