Pais que não vacinam não gostam dos filhos

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Foto: Reprodução/BBC

Deivson tinha por volta de um ano e meio quando apresentou os primeiros sintomas. A coriza e a febre resistiam aos remédios quando, de um dia para o outro, o garoto, que já andava por todo lado, perdeu os movimentos do corpo. “Ficou como um bebê de 1 mês, sabe? Molinho, molinho”, relembra a mãe, Devaneide Rodrigues Gonçalves.

Uma pediatra de Sousa, cidade do sertão paraibano onde a família mora desde aquela época, foi quem levantou a possibilidade de o garoto ter contraído poliomielite. Mas o diagnóstico só poderia ser confirmado por exames a seis horas de carro dali, na capital João Pessoa.

O ano era 1989, e a família só saberia muitos meses depois que Deivson era o último caso registrado de poliomielite no país.

Ao ver o filho caçula doente, Devaneide logo lembrou do irmão de cinco anos que perdeu na década de 1970 para a mesma doença. “Foi rápido demais. Coisa de uma semana meu irmão faleceu. Muito triste. Mas naquela época a medicina não era tão avançada, nem vacina tinha pra gente.”

Deivson passou meses internado no Hospital Universitário em João Pessoa, onde passou por diversas sessões de fisioterapia até “começar a fazer tudo de novo, sentar, engatinhar, andar se segurando e depois andar sozinho”, relembra sua mãe.

Sem sequelas físicas, Deivson, hoje com 32 anos, está prestes a se tornar bacharel em educação física e realizar o sonho de ser personal trainer.

A recuperação não significa que doença se tornou só uma lembrança para a família. Eles já participaram de eventos para incentivar a vacinação, e Deivson faz parte da entidade G14, associação de apoio a pacientes de poliomielite e síndrome pós-pólio, voltada para orientação, capacitação e suporte a pacientes, familiares e profissionais de saúde.

“A participação nesses eventos na Paraíba, por exemplo, é realmente para dar uma reforçada e uma alertada aos pais para vacinar seus filhos. É importante o meu testemunho para dar um incentivo para levar ao posto de vacinação”, afirma Deivson.

Para ele, as pessoas perderam a noção da gravidade da doença porque ela não circula mais há décadas. “O vírus é agressivo, ele deixa sequelas e as pessoas não estão ligando mais, ficaram relaxadas, mas corre muito risco de voltar. Não se deve baixar a guarda, principalmente com as crianças.”

Mãe e filho defendem que a vacinação seja obrigatória para todos, ao contrário do que defendeu o presidente Jair Bolsonaro (em relação a vacinas contra o novo coronavírus).

“O presidente é um pouco radical, né, mas é importantíssimo vacinar para evitar que aconteça o pior. É obrigação dos pais vacinar os filhos. Se for questão de amor mesmo, tem que vacinar. Ninguém quer ver seus entes queridos doentes, com sequelas ou morrendo. Para mim, deveria ser obrigação vacinar”, diz Deivson.

Vacinas contêm geralmente formas enfraquecidas ou inativadas de vírus ou bactérias que não colocam a saúde em risco. O corpo então identifica esses micróbios, produz defesas contra eles e cria uma espécie de memória de combate que servirá contra ataques futuros por anos ou décadas.

“Só quem não sabe o que eu passei deixa de vacinar seus filhos”, diz Devaneide. Na sua opinião, “quem não leva eles para tomar vacina é porque não quer o bem deles”, mas é dever do poder público fazer sua parte e incentivar, educar e fazer campanhas de vacinação.

“Em 2020, o Brasil deveria comemorar 30 anos sem pólio, mas, a nossa realidade é assustadora, com grande parte dos 5.570 municípios brasileiros com alto risco de reintrodução da doença por apresentarem cobertura vacinal abaixo dos níveis mínimos esperados”, afirma boletim da Secretaria da Saúde do Estado da Paraíba.

Segundo reportagem do jornal Folha de S.Paulo, em 2019, pela primeira vez em quase 20 anos, o Brasil não atingiu a meta para nenhuma das principais vacinas indicadas a crianças de até um ano.

A vacina contra a pólio, que tinha quase 100% de cobertura vacinal em 2008, atingiu o patamar de 82,7% em 2019.

