Bolsonaristas rejeitam vacina chinesa por antipatia (?!)

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Foto: Arte de Gustavo Amaral

Em julho de 2017, Ana Carolina Corrêa foi ao Facebook para fazer um desabafo. “O que você faria se o Estado te obrigasse a fazer algo com o seu filho sem garantir que não haverá consequências negativas a curto ou longo prazo?”, publicou. Na rede social Corrêa não deu mais detalhes, mas ela e seu marido, André Amorim, tinham acabado de sofrer uma ação civil pública por parte do Ministério Público (MP) de São Paulo. Provocado pelo conselho tutelar de Paulínia, no interior paulista, o MP obrigava os dois a vacinar o filho, de apenas 2 anos.

O casal se defendeu na Justiça, pregando o suposto direito de não vacinar a criança, “a partir de uma visão não intervencionista, respeitando a resposta imunológica natural do organismo”. Em 22 de outubro de 2018, os pais tiveram uma vitória. A juíza Marta Brandão Pistelli julgou o caso improcedente, justificando “não haver indícios de que os requeridos estejam se omitindo nos deveres que lhes foram impostos, enquanto entidade familiar”. O MP recorreu. O Tribunal de Justiça de São Paulo reverteu a decisão em 2019, mas o casal não desistiu e recorreu às instâncias superiores.

Hoje o caso está pronto para ser julgado pelo plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), depois de o ministro Luís Roberto Barroso ter proposto repercussão geral sobre a obrigatoriedade de pais vacinarem os filhos. O caso “Corrêa-Amorim contra o MP” tem tudo para entrar para a história — independentemente do lado para o qual a maioria do STF penda.

Enquanto a decisão judicial não é tomada, o movimento antivacinas, que sempre esteve nas margens, continua firme na propagação de teses contrárias ao que diz a ciência. Nos últimos tempos, porém, ganhou mais força com um reforço de peso e inesperado. Alguns grupos ligados ao bolsonarismo começaram uma campanha de desinformação na internet contra uma das vacinas que estão sendo pesquisadas na China. Para uma parte daqueles que são bombardeados pelos bolsonaristas com informações falsas, fica a mensagem de que as vacinas como um todo são prejudiciais. “As pessoas estão perdendo a noção da importância da vacinação”, disse Isabella Ballalai, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações.

No começo de agosto, David Nemer, professor da Universidade da Virgínia, nos Estados Unidos, notou um aumento de teorias conspiratórias sobre vacinas circulando entre apoiadores do presidente Jair Bolsonaro. Especialista em antropologia da tecnologia, ele monitora 1.830 grupos de WhatsApp.

“O ALVO DAS FAKE NEWS DOS BOLSONARISTAS É A FABRICANTE DE VACINAS QUE FEZ ACORDO COM DORIA, MAS AS INFORMAÇÕES FALSAS ACABAM MINANDO A CREDIBILIDADE DE TODAS AS VACINAS”

Em abril, 1.381 mensagens que citavam a palavra “vacina” circularam nesses canais bolsonaristas, das quais 329 se referiam a teorias da conspiração, com distorções e notícias falsas. Em julho, circularam 5.099 mensagens sobre vacinas, 866 delas envolvendo desinformação. “A demonização da vacina que está sendo pesquisada na China não é à toa. Está muito ligada à guerra cultural do bolsonarismo. E muito dessa guerra é incitado pelo Olavo de Carvalho (guru da extrema-direita)”, disse Nemer, que acompanha diariamente o debate em mais de 60 grupos bolsonaristas de WhatsApp para suas pesquisas qualitativas.

A empresa farmacêutica chinesa Sinovac fechou parceria com o Instituto Butantan, com apoio do governo de João Doria (PSDB) em São Paulo, para produção da tecnologia no Brasil. Dimas Covas, diretor do Butantan, tem dito que, se tudo correr bem, é factível o estado de São Paulo iniciar a vacinação em janeiro de 2021. Nessa corrida contra o vírus, a política tem andado junto. Em julho, Bolsonaro, numa transmissão ao vivo no Facebook, criticou o governador paulista por ter feito parceria “com aquele outro país”. Já seus seguidores têm sido mais explícitos.

O blogueiro Allan dos Santos, dono de um canal no YouTube com 1,1 milhão de inscritos, escreveu em seu Twitter na terça-feira 18 de agosto que a China está “inventando vacina para reduzir a população”, por causa de uma suposta queda na produção de alimentos. O presidente da Fundação Palmares, Sérgio Camargo, foi mais direto e fez um apelo público a seus familiares para que não tomassem a “vacina chinesa do Doria”. Bernardo Küster, que tem 926 mil inscritos em seu canal no YouTube, afirmou que a “vacina chinesa produzida às pressas por comunistas” faria cobaias no Brasil. Outros influenciadores conservadores como Paula Marisa, com 256 mil seguidores no Twitter, e Paulo Kogos, acompanhado por 125 mil pessoas no YouTube, frequentemente fazem chacota com a vacinação.

