Erros na pandemia vão gerar “avalanche de ações” contra o Estado

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Foto: Reprodução/Olhar Digital

Segundo o Estadão, o ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes disse no dia 11 de julho do corrente ano que o Exército está se associando a um “genocídio”, ao se referir à crise sanitária instalada no País em meio à pandemia do novo coronavírus, agravada pela falta de um titular no Ministério da Saúde. O comentário de Gilmar foi feito em videoconferência realizada pela revista IstoÉ.

Há 57 dias sem ministro da Saúde, o Brasil já registrou 1.839.850 infectados e 71.469 óbitos pela doença. O general Eduardo Pazuello assumiu interinamente a pasta após o médico oncologista Nelson Teich pedir demissão em 15 de maio. É a primeira vez desde 1953 que o ministério fica tanto tempo sem um titular. Naquele ano, Antônio Balbino comandou de agosto a dezembro a pasta interinamente, enquanto também era chefe do Ministério da Educação (MEC). As duas pastas haviam acabado de se separar.

Há uma verdadeira tragédia sanitária no Brasil e avizinha-se à frente um verdadeiro pandemônio judicial à frente porque o Estado brasileiro, em várias questões, como a omissão por veto presidencial de assistência às comunidades indígenas e o descaso revelado com relação à população brasileira, como a falta de um ministro da saúde, tem trazido danos à população, que poderão ser objeto de discussão no Judiciário em ações visando a reconhecimento e condenação por responsabilidade civil.

II – A RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO

Disse bem Merval Pereira, na edição do jornal O Globo, em 14 de julho de 2020, que a advertência do ministro Gilmar Mendes deve ser vista como “crítica ao presidente da República e não aos militares”.

Lembre-se que em havendo omissão a responsabilidade é por culpa, de forma subjetiva.

Os comentários acima noticiados podem trazer preocupações com relação às consequências que estão aí com relação ao que se passa.

Há, portanto, uma verdadeira advertência às autoridades públicas quanto às graves reparações que poderão ser pedidas por conta dos danos trazidos pelos efeitos da covid-19 na população.

Não são apenas os danos reconhecidos hoje à saúde da população, mas ainda as sequelas trazidas pelo mal.

Segundo a Gazeta do Povo, Sempre Saúde, no dia 13 de julho do corrente ano, “pessoas infectadas pelo novo coronavírus, e que passaram pela doença, podem sair dela com sequelas. O alerta foi dado por autoridades de saúde de Hong Kong, que identificaram uma redução na função pulmonar de até 30% em alguns pacientes.”

“Devido a diferença de tempo da doença, o Brasil é um dos países em que questões de sequelas ainda não estão sendo discutidas. Isso, porém, tende a mudar conforme o avanço da Covid-19. “É uma coisa meio esperada, que não está se falando muito por causa de outros aspectos. Falamos mais da parte epidemiológica agora, mas temos a experiência de outras épocas, como do H1N1, de 2009″, explica Irinei Melek, médico pneumologista, presidente da Associação Paranaense de Pneumologia e Tisiologia, e preceptor de Pneumologia do Hospital Angelina Caron.”

Com relação a pessoas que já tenham doenças crônicas pulmonares, como a DPOC (doença pulmonar obstrutiva crônica) ou asma, o médico pneumologista disse que os dados atuais não apresentam essa informação. “Claro que, se tiver DPOC, com metade do funcionamento pulmonar, e desenvolver um quadro grave de Covid-19, provavelmente seguirá a uma pneumonia e pode ser fatal”, explica.

Não será, pois, surpresa, se houver uma verdadeira “avalanche de ações”, na Justiça Federal, onde se cobrem danos por problemas causadas pela doença. Para tanto, será necessário comprovar a omissão por culpa, não havendo que se tratar da aplicação da chamada teoria objetiva do risco.

Sérgio Cavalieri Filho (Programa de responsabilidade civil, 9ª edição, São Paulo, Atlas, pág. 270) conclui que a responsabilidade subjetiva do Estado não foi de todo banida de nossa ordem jurídica.

Há omissão específica, como diz Guilherme Couto de Castro (A responsabilidade civil objetiva no direito brasileiro, 1977, pág. 37), quando o Estado por omissão sua, crie a situação propícia para a ocorrência do evento em situação em que tinha o dever de agir para impedi-lo.

Como bem disse Sérgio Cavalieri Filho, resta, todavia, espaço para a responsabilidade subjetiva (por omissão genérica), nos fatos e fenômenos da natureza, determinando-se a responsabilidade da Administração, com base na culpa anônima ou falta de serviço, seja porque este não funcionou, quando deveria normalmente funcionar, seja porque funcionou mal ou funcionou tardiamente.

Há danos por omissão do Estado.

Quando o dano foi possível em decorrência de uma omissão do Estado (o serviço não funcionou, funcionou tardiamente ou de forma ineficaz), a doutrina entende que deve ser aplicada a teoria subjetiva. Com efeito, se o Estado não agiu, não pode, logicamente, ser ele o autor do dano. E, se não foi o autor, só cabe responsabilizá-lo caso esteja obrigado a impedir o dano. Isto é: só faz sentido responsabilizá-lo se descumprir dever legal que lhe impunha obstar ao evento lesivo.

