No Rio, milícias vão virando problema maior que o tráfico

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Foto: Leo Pinheiro/Valor – 19/2/2019

A expansão do poder econômico e político das milícias no Rio de Janeiro representa uma face da moeda que, do outro lado, traz a brutalidade policial e uma série de outras ilegalidades cometidas por segmentos das forças de segurança, sustenta o antropólogo Luiz Eduardo Soares. Longe da clandestinidade, as relações entre a política fluminense e o crime organizado ganharam ares de normalidade a ponto de instituições democráticas, como as casas legislativas municipal e estadual, condecorarem milicianos, exemplifica o ex-secretário nacional de Segurança Pública.

“A face mais ostensiva, visível e chocante é a da premiação, da condecoração. Mas ela é só a culminância de um laço. É como a celebração de um casamento. Mas o namoro, o laço, o vínculo já existia”, sustenta ele. Para tentar reverter o enraizamento do crime na política do Rio, Soares defende uma reforma institucional radical das polícias. O equivalente a uma verdadeira refundação destas instituições. Seria necessário – entre outras medidas – desmilitarizá-las e criar uma carreira única, sem necessariamente fundir as polícias militar e civil.

Embora a infiltração do crime organizado na política fluminense anteceda em muito o surgimento das milícias, nas últimas duas décadas estas organizações vêm avançando sobre o território dos traficantes de drogas e constituindo o que Soares classifica como uma versão “repaginada dos currais eleitorais da Primeira República.”

Se antes os chefes do tráfico de drogas negociavam com candidatos a cargos eletivos o acesso para fazer campanha nas comunidades carentes, a milícia foi além. “Por que os traficantes faziam tradicionalmente assim? Porque eles não eram candidatos. Não tinham o próprio candidato. Quem desse mais [fazia campanha]. No caso das milícias é diferente. Eles têm os seus próprios candidatos. Eles se candidatam”, compara o antropólogo.

Ele conta ter ouvido repetidas vezes de moradores de comunidades histórias de milicianos ameaçando, em dia de votação, eleitores na porta de seções eleitorais. Dizendo que saberiam quem votou em quem. “Por mais que eu dissesse ‘ele não tem como saber, não existe isso’, como você vai explicar, convencer, de que a vida da pessoa não corre risco?”, diz.

Dados oficiais citados por Soares indicam que as milícias controlavam, ao fim do ano passado, um território maior (267,27 quilômetros quadrados) do que aquele ocupado pelo tráfico (233,13 km2).

Soares cita como ponto de partida para a infiltração do crime organizado na política do Rio de Janeiro a atuação de bicheiros em cidades da Baixada Fluminense, nas primeiras décadas da segunda metade do século 20. “Essa é uma área [Baixada] na qual os bicheiros agiam com mão de ferro, matando competidores com os quais havia alguma desavença, seja no plano dos negócios, seja no plano político”, diz o estudioso.

Durante a ditadura militar, a atuação conjunta das Forças Armadas e das polícias na repressão a opositores sedimentou práticas contrárias à Constituição Federal, como a tortura e as execuções, argumenta o antropólogo. A redemocratização do país, a partir de 1985, não representou nem de longe uma renovação na área de segurança pública.

“Figuras que são egressas da ditadura permanecem nas polícias e chegam às secretarias de segurança. E, por aí, aos governos”, recorda Soares. Isso porque a transição rumo à democracia foi um processo negociado no qual os militares exerceram influência relevante.

“Na negociação que resultou na promulgação da Constituição de 1988, os militares egressos da ditadura, que ainda exerciam influência importante, em função da correlação de forças, logram reservar uma área da institucionalidade para que não fosse tocada, modificada, pelo processo de democratização. Essa área reservada é justamente a da segurança pública”, justifica o antropólogo. “Vivemos com esse enclave da ditadura ao nosso lado que são as instituições policiais. E elas ocuparam esse espaço penetrando na política.”

A infiltração na política se dá como parte de uma estratégia de sobrevivência e de expansão de esquemas de corrupção policial, baseada em chantagem e ameaças, diz Soares, que entre 1999 e 2000 exerceu o cargo de coordenador estadual de Segurança e Cidadania na administração do governador Anthony Garotinho.

“Não é só a brutalidade policial que é o problema. Ela é, evidentemente, um problema dramático mas é [também] o outro lado da mesma moeda da corrupção, da autonomização de grupos que vão operar, na prática, longe das linhas de comando e controle, que vão prosperar, atrair colegas e vão criar suas próprias zonas de poder”, resume o especialista.

Valor Econômico