Devaneide atribui a recuperação do filho caçula a um milagre divino e às três doses da vacina que ele já havia recebido antes de ficar doente. Ela diz só não sentir culpa porque seu filho estava com a carteira de vacinação em dia.

Não é possível concluir, décadas depois, o que exatamente aconteceu com Deivson, mas há algumas hipóteses.

“A vacina de pólio tem grande eficácia de maneira geral. Obviamente pode haver casos em que a pessoa não desenvolve a imunidade adequadamente: predisposição genética, falha vacinal por não ter cumprido o calendário completamente ou corretamente, e no caso da vacina oral algum problema na hora da administração (criança cuspiu, por exemplo) ou interação com alimentos ou medicamentos”, explica o imunologista Renato Astray, pesquisador do setor de vacinas do Instituto Butantan.

Segundo Astray, o fato de Deivson ter recuperado os movimentos plenamente pode significar que ele tinha algum nível de imunidade previamente à infecção. Provavelmente por causa das doses da vacina que tomou.

Para Astray, a possibilidade de a infecção ter sido causada pela vacina ou por problemas de armazenamento é bem baixa.

“Não acredito no armazenamento inadequado nesse caso pois a vacina é multidose aplicada em campanhas. Ou seja, ele não seria um caso isolado. Existe ainda a chance de pólio vacinal, mas isso deveria ter sido investigado durante a doença. Como é caso isolado, eu também tenderia a descartar.”

Segundo um estudo de dois pesquisadores da Universidade Federal da Bahia e de um do Ministério da Saúde, o risco observado para a poliomielite associada ao vírus vacinal (VAPP) entre 1995 e 2001 foi de 1 em 10 milhões para todas as doses tomadas. Apenas dez casos de VAPP foram registrados no Brasil nesse período de quase sete anos.

A vacinação contra a pólio continua ao redor do mundo porque 1 dos 3 tipos de poliovírus selvagem ainda circula pelo mundo, mais especificamente no Afeganistão e no Paquistão. Em agosto deste ano, após décadas de campanhas, o continente africano conseguiu ser declarado livre da doença por um órgão independente.

Sem a erradicação completa desses 3 tipos, a doença tem o potencial de afetar até 200 mil crianças por ano, segundo a Opas, braço da Organização Mundial da Saúde (OMS) para América Latina e Caribe.

Conhecida também como paralisia infantil, a poliomielite é uma doença infecciosa, contagiosa, viral e aguda. Os sintomas incluem febre, mal-estar, dor de cabeça, dor de garganta, dores no corpo, vômitos, diarreia, espasmos, rigidez na nuca e até mesmo meningite. De 90% a 95% dos casos são assintomáticos.

A característica mais conhecida da doença é o quadro de paralisia flácida que surge em até três dias, em geral de forma permanente nos membros inferiores. Essas sequelas físicas, que atingem menos de 1% dos pacientes, incluem dores nas articulações, pé torto, osteoporose, dificuldade de falar, atrofia muscular, crescimento diferente das pernas, entre outros.

Segundo a Opas, “1 em cada 200 infecções leva a uma paralisia irreversível (geralmente das pernas), e entre eles, 5% a 10% morrem por paralisia dos músculos respiratórios”.

Há duas décadas, pesquisadores descobriram também a existência de uma síndrome pós-poliomielite (SPP), que pode atingir pessoas que tiveram a doença com ou sem sintomas. Essa condição as afeta quando elas completam 40 anos de idade, mais ou menos.

Não há estatísticas sobre o número total de pessoas atingidas por essa síndrome, que pode apresentar sintomas como fraqueza muscular, problemas respiratórios e depressão.

Não há tratamento nem para a poliomielite, nem para a SPP, causada pelo desgaste dos neurônios motores que precisaram compensar os neurônios destruídos anos antes pelo vírus.

Apesar de ser uma doença antiga, a pólio não chamava a atenção da comunidade médica até o século 19, quando a medicina começou a se dividir em especialidades.

Foi na segunda metade daquele século que começaram a surgir hospitais e clínicas dedicados a áreas como a ortopedia, a neurologia e a pediatria.

Nesse novo contexto, as vítimas da pólio passaram a chamar a atenção dos médicos – especialmente os casos de paralisia infantil que afetavam crianças menores de 6 anos de idade, e principalmente quando os afetados eram meninos.

