Protestos contra Bolsonaro estão só começando

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Foto: André Penner/AP Photo

Parte da sociedade civil decidiu reagir coletivamente ao governo de Jair Bolsonaro, numa articulação ainda limitada ao mundo virtual por conta das contingências da pandemia de covid-19. Nos últimos três dias, uma onda de manifestos e movimentos começou a se articular pelo país com o objetivo central de barrar qualquer risco de ruptura institucional demonstrando que, se o presidente tem base resiliente, em torno de 30% de apoiadores, há um gigantesco segmento, de quase 70% dos brasileiros, que discorda frontalmente das atitudes do presidente e de sua gestão. A crítica a Bolsonaro no comando do país, sobretudo durante a pandemia, e a defesa intransigente à democracia são as tônicas centrais dos manifestos, protestos e movimentos suprapartidários.

Nas ruas, apesar do risco do coronavírus, surgiram os primeiros movimentos, em São Paulo e no Rio, com integrantes de torcidas organizadas de times de futebol. Na avenida Paulista, os protestos uniram torcedores do Corinthians, Palmeiras, São Paulo e Santos pela democracia e com hinos “contra o fascismo”. A manifestação começou pacífica, mas terminou em confronto com a Polícia Militar e grupos bolsonaristas. No Rio, o cenário se repetiu em Copacabana, com torcedores do Flamengo que se depararam com apoiadores de Bolsonaro, mas não houve confronto e violência física.

O “Movimento Estamos Juntos” é o que mais chama a atenção e invoca a organização social que levou o país ao Movimento das Diretas Já, iniciado em maio de 1983, com o ápice nos comícios de 84. “Como aconteceu no movimento Diretas Já, é hora de deixar de lado velhas disputas em busca do bem comum. Esquerda, centro e direita unidos para defender a lei, a ordem, a política, a ética, as famílias, o voto, a ciência, a verdade, o respeito e a valorização da diversidade, a liberdade de imprensa, a importância da arte, a preservação do meio ambiente e a responsabilidade na economia”, diz trecho do manifesto, que se iniciou com apenas 1,5 mil assinaturas, divulgado nos principais jornais do país.

A adesão surpreendeu os organizadores. Até o fechamento desta edição a adesão superava 163 mil pessoas. O site teve mais de 8 milhões de acessos, mas muitos dos apoiadores não conseguiram assinar. Os organizadores apuram se houve ataque cibernético ou apenas explosão de demanda.

O Estamos Juntos surgiu inicialmente a partir do incômodo da classe artística com o desprezo do governo Bolsonaro ao tema e após a entrevista da ex-ministra Regina Duarte na CNN Brasil. Diálogos entre roteiristas, escritores, atores e intelectuais foi se intensificando até que na sexta-feira o grupo de 50 organizadores finalizou o manifesto. A rapidez com que se espalhou nas redes levou os organizadores a articular ações concretas de mobilização. A primeira será um festival, no sábado.

“Colocar as pessoas juntas é um conceito. Vamos unir forças e trocar ideias. Tivemos hoje [domingo] mais um dia horrível. O desespero provocou a tomada de consciência da sociedade”, definiu a roteirista Carolina Kostcho, presidente da Associação Brasileira de Autores e Roteiristas (Abra), uma das organizadoras do movimento.

O Estamos Juntos une profissionais de diversas áreas, abrindo espaço também para políticos de diferentes matizes ideológicos. Já assinaram, por exemplo, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso, do PSDB, os ex-candidatos à Presidência Fernando Haddad (PT) e Guilherme Boulos (Psol), o governador do Maranhão, Flávio Dino (PCdoB), o apresentador Luciano Huck, apontado como possível candidato no futuro, além de vários políticos de diferentes partidos. Entre economistas, Persio Arida, Arminio Fraga, Pedro Parente, Ilan Goldfjan e Eduardo Moreira também aderiram.

Na impossibilidade de convocar grandes manifestações nas ruas, a o grupo quer manter a indignação ao governo Bolsonaro acesa, com denúncias sobre atitudes autoritárias e fascistas do governo. Num contraponto ao bolsonarismo, a ideia é criar “gabinetes de amor” para conexão em rede. O festival virtual de sábado contará com participação de músicos, artistas e personalidades, brasileiras e internacionais, para denunciar a situação brasileira. A ideia é reproduzir a mobilização artística que ocorreu no festival internacional “One World: Together at Home”, que reuniu artistas como Rolling Stones, Lady Gaga, Elton John, Paul McCartney, entre outros. A ativista ambiental Greta Thumberg, que foi chamada de “pirralha” por Bolsonaro, será convidada.

Além deste movimento, também explodiu o manifesto “Basta!”, coordenado por juristas, advogados e professores de direito. Inicialmente com menos de 1 mil assinaturas, o manifesto já soma a adesão de 10 mil profissionais da área do direito em todo o país.

Segundo Sergio Renault, responsável por conduzir a reforma do Judiciário (2003-2005) no governo FHC, o manifesto surgiu a partir do incômodo da classe jurídica com a passividade dos brasileiros com os absurdos do governo Bolsonaro e a afronta cotidiana aos Judiciário e Legislativo. “Temos que demostrar o inconformismo com esse ataque a instituições. O país tem outros valores e deve resistir. Estamos falando de 70% da população; 30% parecem concordar com essa maluquice, mas a maioria não. Não defendemos nenhuma iniciativa que afronte leis e a Constituição”, disse Renault. Ele reconhece as dificuldades de uma saída para a crise, como a renúncia do presidente ou a abertura de um processo de impeachment.

O manifesto diz que Bolsonaro, “ungido democraticamente ao cargo, exerce o nobre mandato que lhe foi conferido para arruinar com os alicerces de nosso sistema democrático, atentando, a um só tempo, contra os Poderes Legislativo e Judiciário, contra o Estado de Direito, contra a saúde dos brasileiros, agindo despudoradamente, à luz do dia, incapaz de demonstrar qualquer espírito cívico ou de compaixão”.

Segundo os signatários, a Constituição diz expressamente que atentar contra outro Poder é crime de responsabilidade. “É preciso dar um BASTA a esta noite de terror (…) Não nos omitiremos. E temos a certeza de que os Poderes da República não se ausentarão”, continua o manifesto. Apoiador dos dois movimentos, Antonio Cláudio Mariz de Oliveira afirma esperar que “o crescimento dessas manifestações inevitavelmente tire a classe política dessa inércia e da falta de protagonismo”.

Outro movimento relevante partiu de dentro da Procuradoria-Geral da República (PGR) e mira Augusto Aras. Mais da metade dos procuradores (590 dos 1,15 mil) enfatizam que a PGR deve zelar pela independência. A reação surgiu depois que Aras pediu ao Supremo que arquivasse o inquérito das “fake news”, o que é visto, hoje, no meio político, como a arma mais eficaz para atingir Bolsonaro.

O colégio de presidentes de Tribunais de Justiça do país também reagiu após Bolsonaro dizer que não acatará ordens do Judiciário. Os magistrados enviaram carta ao presidente do STF, Dias Toffoli, enfatizando que “não há espaço para retrocessos” e em defesa da autonomia do Judiciário e às instituições democráticas.

Valor Econômico