Decisão do STF garante recurso de delatados contra delatores

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Foto: Reprodução/ Estadão

A Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) firmou importante entendimento no sentido de permitir que pessoas acusadas por delatores possam contestar a legalidade do acordo de delação que as prejudicou. O caso concreto remete à Operação Publicano, realizada pelo Ministério Público Estadual do Paraná para investigar um esquema de corrupção no fisco estadual. Um dos auditores fiscais investigados, Luiz Antônio de Souza, firmou acordo de delação com o MP e fez uma série de acusações contra outros fiscais.

Em outro momento do processo, no entanto, o próprio MP solicitou o rompimento do acordo quando descobriu que o delator havia contado mentiras, ocultado fatos e cometido mais crimes do que havia confessado. Em audiência, o delator acusou os promotores de terem cometido ilegalidades, como a supressão de afirmações de sua delação. Na sequência, Ministério público e delator firmaram um termo aditivo, tendo o colaborador retirado as acusações feitas anteriormente aos promotores. De modo surpreendente, a 3ª Vara Criminal de Londrina condenou os acusados apenas com base na delação que havia sido rescindida.

O relator do caso no STF foi o ministro Gilmar Mendes. Em seu voto, ele escreveu que “as práticas realizadas na operação aqui analisada são claramente temerárias e questionáveis, ao passo que ocasionaram inúmeras impugnações, colocando em risco a efetividade da persecução penal”. O ministro ainda explicou que as pessoas afetadas por um acordo de delação manifestamente ilegal devem poder recorrer ao Judiciário para fazer valer seus direitos. “Em caso de ilegalidade manifesta em acordo de colaboração premiada, o Poder Judiciário deve agir para a efetiva proteção de direitos fundamentais”, escreveu o ministro em seu voto, que foi acompanhado pelo ministro Ricardo Lewandowski.

O que ensejou a decisão histórica do STF foi o questionamento deste “aditivo” a uma delação já anulada. O viés da impetração foi no sentido de buscar limites ao abuso do direito negocial em razão de um aditamento permeado de ilegalidades e vícios insanáveis que demandavam da devida análise judicial por parte da Suprema Corte.

Seis pontos no caso em questão merecem destaque. O primeiro deles é que o pretenso delator já havia firmado, em 2 de maio de 2015, acordo de delação premiada com o Ministério Público do Paraná, logo após ter sido preso pela prática de crime de exploração sexual e demais condutas conexas. Este contrato bilateral propiciou ao colaborador vantagens de natureza jurídico-penal e originou como meio de obtenção de prova, a deflagração de diversas fases da denominada Operação Publicano, bem como afetou direitos de terceiros delatados, incluindo os Pacientes.

O segundo fator relevante é que, após um ano da vigência do acordo, o Ministério Público requereu ao Juízo processante a rescisão da delação premiada. Eis que o colaborador não só omitiu fatos, como também mentiu acerca de outros e extorquiu possíveis delatados no intuito de não relatar nenhum fato que lhes envolvesse criminalmente. Diante de tal comportamento gravoso e desleal do colaborador, o órgão acusatório rescindiu o contrato bilateral, tornando sem efeitos os benefícios outrora concedidos.

O terceiro ponto digno de nota é o fato de que em dezembro de 2016, o magistrado de piso proferiu sentença condenatória na Fase 1 da operação, com fundamento exclusivo no acordo rescindido. Mas, este é apenas o primeiro indicativo dos graves abusos oriundos do desrespeito aos requisitos da legalidade e regularidade norteadores de todo e qualquer negócio jurídico personalíssimo.

Quarta observação: em 6 de fevereiro de 2017, na fase instrutória da “Operação Publicano – Fase IV”, o então ex-colaborador, em audiência, recusou-se a falar em seu interrogatório sob o argumento de que o Ministério Público fraudou a produção probatória, deixando de juntar aos autos diversas declarações prestadas por ele em sede do acordo originário rescindido. Além de ter asseverado o envolvimento de pessoas com foro privilegiado devidamente ignoradas pelo órgão de acusação, para evitar, segundo a assertiva (a partir de então pouco confiável) do ex-colaborador, a remessa do feito ao Tribunal de Justiça do Paraná.

Ainda, disse que inúmeras tratativas do acordo foram feitas sem o acompanhamento de seu defensor. O que foi repetido pela sua irmã, também delatora e ré na Operação Publicano. Esta arguição trazida pelos ex-colaboradores evidencia de forma transparente o desrespeito aos requisitos da legalidade e regularidade essenciais ao implemento do negócio jurídico bilateral que devia estar assentado no critério da confiança e da boa-fé das partes.

O quinto item é que, dias após os fatos acima relatados, todos ocorridos na audiência de 6 de fevereiro de 2017, o Ministério Público do Paraná, surpreendentemente, encetou com os colaboradores um “Termo Aditivo de Acordo de Colaboração Premiada” datado de 23 de fevereiro de 2017. O termo permitiu aos dois delatores retomarem suas liberdades após a audiência de instrução que ocorreria em 3 de abril de 2017 e os obrigou a retirar tudo o que haviam dito em descrédito do Ministério Público –sobretudo no que se refere à lisura do Órgão Ministerial na colheita das declarações dos “delatores”.

O sexto ponto corrobora o quadro de desalento para a eficiência regular do instituto da colaboração premiada. O maior espanto dos impetrantes do habeas corpus analisado pelo STF não foi apenas o fato de o Ministério Público do Paraná propor um “aditivo” ao acordo que já sequer existia, mas também o Juízo da 3ª Vara Criminal de Londrina homologá-lo sem proceder à análise da regularidade e legalidade do acordo, em desobediência ao que preceitua a legislação.

Por motivo da sustentação oral realizada na Suprema Corte foi lido o despacho da homologação do malfadado termo aditivo. Consta do citado despacho: “Frise-se que se trata de homologação de aditivo do acordo já homologado por este Juízo.” Faltou, com o devido respeito incluir por parte do Magistrado a menção “rescindido”.

Depreende-se, portanto, que a homologação do termo aditivo do contrato originário rescindido (pela mesma autoridade judicial) passou a ter validade irrestrita, atingindo de forma ilegal e abusiva direitos de terceiros delatados, entre eles os direitos constitucionais sacrossantos da imagem e da liberdade dos Pacientes.

Todos esses pontos foram observados pelo ministro Gilmar Mendes, relator do caso. “Devemos, então, perceber como a atuação abusiva dos órgãos de investigação e acusação pode destruir qualquer viabilidade de perseguir e punir crimes eventualmente praticados”, ele escreveu em seu voto. Com a votação do julgamento encerrada com dois votos pela Concessão da Ordem e dois votos pela denegação, em respeito ao Regimento da Suprema Corte, o empate vem a beneficiar a defesa, razão pela qual se concedeu o Habeas Corpus.

Estadão