Conheça o juiz que pegou pesado com Flávio Bolsonaro

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Foto: FELIPE CAVALCANTI-TJ-RJ

Uma proposta de minirreforma no Código de Processo Penal brasileiro para tornar menos lentos os processos na Justiça integra a dissertação de mestrado em direito defendida em 2019 pelo juiz Flávio Itabaiana na Universidade Estácio de Sá. O trabalho, com propostas de limitação de direitos e maior rigor com réus e testemunhas, ajuda a confirmar a fama de extremamente rígido conquistada, entre criminalistas do Rio, pelo magistrado da 27ª Vara Criminal. Ele poderá julgar o caso Flávio Bolsonaro/Fabrício Queiroz, caso volte à primeira instância. No texto que lhe valeu o grau de mestre, O direito à razoável duração do processo e seus reflexos no processo penal, Itabaiana mostra preocupação com a demora excessiva em ações criminais. Para ele, a tramitação vagarosa pode gerar prescrição de penas e impunidade.

“Ao longo dos meus 35 anos de carreira, acho que foi o juiz mais duro que conheci”, descreve o advogado e defensor público Paulo Ramalho. Segundo ele, Itabaiana é “duro demais, demais, demais, demais, demais.” Mas, apesar de já ter tido clientes condenados pelo magistrado, Ramalho o elogia. Descreve-o como focado, trabalhador, assíduo – e preocupado com prazos, para que as acusações não prescrevam.

A preocupação fica nítida na dissertação, um trabalho de apenas 76 páginas, da folha de rosto à última referência bibliográfica. No texto, Itabaiana propõe, por exemplo, que não seja mais permitido ao réu oferecer razões de apelação à segunda instância, embora os recursos sejam mantidos. “Afinal, não faz sentido (…) pois os autos terão de ser remetidos para lá só para este fim e, após isto ocorrer, terão de retornar à primeira instância para que o Ministério Público apresente suas contrarrazões para, em seguida, serem devolvidos em definitivo à segunda instância”, argumenta. Outra modificação que o juiz pede é a abolição da possibilidade de apresentação, pelo acusado, de embargos infringentes ou de nulidade contra decisões não-unânimes que lhe forem desfavoráveis na segunda instância. Como o autor da ação não tem o mesmo direito, o princípio da “paridade de armas” é violado, afirma.

Itabaiana também defende no trabalho o fim da intimação de sentença por edital, nos casos em que o sentenciado não for encontrado no endereço que registrou na Justiça, o que também pode causar demora. Nos casos em que houver renúncia da defesa à causa na fase de alegações finais, defende que, para que o processo não pare à espera de novo advogado, o juiz nomeie um defensor e lhe dê acesso aos autos, mantendo os prazos originais. Mesmo vítimas e testemunhas seriam atingidos pelas propostas feitas pelo magistrado na dissertação. Poderiam ser processadas por desobediência, se não comunicassem mudança de endereço. Os “ofendidos” (alvos dos crimes) intimados que faltassem a audiência também pagariam multa e as custas da diligência de intimação frustrada. O juiz defende ainda que os processos penais prossigam na ausência de réus que mudem de endereço e não o comuniquem à Justiça.

“O que não se pode admitir é, em nome da duração razoável do processo, se criar uma nova fonte de impunidade, pois se o réu tem interesse num processo rápido (se é que tem), a sociedade tem interesse num processo justo, com sentença absolutória ou condenatória”, escreve o juiz na dissertação.

Um processo rápido é o que Flávio Bolsonaro não tem tido – e tem se beneficiado disso. As investigações do caso das “rachadinhas” – suposto repasse ao parlamentar do salário pago a assessores que contratou e muitas vezes não trabalham – já dura mais de dois anos. As investigações avançam lentamente, e houve pelo menos dez tentativas da defesa de parar o processo, atrasá-lo ou mudá-lo de instância.

Na última, no fim de junho, a 3ª Câmara Criminal do Rio, por dois votos a um, determinou que as investigações passem ao Órgão Especial do Tribunal de Justiça do Rio, foro dos deputados estaduais. O MP do Rio, porém, recorreu ao Supremo Tribunal Federal (STF), cuja jurisprudência aponta para a primeira instância como foro adequado a quem não integra mais a Assembleia Legislativa. O processo deverá voltar para Flávio Itabaiana, um juiz que tem, entre os criminalistas do Rio, fama de seguir um rigor desmedido em seus processos e sentenças.

