Tico Santa Cruz teme outro junho de 2013

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Foto: Fabiano Santos – Divulgação

Há vários dias, o roqueiro Tico Santa Cruz, da banda Detonautas, vem usando as redes sociais para fazer um alerta aos manifestantes que começam a ir às ruas em todo Brasil para expressar sua oposição ao governo. Ele teme a repetição de cenas de quebra-quebra que parte dos ativistas protagonizou em 2013. Para Tico, que apoiou a mobilização de seis anos atrás, isso serviria de pretexto para a adoção de medidas autoritárias pelo governo do presidente Jair Bolsonaro. Na noite de ontem, o artista detalhou essa preocupação à coluna.

Coincidentemente, hoje o presidente mostrou que esse cuidado se justifica. Bolsonaro classificou de “marginais” e “terroristas” os manifestantes antifascistas e defendeu maior liberdade de ação para a polícia na repressão aos atos.

O vice-presidente Hamilton Mourão, por sua vez, também foi pelo mesmo caminho. Em artigo publicado hoje no jornal Estado de S. Paulo criticou de forma genérica os manifestantes oposicionistas, como se os envolvidos em conflitos não fossem minoria. No texto, identifica “ações criminosas” que seriam “apoiadas por lideranças políticas e incensadas pela imprensa”.

Nessa entrevista, concedida no dia anterior às falas de Bolsonaro e Mourão, Tico repete o alerta que tem feito desde a semana passada e chama atenção justamente para o perigo de o governo usar qualquer distúrbio em manifestações para justificar reações truculentas. “Isso potencializa o discurso de lei e ordem e de usar as Forças Armadas para conter esse tipo de manifestação”, acredita.

Ele lembra que a prioridade agora é evitar o alastramento da pandemia de covid-19, mas se as pessoas entenderem que é fundamental combater o fascismo nas ruas, que o façam de forma organizada. Ao contrário de 2013, quando as manifestações tiveram caráter apartidário, Tico acredita que em 2020 devem suprapartidárias, com líderes de várias instituições ajudando na organização.

UOL – Qual a principal preocupação que o levou a fazer esse alerta aos que pretendem ir às manifestações contra o governo?

Tico Santa Cruz – Eu acompanhei as manifestações de 2013, participei de algumas delas. Foram manifestações que surgiram também através de redes sociais e que se inspiraram muito nas manifestações da Primavera Árabe, que resultou em um regime autoritário no Egito. Por conta da falta de uma pauta clara e das lideranças, porque essa forma de manifestação horizontal, sem lideranças, sem os setores da sociedade devidamente representadas, abre o precedente para que qualquer força possa utilizar essa massa de pessoas como manobra para alguma direção.

Estamos vendo agora ameaças constantes de ruptura da democracia feitas não só pelos manifestantes bolsonaristas, que apoiam intervenção militar e fechamento do STF, mas até pelos próprios parlamentares filhos do presidente da República. Quando o Eduardo Bolsonaro vai nas redes sociais e fala que não se trata de “se”, mas “quando” vai haver essa ruptura, fica muito evidente que eles querem um ambiente que seja perfeito para que prevaleça a narrativa que adotaram de que o Brasil precisa “melhorar” através de ações autoritárias.

Nunca foi escondido que Bolsonaro tem uma afeição por ditadores e por ditaduras e regimes autoritários. Acompanhei as manifestações de 2013 muito de perto e vi os atos de reação dos black blocs, que é uma tática de defesa utilizada em manifestações que descambava sempre para o quebra-quebra e atitudes que a sociedade brasileira não aprova e que afasta as pessoas. Muita gente que nesse momento não está alinhada ao Bolsonaro ou já esteve, não vai topar entrar numa manifestação com pessoas isoladas que criam uma desordem ou policiais infiltrados que criam distúrbio jogando pedras e coquetéis molotov.

O confronto entre manifestantes e policiais não é benéfico em momento algum, até porque, para mim, o policial e o cidadão que está na rua estão sofrendo os mesmos problemas de falta de saúde, de falta de assistência, falta de salário digno. A diferença é que um dos dois é mandado por uma autoridade maior que o soldado não pode questionar dentro da hierarquia dele. E outros estão ali porque acham que estão fazendo aquilo que é o dever deles.

