Ativista denuncia “máquina de moer corpos negros”

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Foto: Reprodução

A notícia de que o número de homicídios no Brasil caiu somente para a população não negra surpreendeu mais pelo fato de se ter uma faixa da sociedade que experimenta um leve decréscimo de mortes violentas, que pela sua antítese: a informação de que o número de vítimas de assassinatos segue em alta entre os negros.

Os dados são do Atlas da Violência 2020, divulgado na última quinta-feira (27/08). De acordo com os dados, a taxa de homicídios de negros no Brasil saltou de 34 para 37,8 por 100 mil habitantes entre 2008 e 2018, o que representa aumento de 11,5% no período. Os assassinatos entre os não negros no mesmo comparativo registraram uma diminuição de 12,9% (de uma taxa de 15,9 para 13,9 mortes para cada grupo de 100 mil habitantes).

Para a militante baiana Liu Bitencourt, integrante do grupo Reaja, organização que iniciou a Marcha Nacional contra o Genocídio do Povo Negro, as informações da publicação só quantificam o que a comunidade periférica negra no Brasil já sabe: “O que a gente tem presenciado em nossas comunidades, o que a gente tem visto no país ao longo desses anos é uma distribuição desigual da morte e da liberdade no país”, destaca.

“Ao longo desses 15 anos de atuação da Reaja, há um genocídio protagonizado pelo Estado, seja através da sua ação ou da sua omissão em relação povo negro no território brasileiro. Isso a gente não tem dúvida, e o que Atlas vem é demonstrar isso quantitativamente. Então, a gente não recebeu com nenhuma surpresa, a despeito de todo suposto avanço que alguma parte da sociedade civil organizada tem comemorado, e inclusive os governos têm utilizado como prova de sua redenção”, observou.

“Se você for contar aqui em Salvador, o número de mortes, pegar o jornal num fim de semana, verá que a maior parte das mortes ocorrem em supostos confrontos com a Polícia Militar. A gente sabe que é sempre essa narrativa e que há uma facilidade de ligar uma pessoa negra ao conceito de crime. Morrem-se 15 a 20 pessoas num fim de semana na cidade de Salvador, sempre com esse mesmo discurso. Se isso não for genocídio, então é o que?”, questiona.

Para ela, a vida e a liberdade são os dois critérios essenciais para se medir o avanço em termos de direitos. Isso porque o trabalho desenvolvido pela organização tem focado nos números de assassinatos e no encarceramento.

“Os nossos critérios para considerar que nosso povo está numa condição melhor do que esteve são os critérios de vida e liberdade. A gente não pode falar de outra coisa enquanto nosso povo não tem direito à vida, enquanto nosso povo está sendo encarcerado em grandes proporções. Nos últimos anos, a gente viu o aumento exponencial da população negra privada de liberdade e um silêncio ensurdecedor em relação a isso. O que as pesquisas têm demonstrado é que as pessoas negras ocupam os piores lugares. São lugares pensados e construído para nós”, destacou.

Liu Bitencourt ainda aponta que a própria pesquisa estabelece a divisão entre uma parte da população “com direitos” e outra, “sem direitos”.

“Eu queria chamar atenção em relação a isso, porque a pesquisa coloca essa divisão. Ela estabelece dois grandes grupos: os negros e os não negros. São os que têm direito e os que não têm. Os humanos e os não humanos. Essa é a mensagem que o Estado passa através das suas próprias pesquisas. Não há nenhuma surpresa e nenhuma ingenuidade do Estado como havia há 15 anos, em que existia uma tentativa tanto do governo quanto de alguma parte da sociedade civil organizada e movimentos sociais de negar o genocídio nesse país. Hoje, só não vê quem não quer. Além disso, temos o próprio Estado confirmando esse genocídio”, observa.

“O que é direcionado para nós se apresentou na verdade como o DNA desse país: a desigualdade entre negros e brancos”.

Nas críticas, Liu não poupa o governo atual, nem os governos anteriores, como os do PT, no qual não houve arrefecimento da violência contra negros no país.

“Não só esse governo, mas todos, inclusive o dito popular democrático dos últimos anos. Todos empreenderam esforços enormes no aperfeiçoamento e aceleramento do genocídio que já estava em curso no país”, observou.

Ao comentar o atual incentivo, por parte do presidente Jair Bolsonaro, para o armamento da população, Liu aponta que essa é mais uma política genocida.

“É mais uma tentativa de acelerar o processo”, diz. “O armamento da população tem um objetivo claro e evidente de nos matar. Então, é só mais uma medida que se encaixa nesse grande processo de moer corpos pretos.”

O Atlas faz um alerta de que a política de liberação de armas hoje defendida pelo governo Bolsonaro e por seus apoiadores no Congresso é incompatível com a almejada diminuição de mortes. A perspectiva é de que, diante das leis que estão sendo propostas no Legislativo, ou em decretos do Executivo, esse número de homicídio passe a aumentar nos próximos anos.

Metrópoles