Advogadas de Marielle pedem mudanças no Judiciário

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Foto: Reprodução

Há mais de dois anos as advogadas da família de Marielle Franco buscam na Justiça a reparação de danos morais pela divulgação de uma avalanche de “fake news” que afetaram a honra e a memória da vereadora carioca assassinada em 14 de março de 2018. Duas ações foram ajuizadas à época. Em um dos processos constam 88 páginas com números de IPs [“Internet Protocol”, uma espécie de CPF que a pessoa usa nas redes], ainda sem identificação. Sem identificar o IP, não se pode responsabilizar os culpados. A ação praticamente emperrou na busca pela identificação dos IPs, por uma burocracia processual. Por conta disso, as advogadas Evelyn Melo e Samara Castro recorreram ao Superior Tribunal de Justiça (STJ).

As duas advogadas têm sido consultadas por parlamentares no debate do projeto de lei das “fake news”, que agora tramita na Câmara. Elas acreditam que o projeto, se modificado, poderá dar respostas efetivas para mudanças processuais com intuito de assegurar celeridade à reparação de danos aos que têm reputações destruídas por conteúdos falsos. Na prática, se o comportamento do Judiciário não for objeto de análise do projeto, argumentam, a eficácia que se busca no combate às “fake news” pode estar seriamente comprometida.

De acordo com ambas, a falta de compreensão dos próprios magistrados sobre as dimensões do fenômeno das “fake news” e o ineditismo dos casos têm tornado a batalha judicial uma espécie de “luta inglória”, que fortalece a impunidade. Além da ação que está no STJ para julgamento do recurso, há outra que busca a responsabilização da desembargadora Marília Castro Neves, do Tribunal de Justiça do Rio. Também está em fase recursal da ré.

Especialistas em direito eleitoral e digital, as advogadas conviveram com Marielle por anos e também representavam o Psol. Inquietas com os “posts” que manchavam a honra da vereadora dias depois da sua morte e do motorista Anderson Gomes, colocaram-se à disposição para a coleta de dados e conteúdos falsos disseminados. Em pouco mais de 24 horas, receberam mais de 20 mil “prints” com os conteúdos das “fake news” que difamavam Marielle. E já se depararam com o primeiro grande obstáculo para ajuizar a ação: “Existe uma crença popular de que o ‘print’ do conteúdo criminoso é suficiente. ‘Print’ não servia de nada, precisávamos dos link, de URLs, porque o Marco Civil da Internet obriga que ordem de remoção de conteúdo precisa ser específica na URL indicada”, explicou Evelyn.

De acordo com Samara, muitas vezes o juiz não tem o entendimento de que um mesmo conteúdo pode estar na rede em outro link, outro lugar ou perfil, exatamente porque “fake news” se alastram com rapidez e capilaridade. Segundo ela, quando se pede a remoção de um mesmo conteúdo, só que em outro link, o Judiciário muitas vezes reage dizendo que já se manifestou. “Não há a compreensão que se manifestaram sobre um link, mas que o conteúdo voltou para a internet em outras páginas, outros links. Ou seja, é um novo conteúdo.”

Se o primeiro grande problema enfrentado é a produção de provas, o segundo esbarra na escolha do foro jurisdicional em que a ação vai tramitar, que pode ser justiça comum ou juizado especial. As ações que tramitam nos juizados especiais são mais céleres, e uma liminar pode pedir a suspensão dos conteúdos falsos ou indevidos. No entanto, pondera Evelyn, “a produção de prova para identificar usuário é mais demorada”. “Não se consegue, neste procedimento gratuito dos juizados especiais, fazer identificação de IP, expedição de ofício para que empresas de conexão [telefonia] possam identificar o responsável. É a dificuldade de quem não pode arcar com os custos de conseguir processar civilmente ou criminalmente quem publicou o conteúdo”, explica.

Outro problema, acrescenta Samara, é o baixo patamar das indenizações nos juizados especiais, que não podem ultrapassar de 40 salários mínimos, por lei. Em média, apontam as advogadas, as sentenças de indenização oscilam entre R$ 5 mil e R$ 10 mil. Samara explica também que os juizados especiais não dispõem de perícia, ou seja, não se pode exigir essa análise para identificação dos responsáveis pelas “fake news”. Para uma ação de indenização por danos morais, é preciso apresentar o CPF e o endereço do responsável.

A ação que agora tramita no STJ é genérica, para responsabilização das plataformas. A ação por danos morais só poderá ocorrer após a identificação de todos esses IPs já listados, algo que elas ainda não conseguem também por obstáculos no processo. Há a dificuldade do cartório ter celeridade de produzir a prova em tempo hábil. O Marco Civil da Internet dá prazo de seis meses para empresas de conexão guardarem dados de usuário e de um ano para as empresas de aplicação internet, as mídias digitais, guardarem os IPs.

Outro problema que tiveram no processo é que o juiz, na primeira instância, se recusou a enviar ofício para cada empresas de telefonia alegando que elas não foram indicadas no processo como rés. Na segunda instância elas também perderam a batalha e, agora, recorreram ao STJ.

As duas advogadas integram a Comissão privacidade e proteção de dados da OAB Rio e esperam colaborar com as discussões no Congresso. “Tendo em vista que o Marco Civil da Internet é de 2014, e esse fenômeno das “fake news” não era tao difundido assim, naquele momento, o Legislativo não sentiu necessidade de regulamentar instrumentos que dessem conta dessa nova realidade. Essa é uma oportunidade legislativa para que, ao se enfrentar “fake news”, se ofereçam instrumentos processuais eficazes de enfrentamento, que garantam celeridade neste processo”, opinou Evelyn Melo.

Valor Econômico