A responsabilidade civil por ato omissivo leva em conta um comportamento ilícito.

Observo recente pronunciamento do ministro Roberto Barroso quanto de interpretação que deu com relação a edição da Medida Provisória 960/2020.

Aquela MP 966/2020 estabelece que as autoridades só poderão ser responsabilizadas se ficar comprovado o dolo (ação intencional) ou “erro grosseiro”. No entanto, estipula que o chamado “erro grosseiro” só estará configurado a partir de cinco variáveis, o que, na prática, torna muito restritivo o enquadramento de autoridade por essa conduta.

Por nove votos a um, o Supremo Tribunal Federal (STF) restringiu o alcance da medida provisória (MP) do presidente Jair Bolsonaro que livra qualquer agente público de processos civis ou administrativos motivados por ações tomadas no enfrentamento à pandemia do novo coronavírus. Segundo os ministros da Corte, medidas que possam levar à violação aos direitos à vida e à saúde ou sem o embasamento técnico e científico adequado poderão ser punidas. No julgamento, houve críticas a ações que ignorem a ciência e, mesmo sem citar nomes, à gestão do governo na área da saúde.

Em seu voto, o ministro Barroso estabeleceu que erro grosseiro é ato administrativo que “ensejar violação ao direito à vida, à saúde ou ao meio ambiente equilibrado por inobservância: i) de normas e critérios científicos e técnicos; ii) dos princípios constitucionais da precaução e da prevenção”.

O ministro Barroso também propôs que “a autoridade a quem compete decidir deve exigir que as opiniões técnicas em que baseará sua decisão tratem expressamente as normas e critérios científicos e técnicos aplicáveis à matéria tais como estabelecidos por entidades médicas e sanitárias nacional e internacionalmente e sanitárias reconhecidas, e da observação dos princípios constitucionais da precaução e da prevenção sob pena de se tornarem corresponsáveis por eventuais violações a direitos”.

O ministro Luís Roberto Barroso propôs que, na interpretação da MP, seja considerado como erro grosseiro o ato administrativo que ensejar violação do direito à vida, à saúde ou ao meio ambiente equilibrado em razão da inobservância de normas e critérios científicos e técnicos.

III – EXEMPLO NO DIREITO COMPARADO

Já há exemplos como o da Itália.

Um grupo de parentes de vítimas do coronavírus apresentou uma representação coletiva contra as autoridades de Bérgamo, no norte da Itália, por negligência e erros na gestão da pandemia que matou mais de 34 mil pessoas no país.

É a primeira ação legal coletiva do tipo movida no país, um dos mais atingidos pelo coronavírus no mundo.

“Não queremos vingança, queremos justiça”, disse Stefano Fusco, um dos fundadores do grupo. “Vamos denunciar. Verdade e justiça para as vítimas da Covid-19”, disse. A doença matou seu avô em março em um asilo.

Acompanhados por advogados e membros do comitê, os parentes apresentaram 50 queixas ao Ministério Público em Bérgamo, a cidade símbolo da pandemia na Itália, “porque se tornou o símbolo dessa tragédia, embora sejam de todo o país”, explicou.

IV – A MP 966 NÃO É NORMA INTERPRETATIVA DA LEI DE INTRODUÇÃO

Já se entendeu que a MP 966/2020 não é uma norma interpretativa da Lei de Introdução quando se fala do limite da responsabilidade do agente público por danos causados à sociedade.

Interpretativas são as normas paracoercitivas que dão a o verdadeiro sentido e alcance da normas legais ou contratuais preexistentes. Como observou Del Vecchio (Lezioni di filosofia del diritto, pág. 224) quando disse que visam ao “aclaramento de uma vontade que as partes tinham expresso do modo incompleto e obscuro – em matéria contratual – mas, ainda, em assunto legislativo, o verdadeiro sentido e alcance das leis preexistentes. Por exemplo, a Lei nº 105, de 12 de maio de 1940, que veio interpretar alguns artigos do Ato Adicional à Constituição do Império(Lei de 12 de agosto de 1834) e a Lei nº 211, de 7 de janeiro de 1948, que deu o verdadeiro sentido e alcance do parágrafo 13 do artigo 141 da Constituição Federal de 1946, declarando extinto o mandato de membros do Legislativo eleitos por partido com registro cassado.

Sabe-se que foi editada a MP 966/2020, que se apresentou como norma para dar interpretação com relação ao conceito de erro grosseiro.

V – A DECISÃO DO STF NA MATÉRIA COMO SENTENÇA ADITIVA

Trata-se, portanto, de um exemplo de decisão aditiva que vem a ser proposta.

A MP deveria inserir em seu texto, na interpretação do voto do ministro, alguns critérios que nela não estariam explicitamente acentuados.

Mas outros princípios ali deveriam ser citados: o da isonomia, da razoabilidade, o da proporcionalidade.