O governo, então, estaria esperando a ação de black blocs ou qualquer quebra-quebra para justificar um endurecimento?

Isso legitima um discurso autoritário que pretende mostrar essas pessoas que estão na rua se manifestando a favor do Bolsonaro como os cidadãos de bem, pacíficos, o que não é verdade porque existem inúmeros registros de agressões que partiram de bolsonaristas, como aquela contra enfermeiras em Brasília. São grupos violentos que simpatizam com nazismo e fascismo, usando inclusive símbolos dessa ideologia.

Do outro lado, se houver uma rotina de manifestações com conflitos isso potencializa o discurso de lei e ordem e de usar as Forças Armadas para conter esse tipo de manifestação. Quando isso começa a se desenrolar dentro de um regime que já tem um flerte com autoritarismo e ditadura, é um passo para começar a criar narrativa e convencer a classe média que essas pessoas são baderneiros, são vândalos, que querem destruir a democracia. São classificadas como esquerda radical, quando não há qualquer grupo desse tipo que tenha relevância, assim como não há qualquer grupo comunista no Brasil pleiteando ascensão ao poder.

Minha preocupação é que essas pessoas bem intencionadas que , inclusive, estão dispostas a colocar suas vidas em risco no meio de uma pandemia para ir à aglomeração em uma manifestação, acabem sendo iscas de uma armadilha que está muito clara. Tudo o que Bolsonaro quer é um conflito urbano, ele fala repetidamente. Uma guerra civil, um distúrbio. Alguma coisa que justifique, já que ele está derretendo politicamente. Tanto que está se vendendo ao Centrão, liberando verbas bilionárias, mais do que a Dilma.

Acha que o conselho do presidente a simpatizantes para não irem às ruas no próximo domingo faz parte da estratégia?

Isso está bastante claro. Sai a galera que está usando camisa da seleção brasileira e deixa que o pau vai comer entre essas pessoas que eles vão chamar de comunistas, que é o espantalho que eles gostam de usar, e deixa quebrar tudo. Em Curitiba, por exemplo, teve a manifestação e houve atos de vandalismo, queimaram bandeira do Brasil. Foi uma minoria? Sim. Mas é uma minoria que prejudica nesse momento, mais ainda do que prejudicou em 2013.

O que está acontecendo nos Estados Unidos não serve do ponto de vista de atitudes no Brasil, porque são contextos diferentes. Ainda que possa haver boas justificativas por parte dos negros que são ostensivamente massacrados nos Estados Unidos. Mas lá há uma democracia sólida. Não existe nenhum indício de que possa haver um golpe militar nos Estados Unidos, mas no Brasil existe.

Além do que não acho que seja o melhor caminho a violência e o quebra-quebra, porque sempre nós que estamos a favor da democracia vamos sair perdendo. O braço armado do Estado é muito mais forte e organizado do ponto de vista institucional na hora de frear uma manifestação.

Se as pessoas não estiverem atentas a essa questão de quebra-quebra, de quebrar loja, banco, o que quer que seja de conflito, ele vai dizer: “os meus não foram para as ruas, quem está fazendo baderna?”

Acredita, então, que o presidente deseja que haja esses conflitos?

Ele já aposta no caos quando fala para as pessoas não cumprirem o isolamento. A mensagem é que o governo não vai auxiliar você que precisa de subsídio para sobreviver. Restam duas opções: ou quebrar o isolamento ou daqui a pouco vai ter saques. É isso que ele quer. Quando ele atrasa o auxílio emergencial, as pessoas vão ficando sufocadas. Eu tenho condições de comprar comida. E quem não tem?

Quanto mais atrasa o auxílio emergencial, quanto mais as pessoas não têm chance de ficar em casa sem se arriscar nas ruas, Bolsonaro fala que não se pode isolar o trabalhador que está querendo botar o pão de cada dia dentro de casa. Então o pobre se identifica com esse discurso e acha que o presidente tem razão, já que acha que não pode ficar dentro de casa esperando cair do céu.

