Especialistas dizem que “cristofobia” é balela

Todos os posts, Últimas notícias

Foto: GETTY IMAGES

Em um discurso na Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas (ONU) na terça-feira (22/09), o presidente Jair Bolsonaro afirmou que o Brasil é um país “cristão, conservador e tem na família a sua base”, embora a Constituição estabeleça que o país é laico e secular. Ele também fez um “apelo” à comunidade internacional “pela liberdade religiosa e combate à cristofobia.”

A fala de Bolsonaro é um aceno a sua base eleitoral evangélica. Esse segmento religioso, que representa 30% da população, é hoje uma das principais forças políticas do país e sua bancada representa cerca de 20% da Câmara dos Deputados.

Dentro das esferas evangélicas, o termo cristofobia tem sido usado para se referir a perseguições sofridas por adeptos do cristianismo em diversos países, principalmente em locais onde eles são minoria. Há inúmeros relatos de prisões, violência e assassinatos de cristãos na Ásia, em países do Oriente Médio e da África.

Porém, no Brasil, a chamada cristofobia também tem sido usada para se referir a episódios de preconceito e discriminação contra evangélicos, embora não exista no país um sistema estruturado de perseguição violenta contra esse setor religioso.

Todos os anos, a ONG internacional Portas Abertas, que auxilia cristãos que sofrem perseguição religiosa, produz um ranking de 50 países onde seguidores do cristianismo são mais perseguidos por causa de sua fé — o estudo é feito a partir de relatos de incidentes de violência. Desde que a lista começou a ser feita, há 25 anos, o Brasil nunca apareceu entre os 50 primeiros colocados.

Na edição 2020, por exemplo, os primeiros do ranking são Coreia do Norte, Afeganistão, Somália, Líbia e Paquistão. Em alguns dos países da lista, o próprio governo proíbe o cristianismo ou fomenta a perseguição contra cristãos por parte de grupos extremistas de outras religiões.

“Definimos perseguição quando o cristão experimenta, como resultado de sua identificação com Jesus Cristo, atitudes hostis, ações sistemáticas de cerceamento da liberdade, encarceramento, hostilidade verbal e violência do Estado e da família”, explica Marco Cruz, secretário-geral da ONG Portas Abertas.

Embora tenha um escritório em São Paulo, a entidade não atua no auxílio de cristãos no Brasil, e sim na divulgação do trabalho feito em 60 países, além arrecadar doações.

Para Cruz, que é evangélico, não dá para falar em “cristofobia” no Brasil. “Há casos isolados de preconceito, mas, no nosso contexto, não consideramos que exista no Brasil uma perseguição estruturada e sistemática contra cristãos, como em outros países. Nós podemos expressar nossa fé livremente, ninguém é expulso de algum local por ser cristão, nenhuma pessoa morre ou é presa no Brasil por ser cristã”, diz.

O pastor batista Levi Araújo concorda que não existe cristofobia no Brasil. “O que existe é ignorância, generalizações e preconceitos obtusos contra os evangélicos, e isso está custando caro para todos os brasileiros, evangélicos ou não, além de fortalecer os ‘terrivelmente evangélicos’, que são a maioria em nosso segmento”, afirmou.

“Terrivelmente evangélico” foi uma expressão usada pelo presidente Bolsonaro quando questionado sobre qual seria o perfil ideal para uma indicação sua a uma vaga o Supremo Tribunal Federal.

“Há outra perseguição que precisa ser denunciada: a perseguição dos terrivelmente evangélicos contra aqueles que não são assim. Os seguidores de Jesus de Nazaré estão sendo perseguidos pelos terrivelmente evangélicos”, afirmou Araújo, que tem se mostrado uma das vozes mais críticas à aliança entre o bolsonarismo e pastores conservadores de grande igrejas.

“Como se não bastasse, alguns ‘isentões’ que não querem bater de frente com os terrivelmente evangélicos, terminam, por ação ou omissão, vendendo os discípulos de Jesus de Nazaré por 30 moedas de prata”, diz.

Já Magno Paganelli, doutor em história social pela Universidade de São Paulo (USP), embora destaque que religiões afro-brasileiras sofram mais com discriminação, acredita que exista de fato uma cristofobia no Brasil, “se você considera o rigor do conceito de islamofobia, lgbtfobia e afins”.

Para ele, essa cristofobia se manifesta muitas vezes dentro dos setores acadêmicos, corporativos e de imprensa. Cita como exemplo o tratamento dado às nomeações dos ministros Milton Ribeiro (Educação) e André Mendonça (Justiça), além do presidente da Capes, Benedito Guimarães Aguiar Neto.

“Todos eles têm forte e admirável formação acadêmica e trajetória reconhecida em seus setores de atividade, mas a comunidade científica e os especialistas de plantão destacaram crenças pessoais e filiação religiosa. Isso é cristofobia explícita que precisa ser reconhecida e combatida”, afirma Paganelli.

“Evangélicos, especialmente os pentecostais, sempre foram chamados de povinho ignorante e de ‘vômito de Satanás’. O que fizeram? Foram para a universidade, preocuparam-se com suas carreiras até em detrimento do que a fé em suas igrejas previa. Mas hoje se deparam com preconceito cultural e religioso, porque o grupo X e Y é que devem ser pesquisados nas ciências sociais, uma vez entendido que ‘cristãos historicamente’ foram os responsáveis por tal e qual problema social e, portanto, não precisam ter voz”, diz.

Por outro lado, há quem acredite que o uso do termo cristofobia por alguns setores evangélicos e políticos do Brasil seja uma maneira de “tentar equiparar” a perseguição e a discriminação violenta sofrida por LGBTs, negros e outras minorias.

“É evidente que cristãos são perseguidos em outros países, mas isso não acontece no Brasil, onde eles são a esmagadora maioria”, diz Renan Quinalha, professor de Direito da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp).

“Sem negar que existam casos concretos e isolados de preconceito, mas me parece que essa operação de falar em cristofobia é falaciosa. Ainda mais guardando analogia com outras fobias, que são estruturais, institucionais e culturais no Brasil, como o racismo e LGBTfobia”, afirma.

“O que a gente tem visto, na verdade, é o oposto: setores religiosos têm se articulado com o bolsonarismo de maneira expressiva para desestabilizar o Estado laico, promovendo inclusive uma cruzada moral contra LGBTs, religiões afro-brasileiras, entre outros. Apesar disso, aparece esse discurso da cristofobia que tenta vitimizar um setor que não é vítima”.

BBC