A desinformação é propagada também por parlamentares da ala bolsonarista do PSL, partido pelo qual Bolsonaro foi eleito. Em junho, o deputado federal Daniel Silveira, do Rio de Janeiro, publicou no Twitter que “o partido comunista chinês, junto com João Doria, começa a campanha presidencial de 2022 com a vacina contra a Covid-19. Os comunistas avançam de forma ostensiva contra os patriotas e o presidente Bolsonaro. Acreditem, a guerra que enfrentaremos será dantesca”.

Valéria Bolsonaro, deputada estadual por São Paulo, declarou na mesma época que “algo cheirava podre” na parceria entre o governo estadual e a empresa chinesa. Jessé Lopes, deputado estadual por Santa Catarina, conseguiu ir além na teoria da conspiração. Ele escreveu no Twitter que há comprovação de que o “Partido Genocida Chinês” utiliza “células de bebês abortados para suas mirabolantes vacinas”.

“MESMO COM OS MILHARES DE MORTES DIÁRIAS PROVOCADAS PELO CORONAVÍRUS EM TODO O MUNDO, 9% DOS BRASILEIROS DIZEM QUE NÃO TOMARIAM UMA VACINA SE ELA EXISTISSE”

A declaração é estapafúrdia e, para a maioria das pessoas, pode parecer criativa, mas soa familiar para quem estuda o movimento antivacina. “São teorias conspiratórias que circulam no submundo do movimento antivacina há muitos anos”, disse João Henrique Rafael Júnior, pesquisador da Universidade de São Paulo (USP) de Ribeirão Preto e idealizador da União Pró-Vacina, iniciativa criada para combater a desinformação. “Há grupos públicos no Facebook repletos de conteúdo falso. Lá você encontra todo tipo de desinformação, como pessoas recomendando dar água sanitária a crianças com autismo, que elas dizem ser causado por vacinas”, disse Rafael Júnior. “Estão lá para quem quiser acessar. Dá a entender que é considerado aceitável pelas plataformas digitais”, completou.

A franja radical do movimento antivacinas, que produz conteúdo e milita ativamente, é reduzida no Brasil, mas importa muitas teorias criadas nos Estados Unidos e na Europa. Apesar de grupos antivacina serem tão antigos quanto a própria vacinação, houve um marco que deu nova impulsão ao movimento. Em 1998, o médico inglês Andrew Wakefield publicou um artigo no prestigiado periódico científico Lancet relacionando a vacina tríplice viral ao autismo. Descobriu-se depois que o médico fraudara os dados do artigo. Em 2010, a licença de Wakefield foi cassada pelo Conselho Médico Britânico. O estrago, no entanto, já estava feito. As contestações em torno da segurança das vacinas voltaram com força com a publicação do artigo falso e resistem até hoje.

Nas duas últimas décadas, o território livre da internet serviu de repositório a outras teorias infundadas, que acabam desinformando um grupo muito heterogêneo de pessoas ao redor do mundo, fora da bolha radical. Trata-se de um fenômeno chamado de “hesitação à vacina”. “A quantidade de pessoas que podem ser vítimas da desinformação é considerável”, disse Dayane Machado, pesquisadora da Universidade de Campinas (Unicamp). É nesse grupo que os bolsonaristas antivacina chinesa podem fazer mais estragos.

Esse fenômeno preocupa autoridades sanitárias. A Organização Mundial da Saúde (OMS) publicou um relatório em 2019 listando a hesitação vacinal como uma das dez maiores ameaças à saúde global. No mesmo ano, um estudo da Sociedade Brasileira de Imunizações e da ONG Avaaz, encomendado ao Ibope, mostrou que sete em cada dez brasileiros acreditam em pelo menos uma informação imprecisa sobre vacinação. “É muito grave. A hesitação vacinal é um dos fatores que têm levado à queda na cobertura vacinal no Brasil”, afirmou Ballalai, vice-presidente da Sociedade Brasileira de Imunizações. É o caso do sarampo. A doença desapareceu do Brasil em razão de uma eficiente campanha de vacinação, mas ressurgiu recentemente. O país registrou 18.203 casos de sarampo em 2019, três anos depois de ter recebido o certificado de erradicação da doença pela Organização Pan-Americana da Saúde (Opas).

Em tempos de pandemia, o mundo inteiro corre em busca de imunização contra o coronavírus, que mata milhares de pessoas diariamente, mas 9% dos brasileiros dizem que não tomariam uma vacina contra a doença, segundo pesquisa do instituto Datafolha divulgada em meados de agosto. Para Rafael Júnior, da USP, é hora de autoridades públicas e especialistas em saúde trabalharem por campanhas de educação e conscientização sobre imunização, para reforçar a aceitação da sociedade quando as vacinas do coronavírus começarem a ser distribuídas. Na semana passada, uma empresa registrou na China a primeira patente da vacina contra a Covid-19. A Rússia informou ter começado a produzir o primeiro lote de sua vacina, em que pesem os questionamentos acerca da falta de transparência em seu desenvolvimento.

Um estudo publicado em março no Journal of Science Communication, os pesquisadores Sacha Altay e Camille Lakhlifi sustentam que pessoas hesitantes à vacina podem mudar de opinião se expostas a evidências científicas sobre os benefícios da vacinação. Num experimento com 175 voluntários declarados opositores de vacinas, Altay e Lakhlifi conseguiram convencer do contrário cerca de 60% deles. Há esperança.

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