Por que Bolsonaro toma leite?

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Foto: Reprodução

Desde que foi criado pela Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO) há 19 anos, o Dia Internacional do Leite — comemorado nesta segunda-feira, 1º de junho — não havia repercutido tanto no Brasil como neste ano. Um dos seis produtos mais importantes para a agropecuária do país segundo a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa), o leite foi alçado ao centro do debate nas redes sociais durante o último fim de semana, após o presidente Jair Bolsonaro aparecer bebendo um copo puro do líquido em uma transmissão ao vivo na noite de quinta-feira. O motivo foi a associação de usuários da rede à utilização do leite como um símbolo do supremacismo branco por parte de grupos de extrema-direita dos Estados Unidos.

A repercussão, grande parte encampada por pesquisadores das áreas de Antropologia e História, fez com que Bolsonaro viesse a público afirmar que utilizou a live para cumprir o “Desafio do Leite”, proposto pela Associação Brasileira de Produtores de Leite (Abraleite). Segundo o presidente, aquela teria sido uma demonstração de apreço à importância do produto para o agro nacional, compartilhada por aliados durante a transmissão, na qual também apareceram bebendo leite o presidente da Caixa Econômica Federal, Pedro Guimarães, e o secretário de Agricultura e Pesca, Jorge Seif Júnior. Bolsonaro foi desafiado pela ministra da Agricultura, Tereza Cristina, a enaltecer o líquido. Ela, por sua vez, já havia gravado vídeo semelhante a pedido de Geraldo Borges, presidente da Abraleite. O objetivo da associação era, conforme registrado em página institucional nas redes sociais, promover a comemoração do dia 1º de junho.

— Eu gosto e tomo leite de vez em quando. Tomo sempre, dia sim, dia não, tá certo. E vamos ajudar o consumo de leite no Brasil. Nada de consumir refrigerante — afirmou Bolsonaro durante a transmissão.

A discussão sobre a atitude do presidente remete às fileiras americanas mais radicais, entre as quais há um movimento conhecido como “Alt-Right” (o equivalente a “Direita Alternativa”, em português) que utiliza o leite como forma de exaltar a percepção preconceituosa de que os brancos seriam aos demais, sobretudo aos negros.

Há três anos, um vídeo no qual integrantes desse movimento apareceram bebendo leite em um local público, enquanto brindavam, chamou a atenção de estudiosos dos Estados Unidos para o tema. As análises das publicações e discursos do grupo compreendeu que, além da cor do leite, o motivo para que ele ajude a reforçar a ideia do supremacismo reside na distorção de artigos acadêmicos que mostram disparidades nas características genéticas de cada pessoa. Conforme registrou o jornal The New York Times em 2018, pesquisadores têm percebido nos últimos anos que os materiais que escreveram sobre o tema vinham sendo utilizados erroneamente para embasar campanhas racistas. Nesse caso, o que aconteceu foi a disseminação de uma hipótese de que pessoas brancas poderiam digerir a lactose presente no leite com mais facilidade do que pessoas de outras cores de pele durante a fase adulta da vida.

Foi por causa desse episódio que estudiosos brasileiros passaram a sugerir que Bolsonaro teria sinalizado apoio a pessoas de sua base de apoio que tenham pensamentos em comum com supremacistas brancos dos Estados Unidos. Há, inclusive, um conceito que denomina acenos feitos para toda a população e que podem ser lidos de uma maneira específica por um ou mais nicho: “dog whistle” (“apito de cachorro”, em tradução livre). No entanto, o presidente, em posicionamento breve, chamou de “fake news” uma acusação nesse sentido feita pelo candidato derrotado ao Palácio do Planalto em 2018, Fernando Haddad (PT). O deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) chegou a publicar uma propaganda de uma marca de leite protagonizada pelos atores Taís Araújo e Lázaro Ramos com a intenção de ironizar o debate, uma vez que o casal é negro. Outros aliados de primeira hora do bolsonarismo, como a ministra Damares Alves (Mulher, Família e Direitos Humanos) e o blogueiro Allan dos Santos, também produziram vídeos em que aparecem bebendo leite.

Habituado a se debruçar sobre a apropriação de símbolos históricos pela direita nacional, Odilon Caldeira Neto, professor de História Contemporânea da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF), conversou com o Sonar. Integrante do Observatório da Extrema Direita (OED), o pesquisador sustenta que não é possível afirmar se houve uma combinação anterior à transmissão de Bolsonaro que envolvesse a utilização do leite como um símbolo em profundidade. A observação dele é que a repercussão nas redes sociais aconteceu após a denúncia de que o copo de leite poderia ser uma mensagem cifrada às correntes mais radicais.

Uma ponderação necessária, na opinião de Caldeira Neto, é referente à falta de um posicionamento mais firme de Bolsonaro no sentido contrário às ideias do supremacismo branco. Para ele, pode ser “vantajoso” o presidente não interromper o fluxo desse debate, uma vez que o desvio serve para diminuir o impacto de outros tópicos negativos para o governo, como a pandemia da Covid-19.

— Se no primeiro momento temos uma dubiedade (sobre a possibilidade de ser uma campanha), passa-se a ter em seguida o leite como resposta à acusação, encampada por apoiadores. É um exemplo do uso das pautas do dia como instrumento de agitação de alguns setores bolsonaristas, em especial aqueles que se inspiram em tendências como a Alt-Right. Não deixa de ser uma forma de pautar o debate, diminuindo o impacto de outros assuntos, como o aumento do número de mortes por Covid-19 — afirma o pesquisador.

O Globo