Mas ninguém explica a essas pessoas que é uma obrigação do Estado, em momento de calamidade sanitária como que a gente está vivendo, oferecer recursos para que não precisem se arriscar e arriscar suas famílias. Ele aposta que o povo vai ficar sem comida, sem emprego, sem ter como alimentar seus filhos. Em algum momento as pessoas vão para a rua para saques, violência, roubo.

O que acha dessa mobilização das torcidas organizadas contra o fascismo?

Todo mundo, seja de torcida organizada, sindicato, partido, união estudantil ou cidadão comum que quer enfrentar o risco da pandemia para lutar contra o fascismo, tudo bem. Mas se começam os conflitos urbanos isso é, na minha opinião, o gatilho que Bolsonaro está precisando para poder entrar com uma força mais autoritária ainda. Não só com a polícia, mas com Exército, Força Nacional e outras elementos à disposição dele para “conter” essas manifestações. Aí toda a narrativa da democracia vai por águia abaixo.

Os oposicionistas dizem que estão indo às ruas porque não podem deixar somente a direita se manifestar.

É no ambiente virtual que se constrói a guerra de narrativas. Não à toa os caras gastam milhões com robôs e fake news. Porque se a gente for falar de tamanho, as manifestações a favor de Boslonaro são ridículas. Do ponto de vista de mobilização nas ruas, a adesão é pequena.

Além disso, estamos no meio de uma pandemia. Quantas pessoas foram contaminadas nessas aglomerações no Brasil e no mundo? Tudo bem, as pessoas estão indo para as ruas por uma causa maior, a luta contra o racismo, o cara pode pensar “Foda-se! Vou botar a minha vida em risco por um vírus mas vou lá porque não dá mais para suportar”. Isso está acontecendo lá fora e, de alguma maneira, inspira o pessoal aqui no Brasil. Mas o cenário que está acontecendo nos Estados Unidos se acontecer no Brasil é extremamente propício para uma intervenção militar.

Nesse caso, Bolsonaro abandona toda a tentativa de se reconstruir politicamente por vias institucionais, com essa contradição de agora, comprando o Centrão e se aliando ao pior da política, da qual ele fazia parte mas dizia que combatia, tira a narrativa do STF e diz “acabou a brincadeira, quem vai tomar conta dessa p… são os militares”. Aí STF e Congresso perdem a força.

Se o Exército vai atrás dele, não posso te afirmar. Não sei quais seriam as cabeças do Exército que topariam uma aventura ditatorial com Bolsonaro. Mas posso dizer o seguinte: ele ganha narrativa para fazer isso.

Como evitar esses conflitos nas manifestações?

Para não cair no mesmo erro de 2013, que foi uma ação apartidária, nesse caso de 2020 tem que ser uma ação suprapartidária. Todos os partidos que são favoráveis às regras democráticas e entendem que existe uma tentativa de golpear a democracia brasileira deveriam oferecer uma liderança. Assim como religiosos, sindicatos, esportistas, artistas… Quando temos várias lideranças atuando, a massa tem uma referência por onde seguir. Sendo suprapartidária, deixaria claro que não é de direita, de esquerda ou de centro, mas em prol de uma questão que é maior que os interesses de cada grupo.

A linha estratégica deve ser: vamos nos manifestar em tal dia, em tal hora, com tantas pessoas participando. Assim há menos chance de descambar para a violência. O movimento Diretas Já aconteceu através de atos suprapartidários. Existiam lideranças e políticos de todos os espectros ideológicos, interessados em dar fim a um regime ditatorial.

Se for para o oba-oba do “vamos todo mundo cada um por si para o meio da rua”, as pessoas têm suas motivações individuais de raiva, diante de pandemia, diante de pobreza, diante de violência que num momento em que a adrenalina sobe para começar um quebra-quebra não custa. O objetivo é alertar: galera, pelo amor de Deus, se houver confusão o Bolsonaro vai usar isso como narrativa a favor dele. Isso é óbvio.

Uol