Pazuello veta ONG respeitada no mundo todo

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Foto: Najara Araujo/Câmara dos Deputados

Era 20 de junho quando o secretário Especial de Saúde Indígena, o coronel da reserva do Exército Robson Santos da Silva, foi abordado no Vale do Javari por índios da etnia kanamari. Duas mulheres disseram para o militar: “Teus ‘parentes’ trouxeram a doença para nos contaminar.” O cacique da aldeia falou depois. Reclamou da falta de atendimento. O coronel escutou, escutou e disse depois que era preciso combater “fake news”.

Na semana passada, o mesmo oficial impediu que a organização não-governamental Médicos Sem Fronteira (MSF) mandasse uma equipe atender os índios de sete aldeias terenas em Mato Grosso do Sul. A desconfiança em relação às ONGs que atuam em terras indígenas ou na Amazônia é antiga e disseminada entre os militares. Imaginam que elas estão a serviço de potências estrangeiras ou atrás de dinheiro e de nossas riquezas. Nem mesmo a Médicos Sem Fronteira escapou dessas suspeitas?

A entidade que ganhou o Prêmio Nobel da Paz em 1999 parece não contar com a confiança do coronel enquanto os índios ficam desassistidos. Ao oferecer pessoal preparado para levar assistência aos terenas, os Médicos Sem Fronteiras estavam atendendo a um pedido que lhes havia sido feito pelas Defensorias Pública da União e do Mato Grosso do Sul. Era 27 de julho quando elas encaminharam ao Exército e à ONG um pedido de socorro: queriam ajuda humanitária para as aldeias.

Naquela data, o boletim de saúde indígena, criado pelo Conselho Terena, mostrava a existência de 170 casos de covid-19 nas aldeias, 63 deles na terra indígena Taunay Ipegue, em Aquidauana. Três semanas depois, a MSF recebeu como resposta do coronel que seu pessoal não poderia levar ajuda aos índios flagelados pela covid-19. Na versão da ONG, a turma da Secretaria Especial de Saúde Indígena (Sesai) não explicou por que rejeitou sua proposta de atender sete comunidades com cerca de 5 mil moradores.

Em vez disso, a Sesai quis que o pessoal cuidasse apenas de uma comunidade – a Aldeinha – com cerca de 500 pessoas e a menos de 5 km de Aquidauana. Buscando atender ao pedido das defensoras e de lideranças indígenas, os Médicos Sem Fronteira apresentaram nova proposta, no dia 19 de agosto. Mais ampla do que a primeira, a organização agora se oferece para cuidar de 7 mil pessoas em 11 comunidades indígenas. Não obteve ainda resposta dos militares que dominam a Saúde do Brasil.

Poucos governos do mundo vetaram a presença da MSF em suas fronteiras, como o Níger e a Ucrânia. Ela teve hospitais bombardeados na Síria, onde era proibida de atuar pelo ditador Bashar al-Assad e pelo grupo terrorista Estado Islâmico. Oficial da Arma de Cavalaria, o coronel Robson Santos da Silva foi assessor extraordinário de Abraham Weintraub, quando o dançarino dirigia a pasta da Educação. O ex-chefe do coronel é aquele sujeito que disse odiar a expressão “povos indígenas” e saiu às escondidas do Brasil.

Silva vive reclamando que sua gestão é vítima de fake news. E o Ministério Público Federal (MPF) decidiu investigar uma delas, disseminada entre os índios xavantes, em Mato Grosso. Trata-se do boato de que o Exército iria às aldeias aplicar uma vacina para exterminar os indígenas. O procurador da República Everton Pereira Aguiar Junior vai apurar quem espalhou a notícia. Em alguns lugares, os índios colocaram placas: “Proibida a vacinação”. Na aldeia Namunkurá e nas terras Maraiwatsédé e Sangradouro, os caciques recuaram de um acordo com a Sesai e impediram a realização de ações de saúde em seus territórios. E lá foi o coronel enfrentar a desconfiança que o próprio governo ajudou a espalhar.

Foi contra o desejo das comunidades que o presidente Jair Bolsonaro vetou a lei que determinava ao governo fornecer água e material de limpeza e higiene aos indígenas – veto defendido pelo coronel. Silva achava que a lei ia acabar com o trabalho de sua secretaria, como se ela fosse mais importante do que as pessoas que deve atender. Diante das críticas do MPF e da Defensoria à ação do governo, o ministro Luís Roberto Barroso, do STF, obrigou o Executivo a reformular seu plano, aumentando a proteção aos índios. A solução encontrada foi mais uma vez chamar a Força Terrestre, saída adotada por governantes incapazes de administrar problemas.

Foi nesse contexto que, em 17 de agosto, militares do Exército deixaram a base aérea de Brasília em direção à terra xavante. Tratava-se de uma missão interministerial (Defesa e Saúde), que levou 24 integrantes do serviço de Saúde da Força para combater a covid-19. Eles distribuíram 6.873 medicamentos nas aldeias. Ninguém esclareceu que remédios seriam esses em um governo que defende o uso da cloroquina contra a doença, um mero placebo contra o vírus Sars-Cov-2, segundo os cientistas.

E foi o laboratório do Exército que produziu o medicamento em larga escala no País. Assim, a militarização do atendimento aos indígenas é só mais uma marca da gestão do general da ativa Eduardo Pazuello no Ministério da Saúde. Desde que foi nomeado há cem dias para assumir interinamente a pasta, o oficial viu o número de mortos pelo novo vírus saltar de 14.417 para 114.772. A cada dia de sua gestão de Pazuello, o Brasil colecionou em média de 1 mil mortos.

Os números demonstram as consequências das escolhas do general: patrocinar a cloroquina, dar mal exemplo e participar de aglomerações em atos a favor do governo e distribuir dinheiro da covid-19 por meio das indicações de parlamentares. Ao colher o resultado de suas escolhas, a dupla Bolsonaro-Pazuello se comporta como Homer Simpson, quando o personagem afirma: “A culpa é minha, eu a coloco em quem eu quiser”. Assim, todos se tornam culpados pelo desastre, exceto os dois. Mas, afinal, quem foi mesmo que disse que era só uma gripezinha? Claro que foi o Homer. Só ele diria uma coisa dessas.

Estadão