Flávio Itabaiana de Oliveira Nicolau é de uma família de magistrados. É trineto do desembargador José Joaquim Itabaiana de Oliveira, bisneto do desembargador Arthur Vasco Itabaiana de Oliveira, neto do desembargador Aires Itabaiana de Oliveira e filho do desembargador Clarindo de Brito Nicolau. No antigo Estado do Rio outro magistrado do mesmo sobrenome, Décio Itabaiana, primo da mãe do juiz da 27ª Vara, andava armado e protagonizava ações controversas, que chegavam ao noticiário da época. Em 1964, ameaçou prender um delegado se não impedisse a realização, no Instituto Abel, em Niterói, de um bingo, com sorteio de um carro zero quilômetro. Considerou o sorteio jogo de azar. Pouco depois, condenou um motorista a, uma vez por mês, copiar todo o código de trânsito.

O Itabaiana dos dias atuais também tem personalidade forte, mas é avesso à publicidade – agradeceu e recusou-se a dar entrevista ao Estadão. Estudou em escolas superiores privadas. Ingressou em 1978 na Universidade Santa Úrsula, onde se graduou engenheiro elétrico. Especializou-se em engenharia econômica no Centro Cibernético Gay-Lussac, em 1984. No ano seguinte, ingressou no curso de direito da Universidade Cândido Mendes, onde se formou em 1989. Seis anos depois, em 1995, ingressou por concurso público na carreira de juiz no Tribunal de Justiça do Rio. Lá, é considerado um trabalhador compulsivo e um chefe cobrador. Profissionalmente, tem um sonho: chegar a desembargador, como os antepassados – seria o quinto da linhagem. Casado pela segunda vez, é discreto na vida pessoal e reservado no trabalho. Já processou advogados que considerou terem se excedido e o desrespeitado.

O perfil de juiz criminal durão, conservador e, no jargão jurídico, punitivista o opôs à esquerda que apoiava o grupo de 23 ativistas denunciados sob acusação de protagonizar depredações e outros crimes nas Jornadas de Junho, em 2013. No processo dos chamados black blocs, o magistrado presidiu audiências tensas, com os acusados em postura desafiadora, apresentando-se como perseguidos políticos e reclamando de suposta parcialidade da Justiça. Na primeira sessão, como os acusados riram do depoimento da delegada Renata Araújo dos Santos, uma das testemunhas de acusação, o juiz os advertiu para que parassem. Eles insistiram, e o magistrado os expulsou da sala. “Aqui não tem palhaço”, afirmou na ocasião. “Não podem ficar rindo.”

Cerca de um mês depois, em outra audiência, o magistrado voltou a determinar que réus e plateia fossem retirados de uma sessão, por fazerem o que Itabaiana considerou manifestação política. Em outro incidente, o advogado André Luiz Costa de Paula acusou o juiz de ter, ilegalmente, interceptado suas ligações telefônicas. Itabaiana representou contra Costa de Paula – acusando-o de calúnia – junto ao Ministério Público. O advogado não conseguiu provar o que dissera e teve rejeitada a exceção da verdade que arguiria contra o juiz. No processo dos black blocs, alguns acusados tiveram telefones grampeados, legalmente. Ao aceitar a denúncia contra os 23 acusados, Itabaiana decretou a prisão de todos.

“Em liberdade, certamente encontrarão os mesmos estímulos para a prática de atos da mesma natureza”, disse, em nota. “Assim, como a periculosidade dos acusados põe em risco a ordem pública, deve-se proteger, por conseguinte, o meio social”.

Quatro deputados representaram contra Itabaiana no Conselho Nacional de Justiça. “Sem precedentes no regime democrático, o magistrado reclamado utilizou dos poderes conferidos ao Judiciário para, através de decreto de prisão, coibir supostas tentativas de práticas ilícitas que não tiveram sequer o início de ato preparatório algum. Foram prisões cautelares destinadas a reprimir delitos imaginários forjados pelos aparatos da repressão governamental”, afirma trecho da reclamação assinada pelos deputados Jandira Feghali (PCdoB-RJ), Chico Alencar (PSOL-RJ), Jean Wyllys (PSOL-RJ) e Ivan Valente (PSOL-SP). O juiz teve a solidariedade de colegas, que divulgaram nota por meio do Tribunal de Justiça do Rio e a Associação dos Magistrados do Estado (Amaerj).

