Deputada e ombudsman veem projeto de Bolsonaro contra a democracia

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Somado a sistemáticos ataques à imprensa, ao Supremo e às minorias, o uso de simbologias herdadas de um Brasil escravocrata, de governos autoritários e até mesmo do nazismo devem ser compreendidas como peças-chave em um projeto de erosão da democracia empreendido pelo governo Bolsonaro.

Flavia Lima, ombudsman da Folha, e Tabata Amaral, deputada do PDT por SP, convergiram na formulação da teoria de que o atual governo cria iconografia similar, em live realizada hoje nesta sexta (3) pelo jornal dentro de projeto sobre os anos da ditadura (1964-1985).

O debate, mediado pela repórter especial associada Fernanda Mena, ficou em torno da questão “Estamos próximos de um regime autoritário?”. Com ele, chega ao fim a série do jornal com cinco lives sobre o regime militar.

No último fim de semana, foi publicado o projeto especial “O que Foi a Ditadura”, com reportagens sobre o período autoritário encerrado em 1985. Também foi lançado um curso online gratuito a respeito do regime.

Quais seriam essas simbologias? Foram citados, por exemplo, o uso de frases de Joseph Goebbels, o ministro da propaganda na Alemanha nazista, em um vídeo postado pelo ex-secretário Roberto Alvim, e também o chamado desafio do copo de leite, com a divulgação de imagens de membros do governo bebendo leite, o que foi imediatamente associado pela oposição ao governo, a uma campanha racista difundida entre supremacistas brancos nos EUA.

Para Tabata, “a gente não pode ignorar quando Bolsonaro anda a cavalo, em referência aos militares na ditadura, quando ministros bebem um copo de leite, o que também é referência ao fascismo, e quando depois dizem que não, que é uma campanha para promover a indústria de leite”.

O problema, para ela, é que a sociedade brasileira ainda não sabe reagir a esse tipo de ação. “O que a gente faz com essa parte, que também tem um peso, mas não é óbvia?”, questiona-se. Flavia levou a questão mais adiante.

Para ela, trata-se de um jogo perigoso. “Os símbolos são colocados, e depois são retirados. Eles [membros do governo] se dispõem a fazer encenações de atitudes autoritárias, racistas e fascistas. Os símbolos são muito bem colocados e dizem muito sobre as crenças, ao que você defende. Os símbolos são entendidos pela sociedade e são popularizados, mas em um momento seguinte são negados. Depois, dizem ‘Não, vocês não entenderam, estamos sendo perseguidos’”, diz.

As debatedoras entenderam que este é um dos mecanismos utilizados pelo atual governo em um projeto de ações antidemocráticas mais sofisticadas em relação àquelas que correspondem ao período de ditadura. “Teorias mais modernas mostram que não é preciso um golpe para acabar com uma democracia”, diz Flavia. “As democracias podem morrer minadas por dentro, inclusive com eleições.”

“As pessoas demoram para ver o que está acontecendo”, disse a jornalista. A tentativa de alçar torturadores à imagem de heróis, a defesa de regimes autoritários em outros países da América do Sul, e mesmo o uso de frases como “eu sou a Constituição” têm sido recorrentes nos discursos do presidente.
“Na hora em que o deputado Bolsonaro disse que a ditadura fez pouco ele deveria ter sido cassado. Se você foi eleito democraticamente, você não pode fazer apologia a ditadura dessa forma”, disse Tabata.

O QUE FOI A DITADURA – Flavia Lima e Tabata Amaral 01
Flavia Lima, ombudsman da Folha, e a deputada Tabata Amaral participam do debate “Estamos próximos de um regime autoritário?”, nesta sexta-feira (3) – Núcleo de Imagem
A deputada comparou o hábito de ouvir frases incompatíveis com o cargo de presidente à imagem de um elástico que vai se esgarçando.

“Quando Bolsonaro faz piada com o que está acontecendo com a pandemia a gente fala ‘ah, mas ele já falou algo muito parecido’. Eu já entrei com representação na comissão de ética contra deputados, e não é porque eu discordo da visão de mundo deles. Mas não acho que a gente possa tolerar quem desrespeita as regras do jogo”, diz.

A democracia é apoiada por 75% da população brasileira, maior índice da série histórica do Datafolha desde 1989. Esse recorde é registrado em meio a sistemáticos embates entre o governo Bolsonaro e os demais Poderes.

Também houve endossos do presidente a protestos antidemocráticos, que pediam o fechamento do Congresso e do Supremo Tribunal Federal (STF), o que, para Flavia, torna questionável os índices de apoio a democracia da pesquisa. Para ela, esses manifestantes podem estar compreendidos em um grupo que, em discurso contraditório, ataca o autoritarismo na mesma medida em que defende mecanismos com que um presidente eleito tenta impor seu projeto.

“A pegadinha é que o entendimento do que seria a democracia é diferente entre uns e outros”, diz, citando apoiadores de Bolsonaro que falam em “ditadura do Supremo”.

As duas debatedoras afirmaram que a imprensa atuou de forma contraditória em defesa da democracia e ao abordar a ditadura. Não só porque o golpe de 1964 foi amplamente defendido por jornais e revistas.

Como outros participantes das lives que o jornal transmitiu nesta semana, elas criticaram o uso do termo “ditabranda” em editorial da Folha de 2009, quando comparou o número de vítimas da ditadura brasileira ao volume superior de mortos e desaparecidos em outras ditaduras do século 20.
Ainda em 2009, a Folha avaliou que errou ao utilizar o termo “ditabranda”. Texto assinado pelo então diretor de redação do jornal, Otavio Frias Filho (1957-2018), disse que “o termo tem conotação leviana que não se presta a gravidade do assunto”.

A ombudsman da Folha também criticou o papel da imprensa na sistemática publicação de manchetes que, segundo ela, acabam por criminalizar a política. Ela citou como exemplo o governo Dilma.

“No impeachment da Dilma Rousseff, a imprensa ajudou a construir as bases para aquele ato. A imprensa ajudou na criminalização de um partido. E mais do que isso, ela criminalizou a política. Seja com as manchetes diárias sobre corrupção ou com chamadas na televisão chamando a população a aparecer nas manifestações [pelo impeachment].”

​Para Flavia, a imprensa se apresenta como esteio da democracia e da liberdade —“e ela é”, reitera—, mas historicamente tem apoiado regimes autoritários “até que eles mostram sua face de censura e contra a liberdade de expressão”.

Tabata se formou em astrofísica e ciência política pela Universidade Harvard, nos EUA. É atualmente deputada federal e membro titular da Comissão de Educação do Congresso. Também é colunista da Folha.

Formada em direito pela Universidade Mackenzie e em ciências sociais pela USP, Flavia Lima se tornou ombudsman da Folha em maio de 2019. Antes, foi repórter da editoria de Mercado do jornal.

Folha de SP