Marxismo cultural citado por bolsonaristas é fenômeno americano

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Foto: André Coelho / Agência O Globo

No longínquo ano de 2015 passei um tempinho em Washington D.C., terminando a pesquisa para a minha tese de doutorado: sobre a ascensão do movimento conservador norte-americano no pós-Segunda Guerra. Na verdade isso só foi possível porque contei com a generosidade infinita da minha orientadora, que me hospedou em sua casa em Bethesda (Maryland), onde estava morando com sua família na época.

Nesse momento eu estava decidido a entrevistar Samuel Goldman, professor de Ciência Política da Universidade George Washington e um dos maiores especialistas na história do movimento conservador norte-americano. Em uma tarde amena do verão daquele ano, Goldman me recebeu em seu gabinete. Conversamos por volta de uma hora, basicamente sobre problemas e questões muito específicas à minha tese.

A entrevista foi gravada e ficou bem boa, mas um tanto confusa, por conta do meu inglês trôpego e por estar mais ou menos circunscrita a questões acadêmicas um tanto herméticas. Acabei fazendo outra, de interesse mais geral, via e-mail — esta sim acabou sendo publicada na excelente revista Estudos Políticos, e está acessível a uma googlada de distância, para quem tiver tempo e esse tipo de interesse esotérico e diferentão.

Mas, enfim, o que eu gostaria de dizer é que li uma entrevista recente bem interessante com o professor Goldman, concedida à Providence, uma revista norte-americana de debates sobre cristianismo e política externa. O tópico discutido foi bem mais específico: a ideia de “marxismo cultural”, tão cara às direitas trumpista e bolsonarista. Em primeiro lugar, Goldman descreve a expressão “marxismo cultural” como uma espécie de atalho retórico usado para se referir aos intelectuais da Escola de Frankfurt, a turma da Teoria Crítica: os mais famosos, gente como Theodor Adorno, Max Horkheimer, Herbert Marcuse e alguns menos cotados, gente como Otto Kirchheimer e Leo Lowenthal.

A trajetória desses intelectuais marxistas, identificados com a chamada Teoria Crítica, descreveu mais ou menos o seguinte arco: eles haviam inicialmente estabelecido o Instituto de Pesquisa Social na Universidade de Frankfurt, mas em 1930 saíram da Alemanha e se estabeleceram nos EUA: primeiramente em Nova York, na Universidade de Columbia, e depois na Califórnia. A ideia de que aquilo que os conservadores chamam de “marxismo cultural” exerce uma influência dominante na academia norte-americana, pelo menos desde a década de 1960, é uma falsa ideia, ou pelo menos um argumento grosseiramente distorcido.

A genealogia do troço é a seguinte, como Goldman pontua: com o advento da Primeira Guerra Mundial, intelectuais marxistas se perguntaram o porquê de não ter ocorrido, de acordo com a previsão feita por Marx, 1) uma sublevação internacional da classe operária a fim de derrubar o capitalismo e 2) uma recusa massiva em lutar a guerra. No entanto, ao observar essa mesma classe trabalhadora combater ao lado e em nome de seus reis, de seus governos, e de seus países, com entusiasmo e com orgulho frequente, intelectuais como Antonio Gramsci e Georg Lukács chegaram à conclusão de que o pertencimento a uma determinada classe social não era condição suficiente para gerar uma consciência revolucionária.

A partir daí tomaram de empréstimo de Marx a sua ideia de “falsa consciência”, se referindo à crença de que a cultura pode atuar como um tipo de véu responsável por cobrir “os verdadeiros interesses” da classe operária. Na sequência esses intelectuais desenvolveram uma crítica cultural, um argumento que focava tanto na cultura quanto o marxismo tradicional focava na economia. Essa perspectiva culturalista acabaria sendo adotada mais tarde pelo pessoal da Teoria Crítica.

