Redes sociais obstruem a Justiça no Brasil

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Foto: REUTERS/Thomas White

Utilizadas por milhões de brasileiros há cerca de 15 anos, as redes sociais construíram uma relação controversa com o Judiciário, que ainda possui obstáculos com potencial para prejudicar e atrasar investigações criminais. Desde 2007, quando os conflitos tiveram início, juízes e desembargadores acirraram tentativas de obrigar plataformas a ceder dados de usuários ou remover conteúdos publicados por eles. Houve avanços na colaboração entre as duas partes, mas ainda é expressiva a frequência com que as empresas descumprem determinações judiciais.

Na semana passada, essa resistência jurídica instalou uma controvérsia entre a mais alta Corte do país e a maior rede social do mundo. O Facebook se recusou a bloquear globalmente as contas de usuários investigados pelo Supremo Tribunal Federal (STF) no chamado “inquérito das fake news”, sob o argumento de que, ao decidir em território brasileiro, o ministro Alexandre de Moraes não poderia restringir conteúdos em outros países.

Ao desobedecer a determinações, plataformas aumentam riscos de atrasos e interrupções de investigações

O magistrado subiu o tom, estipulou uma multa alta para o descumprimento e resolveu intimar pessoalmente o responsável brasileiro pela companhia. O recuo ocorreu, e as 12 páginas em questão, todas pertencentes a apoiadores do presidente Jair Bolsonaro, acabaram mundialmente bloqueadas.

Em curso no Ministério Público (MP) do Rio, a investigação sobre o assassinato da vereadora Marielle Franco, do PSOL, expõe outro conflito. Promotores consideram essencial que o Google forneça dados de usuários que estiveram na Transolímpica, na Zona Oeste carioca, em 2 de dezembro de 2018. O objetivo é identificar quem ocupava o carro utilizado no crime cometido em março daquele ano. A empresa recorreu ao Superior Tribunal de Justiça (STJ) alegando violação da privacidade de seus usuários, inclusive aqueles não relacionados ao crime. O MP argumenta que a quebra de sigilo se justificaria por atingir o interesse público. O caso será julgado ainda este mês.

Dados do centro de pesquisas Internetlab, voltado para direito e tecnologia, indicam que casos de descumprimentos não são incomuns e já tiveram como consequência ameaças de bloqueio das redes sociais pelo Judiciário — parte delas efetuadas temporariamente. Há registros de 13 casos, entre 2007 e 2018.

O “marco zero” foi um processo movido pela modelo Daniela Cicarelli contra o YouTube, após um vídeo íntimo dela circular na rede. O conteúdo saiu do ar, assim como o serviço, desativado temporariamente por ordem da Justiça de São Paulo.

Com o passar dos anos, o WhatsApp foi bloqueado três vezes por não atender a pedidos de interceptação e acesso a mensagens trocadas por usuários, protegidas por criptografia e inacessíveis a terceiros. Magistrados sugeriram impedir o acesso ao Facebook em três ocasiões, mas as intenções não se concretizaram. Na mais recente delas, em 2018, um juiz ameaçou bloquear a rede se não fossem excluídos todos os conteúdos ofensivos sobre a morte de Marielle.

Maria Isabel Tancredo, advogada associada no João Tancredo Escritório de Advocacia, analisa que muitas vezes, mesmo quando as decisões judicias são cumpridas, as redes sociais agem com uma resistência formal, através, por exemplo, de recursos que não agregam ao caso concreto e atrapalham o desenvolvimento processual, tanto civil quanto criminal.

— Há uma necessidade de interromper vícios de formalidade. O recurso deveria ser exceção, não uma ação automática. No Marco Civil da Internet houve a opção de levar o Judiciário para as discussões de conteúdos na internet. Não me parece adequado uma resistência às decisões em que o poder judiciário entendeu o conteúdo como infringente.

Diretor do Internetlab, Francisco Brito Cruz afirma que parte das determinações direcionadas às redes é vaga e generalista, desconsiderando o funcionamento técnico e a capacidade de armazenamento dos serviços digitais. A criptografia, por exemplo, inviabiliza a ideia de interceptar o WhatsApp.

— Quando há uma decisão para retirar todo o conteúdo que fale mal de alguém, sem identificá-lo, a plataforma vai ter que avaliar o que é ou não é falar mal da pessoa. Não há parâmetro — pontua Brito.

Na esteira dos conflitos, há ainda decisões que esbarram em jurisdições de outros países. Nos Estados Unidos, onde estão armazenados os dados publicados no Facebook, só se pode quebrar o sigilo delas diante de uma ordem judicial americana. O Brasil é signatário de um acordo de cooperação que o obriga a acionar tribunais de outros países em casos como esse, mas há magistrados que proferem decisões sem considerar esse trâmite.

— Se a empresa atende ao pedido brasileiro e fornece este dado, ela viola uma lei americana. Ela fica entre a cruz e a espada — explica Brito

Para o professor Ivar Hartmann, coordenador do Centro de Tecnologia e Sociedade (CTS) da FGV Direito Rio, uma mudança na relação entre as plataformas e o Judiciário dependeria da atuação do STF, com decisões que criem precedentes sobre a área, e de uma melhor compreensão dos magistrados sobre as possibilidades das redes sociais.

— Muitas vezes, o magistrado não para nem para pensar no que é a criptografia de ponta a ponta — avalia.

Procurado, o Facebook afirmou que “respeita a legislação local, colabora com autoridades e cumpre ordens judiciais válidas nos países em que tem operação”. A empresa destacou que a maioria dos casos que levaram a ameaças de bloqueio pela Justiça já teve decisões revertidas a seu favor.

O Google disse apoiar “de modo consistente o importante trabalho de autoridades investigativas” e que responde a solicitações oficiais “desde que respeitados os preceitos constitucionais e legais”. (*Estagiário sob supervisão de Leonardo Cazes)

O Globo