No fim do processo, o Ministério Público, encarregado legalmente da acusação, pediu a absolvição de cinco réus, por falta de provas. Em 2018, o magistrado de “mão pesada”, como é classificado por advogados, condenou todos os 23. Não é ilegal que um magistrado discorde de pedidos do MP para absolver acusados, mas não é usual que isso ocorra na Justiça brasileira. As penas variaram de cinco anos e dez meses a sete anos de reclusão, por associação criminosa armada com a participação e corrupção de menores.

A sentença, porém, foi anulada em 2019 pelo Supremo Tribunal Federal. Os ministros da 2ª Turma consideraram que foi ilegal a atuação clandestina de um policial infiltrado nos atos, sem o devido controle legal. Depoimentos de Maurício Alves da Silva foram fundamentais para as condenações. Antes de deixar o cargo de procuradora-geral da República, Raquel Dodge, no ano passado, pediu correção da decisão. Argumentou que apenas alguns acusados foram acusados apenas com base no que dissera o agente.

Agora, depois de irritar a esquerda, o rigor de Itabaiana atormenta a direita. Enquanto era o juiz do caso Queiroz, ele instruiu as investigações contra Flávio Bolsonaro, determinando por exemplo a quebra de sigilo bancário de 95 pessoas físicas e jurídicas. A ação foi fundamental para as investigações do Ministério Público, que a partir dela conseguiu fortes indícios de que o ex-assessor Fabrício Queiroz pagava, em dinheiro vivo provavelmente obtido pelas “rachadinhas”, despesas pessoais do parlamentar e da mulher Fernanda. Também foi o juiz que determinou a operação de busca e apreensão realizada no fim de 2019. Nela, foi arrecadado um celular de Márcia Aguiar, mulher de Queiroz, com pistas que ajudaram a localizá-lo e prendê-lo, em junho de 2020.

Como a esquerda fez no caso dos ativistas de 2013 Flávio Bolsonaro acusa Itabaiana de parcialidade. O senador aponta o fato de Natália Nicolau, filha do magistrado, trabalhar para governo estadual, como suposto motivo da atuação rigorosa de Itabaiana no processo. Na versão do parlamentar, o magistrado estaria a serviço do governador do Rio e seu rival, Wilson Witzel (PSC). O juiz divulgou nota negando as acusações – e se defendendo.

“A filha do dr. Flávio Itabaiana foi nomeada em 01/04/2019, sendo certo que trabalha diariamente, cabendo, contudo, ao governo do Estado informar se ela é ou não funcionária fantasma”, diz o texto. “O magistrado ressalta que não foi a pedido dele que ela foi nomeada para trabalhar lá, pois não tem qualquer contato com o governador nem com qualquer outra pessoa do Palácio Guanabara.”

A mais nova frente aberta por Flávio Bolsonaro contra o juiz é um pedido de suspeição contra ele em uma investigação na Justiça Eleitoral, sobre sua declaração de bens, também sob responsabilidade do magistrado. O senador é investigado por lavagem de dinheiro e falsidade ideológica eleitoral. Seu novo advogado, Rodrigo Roca, pediu que Itabaiana seja declarado suspeito, porque seria amigo dele, depois de representá-lo em um processo contra o advogado Ronaldo Linhares. Em 1998, Linhares criticou Itabaiana em evento na Câmara dos Vereadores de Conceição de Macabu, no Norte Fluminense, onde Itabaiana atuava. Ele, porém, nega ser amigo de Roca, que, assegura, encontrou pela última vez em 2014.

“De qualquer forma, o art. 256 do Código de Processo Penal deixa claro que a suspeição não poderá ser declarada nem reconhecida quando a parte ‘de propósito der motivo para criá-la’”, declarou, em nota. “Assim, como eu já estava atuando no processo, não poderia o investigado Flávio Bolsonaro (nem qualquer outro investigado) contratar um advogado, dizer que ele é meu amigo e arguir minha suspeição para me afastar do processo.”

Flávio Bolsonaro, porém, deve insistir na tentativa de evitar Itabaiana. Tanto na Justiça criminal como na Eleitoral, a “mão pesada” do magistrado assusta.

Estadão