A doutrina entende que nas decisões aditivas (também ditas modificativas ou manipuláveis) a inconstitucionalidade detectada não reside tanto naquilo que a norma preceitua quanto naquilo que ela não preceitua; ou, por outras palavras, a inconstitucionalidade acha-se na norma na medida em que não contém tudo aquilo que deveria conter para responder aos imperativos da Constituição. E, então, o órgão de fiscalização acrescenta (e, acrescentando, modifica) esse elemento que falta.

Uma lei ao atribuir um direito ou uma vantagem (como exemplo, uma pensão) ou ao adstringir a um dever ou ônus(por exemplo, uma incompatibilidade), contempla certa categoria de pessoas e não prevê todas as que se encontram na mesma situação, ou acolhe diferenciações infundadas. Como irá se resolver? Eliminar os preceitos que, qualitativa ou quantitativamente violem o princípio da igualdade? Ou, ainda, pelo contrário, invocando os valores e interesses constitucionais que se projetam nessas situações, restabelecer a igualdade? Decisões aditivas são, em especial, as que adotam o segundo termo da alternativa.

Nas decisões aditivas há um segmento ou uma norma que se acrescenta com idêntico fim.

Canotilho (Direito constitucional e teoria da Constituição, 4ª edição, pág. 990) advertiu que através de sentenças desse tipo o tribunal: a) alarga o âmbito normativo de um preceito, declarando inconstitucional a disposição na parte em que não prevê certas situações que deveria prever (sentenças aditivas); b) declara a inconstitucionalidade de uma norma na parte ou nos limites em que contém uma prescrição em vez de outra (sentença substitutiva).

Anotou a propósito Canotilho: “Não obstante as categorias das sentenças aditivas e substitutivas serem originárias da doutrina e jurisprudência italianas, sugestivamente, utilizam o conceito geral de sentenças manipulativas para designar as técnicas de decisão transformadoras do significado da lei”.

Os italianos falavam em “sentenze additive. Em Portugal houve decisões do Tribunal Constitucional que produziram efeitos normativos semelhantes aos das sentenças manipulativas italianas.

Observe-se o Acórdão do Ac. 143/85 (caso de exercício da advocacia por docentes), na medida em que alargou a exceção à incompatibilidade com o exercício da advocacia a todos os docentes(e não apenas, como prescrevia o Estatuto da Ordem dos Advogados aos docentes de disciplinas de direito. No Ac. 203/86, houve o caso dos beneficiários de pensões, pois ao julgar-se inconstitucional a norma que mandava aplicar a disposição menos favorável aos beneficiários das pensões fixadas antes da de uma certa data, acabou por estender o âmbito da aplicação do regime mais favorável, como se lê de Nunes de Almeida e ainda de Rui Medeiros(A decisão de inconstitucionalidade páginas 456 e seguintes).

Das decisões aditivas distinguem-se as decisões integrativas, através das quais se interpreta certa lei (com preceitos insuficientes e, nessa medida, eventualmente inconstitucionais) complementando-a com preceitos da Constituição sobre esse objeto que lhe são aplicáveis e porque diretamente aplicáveis. Em Portugal, tem-se por exemplo os acórdãos n. 329/99 e 517/99 do Tribunal Constitucional de 2 de junho e de 22 de setembro (sobre licenças de loteamentos, de obras de urbanização e de construção).

Como ensinou Jorge Miranda (Teoria do Estado e da Constituição, 2003, pág. 514), a diferença está em que nas decisões aditivas o órgão de fiscalização formula, implícita ou indiretamente, uma regra, ao passo que nas decisões integrativas ele vai apoiar-se diretamente numa regra constitucional.

O Tribunal Constitucional de Portugal enfrentou decisões aditivas nos seguintes casos, como exemplo: Acórdão nº 143/85, de 30 de julho (sobre atividades docentes e advocacia), Acórdão 191/88 de 20 de outubro (sobre pensões por morte em caso de acidentes do trabalho), dentre outras.

Escreveu Rui Medeiros (citado por Jorge Miranda, obra mencionada, às folhas 515) que tais decisões brigariam, com o princípio democrático e com o da separação de poderes. Ainda que se admitisse que a proibição do retrocesso pudesse impedir a decisão de inconstitucionalidade de uma lei que concretizasse em termos discriminatórias uma norma constitucional, daí não se retiraria uma legitimidade geral dessas decisões, pois não se vislumbraria como uma lei inconstitucional poderia condicionar a atuação futura do legislador legitimado democraticamente. Substituindo a vontade do legislador por outra, elas só em casos excepcionais seriam de aceitar e deveriam ser limitadas na medida do possível, como entendeu Gomes Canotilho (Jurisdição constitucional e intranquilidade discursiva, in Perspectivas constitucionais, obra coletiva, Coimbra, 1996, páginas 882 e seguintes).

Como disse Jorge Miranda, o órgão de fiscalização não se comporta como legislador, no caso, pois que não age por iniciativa própria, nem segundo critérios políticos; age em processo instaurado por outrem e vinculado aos critérios de interpretação e construção jurídica inerentes à hermenêutica constitucional.

Estadão