O argumento conservador padrão ignora intencionalmente um sem-número de sutilezas a respeito dessa turma. Em primeiro lugar, ninguém da Teoria Crítica jamais se referiu a si mesmo como “marxista cultural”. Em segundo lugar, de acordo com o argumento conservador, a agenda desses indivíduos era basicamente a de solapar as bases da Civilização Ocidental. No entanto, os intelectuais associados à Escola de Frankfurt se viam como defensores dessa mesma Civilização.

A ideia comum ao grupo era, isto sim, impedir que ela implodisse ou que fosse ameaçada pelo nazi-fascismo ou mesmo pelo comunismo soviético. Veja, esses intelectuais jamais se viram como revolucionários doutrinários. Na maior parte do tempo eram críticos à linha oficial do Partido Comunista em Moscou. Além disso, como Goldman recorda: “(…) sob muitos aspectos também eram surpreendentemente conservadores. Por exemplo, a ideia de defesa da liberdade para Adorno, em um contexto de uma sociedade de massas, significava ouvir Beethoven. No geral eles não eram admiradores da mídia de massa e da ideia de cultura popular”.

O fundamental, além disso tudo, é o fato de que não há base empírica, e na real é uma afirmação bem contestável, a ideia de que esses indivíduos exerceram essa influência toda, e ainda exercem, nas universidades norte-americanas. O primeiro conservador a desenvolver esse argumento foi William Lind. Na sequência gente como Pat Buchanan, o sujeito que inventou o trumpismo antes ainda dele existir com esse nome, popularizou o negócio entre os demais conservadores.

A direita americana, e agora por mimetismo a brasileira, usa “marxismo cultural” como uma expressão guarda-chuva, uma espécie de bordão do Zorra, a fim de designar praticamente tudo aquilo que ocorre no campo dos costumes e que ela é contra. Com frequência “marxismo cultural”, no contexto da política dos EUA, significa todas as mudanças sociais e culturais transcorridas nas últimas décadas, sobretudo com relação à discussão de gênero e sexualidade.

Agora, tem uma coisa, esse argumento a favor de uma liberação sexual em confronto com uma cultura produzida por uma sociedade burguesa talvez faça sentido quando nos referimos a alguém como Marcuse. Mas quando pensamos em Adorno ou Horkheimer, Goldman prudentemente lembra “[ambos] eram na verdade extremamente conservadores em seus entendimentos sobre sexo e relações de gênero.

Horkheimer escreveu, por exemplo, contra o controle da natalidade (…)”. Para Adorno e Horkheimer a mídia de massa e a cultura de consumo, ambos produtos do capitalismo, produziam uma cultura de autoindulgência, infantilização dos indivíduos e, no limite, uma erosão dos laços comunais e das virtudes cívicas na sociedade. Se esse argumento, que é um argumento bem semelhante ao de muitos conservadores, e meio que a antítese de um argumento revolucionário, por que diabos esse papo todo sobre“marxismo cultural”?

O negócio é o seguinte, todo o conjunto de mudanças sociais, execrado por conservadores e reacionários, ocorrido nos EUA nas últimas décadas, deve ser interpretado não como uma consequência direta das ideias de uma determinada cabala de intelectuais conspiradores (aliás, percebe como isso soa?), mas sim como o produto de mudanças sociais, muitas delas fortuitas, contingentes, que pouco ou nada têm a ver com marxismo de qualquer espécie.

Aqui no Brasil essa moda cafona pegou forte nos últimos anos. Alguns membros do atual governo, todos com cargos importantes na administração federal, já se referiram à urgência do combate ao marxismo cultural por aqui — aparentemente um tipo de câncer invisível, responsável por agir nas mais diversas esferas da sociedade, imagine você. O problema é que esse é só mais um conceito mal traduzido, entre muitos outros, importado às pressas das guerras culturais nos EUA. Se lá ele já distorce a realidade, em vez de explicá-la, e se lá ele já não faz muito sentido, você pode imaginar o estrago que fará por aqui.

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