Muitos deles começavam a demonstrar os sintomas de forma repentina: iam dormir com a saúde perfeita, começavam a ter febre e de manhã acordavam sem conseguir sentir ou mover as pernas.

O modo de transmissão mais comum é de uma pessoa infectada para outra via rota fecal-oral, a exemplo do contato direto com água e comida contaminadas com fezes ou falhas de higiene pessoal. A doença também pode ser transmitida pela via oral-oral, por meio de tosse, espirro ou mesmo gotículas de água que saem ao falarmos.

As principais medidas preventivas são saneamento básico e vacinação, que levou à redução de 99% dos casos no mundo desde 1988.

O Brasil recebeu o certificado de país livre do vírus em 1994, quase 90 anos depois dos primeiros casos relatados em território nacional. Ao longo desse período, houve surtos inicialmente em grandes cidades e depois em localidades do interior, movimento em geral associado à urbanização.

A primeira vacina contra a poliomielite chegou ao país em 1955. Era a vacina injetável desenvolvida pelo médico americano Jonas Salk a partir do vírus inativado. Após três doses, 99% das pessoas desenvolviam imunidade. Na década seguinte chegaria a versão em gotinhas, desenvolvida por Albert Sabin com um vírus atenuado. Com ela, 95% das pessoas que receberam três doses ficavam imunes.

O primeiro plano do país de controle a doença surgiu no início dos anos 1970. Um artigo de três pesquisadores da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) sobre a erradicação da doença no país cita dados levantados em meados daquela década.

Foram identificados 1.643 casos em 18 Estados. “As principais características da doença no país, naquele momento, eram sua distribuição predominantemente urbana (74%), a concentração em menores de cinco anos, uma elevada proporção de casos em crianças não vacinadas (76%), a predominância do poliovírus do sorotipo 1 (87%) e uma elevada letalidade.”

A primeira campanha nacional de vacinação contra a poliomielite ocorreria em junho de 1980. Até então, a imunização nos Estados só atingia metade das crianças, em média. O plano então seria vacinar todas as crianças do país de zero a cinco anos em 14 de junho e 16 de agosto, independentemente de já ter tomado a vacina ou não. E assim elevar para 80% a cobertura vacinal.

Defendida por Albert Sabin, a estratégia de campanhas de vacinação em massa deu certo, e o número de casos caiu de 1.290 em 1980 para 122 no ano seguinte. Naquela década, a vacina em gotas ficou tão associada ao combate à poliomielite que deu origem ao personagem Zé Gotinha, criado em 1986 pelo artista plástico Darlan Rosa. O mascote se tornaria o principal rosto das campanhas de vacinação.

O país ainda enfrentaria surtos isolados de pólio até registrar seu último caso, em março de 1989. A estratégia bem-sucedida contra pólio seria exportada para outros países e teria outras consequências positivas, como o fortalecimento do programa nacional de imunização.

Desde 2011, entretanto, a vacinação contra a poliomielite não é só oral. Agora, a criação de Sabin é apenas o reforço da versão injetável, considerada por alguns especialistas como mais segura e com menos efeitos colaterais.

Segundo o bioquímico Ricardo Gazzinelli, coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia em Vacinas, pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz e professor da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), essa mudança na vacina só foi possível porque a doença está erradicada no Brasil.

“A vacina por via oral usa vírus vivo; a injetada contém o vírus ‘morto’. Ainda que as vacinas vivas induzam imunidade mais duradoura, quando você chega numa fase de erradicar uma doença, a viva é indesejada, pois a atenuação do vírus pode reverter, tornando-se patogênico de novo. E se espalhar na natureza novamente”, explicou em entrevista à BBC News Brasil em julho. “Neste caso, se opta por vacinas ‘mortas’.”

Por outro lado, as gotinhas têm um efeito da chamada “proteção de rebanho” — a criança que a ingere, acaba contribuindo para que o vírus não se espalhe. Isto porque na versão injetável, com o vírus inativado direto na corrente sanguínea, não ocorre uma colonização da mucosa intestinal.

A gotinha, por sua vez, faz isso com o vírus atenuado — que, eliminado pelas fezes espalha-se no ambiente, imunizando terceiros que tenham contato com ele. De quebra, esse vírus atenuado compete com o selvagem na natureza.

Para além da vacina utilizada, a queda na cobertura vacinal como um todo preocupa autoridades e especialistas quanto a um possível retorno da doença.

BBC