Americana mentora de Dallagnol diz que Lula é inocente

Todos os posts, Últimas notícias

 

Foto: Yale University/Divulgação

O Brasil encara um perigo de grande retrocesso, uma vez que não aproveitou o impulso da Operação Lava-Jato para fazer profundas reformas do sistema eleitoral e da administração pública, diz a economista e cientista política americana Susan Rose-Ackerman, codiretora do Centro de Direito, Lei e Políticas Públicas da Escola de Direito da Universidade Yale.

Uma das maiores especialistas em corrupção no mundo, Susan é conhecida no Brasil por sua influência sobre os procuradores da Lava-Jato. Em 2016, quando ela esteve no Brasil, o procurador Deltan Dallagnol escreveu em suas redes sociais recomendação do livro “Corrupção e Governo: Causas, Consequências e Reforma”, escrito por Susan Rose-Ackerman com a economista Bonnie J. Palifka, professora do Instituto Tecnológico de Monterrey, no México, e lançado no Brasil neste ano pela Editora FGV. Analisando países de todo o mundo e diversas estratégias de transparência e “accountability”, o livro é uma referência na área de estudos da corrupção.

No ano passado, Susan foi signatária de uma carta de juristas estrangeiros que, baseados nas revelações publicadas pelo The Intercept, exigia a libertação do ex-presidente Lula (PT), afirmando que seu julgamento não foi justo e consistia em perseguição política. “Muita gente a assinou, mas por algum motivo as pessoas conheciam o meu nome no Brasil e diziam: ‘Como ela pode ter assinado isso!’”, comenta.

Valor: A Lava-Jato começa e termina em comparações com a Itália da Mãos Limpas. No começo, o ex-juiz Sergio Moro se inspirava na atuação de seus pares italianos. No fim, a comparação é com a implosão do sistema político. Faz sentido?

Susan Rose-Ackerman: Não creio que a situação brasileira seja parecida com a da Itália. Houve críticas ao processo da Lava-Jato, segundo as quais havia por trás a tentativa de reduzir o poder do PT. No começo, achei as críticas injustas. É evidente que, se tem alguém fazendo coisas que não aprovamos, são aqueles que estão no poder. Mas minhas ideias a esse respeito sofreram forte abalo quando Sergio Moro aceitou o cargo de ministro da Justiça. Isso me surpreendeu. Talvez os brasileiros não tenham ficado tão surpresos, mas para mim era algo que fortalecia a crítica de que ele agia com parcialidade.

Valor: Agora Moro já não ocupa mais o cargo de ministro do governo Jair Bolsonaro (sem partido)…

Susan: Suponho que estivesse sendo demais para ele. A comparação com a Itália tem a ver com a relação entre, de um lado, acusar as pessoas que se envolveram em corrupção e, de outro, pensar em maneiras de apoiar as entidades e instituições políticas legítimas do país. É um problema quando tudo que se faz é derrubar as coisas. Quando nos concentramos demais no trabalho dos procuradores, sem pensar o suficiente no que fazer em seguida, como resolver as pontas soltas que ficaram. Dizer que é preciso conviver com os problemas, que o país é assim, não é alternativa. Foram escândalos enormes, não era a corrupção cotidiana das pessoas que precisam pagar propina para conseguir um horário no médico. O episódio da Lava-Jato reforça a necessidade de abraçar o projeto de reformar os sistemas político e jurídico, para além da parte de aplicar a lei e punir culpados. Na Itália, o problema não foi só a ascensão de [Silvio] Berlusconi. Como mostram meus colegas italianos, houve pouca reforma institucional depois da Mãos Limpas. Foi oportunidade perdida, porque não conseguiam concordar em nada. Essa é uma questão para o sistema político brasileiro.

“Uma das forças do Brasil tem sido o Ministério Público, com sua habilidade de investigar. Existe um risco”, diz Susan Rose-Ackerman

Valor: Uma semelhança entre os países é que a descoberta de que o sistema era corrupto trouxe uma certa paralisia e apatia. Como evitar esse resultado?

Susan: Não era necessário que as coisas se desenvolvessem assim nem na Itália, nem no Brasil. Em ambos os países, há grande número de pessoas respeitáveis e honestas envolvidas no governo, na política, nas universidades, na sociedade civil. São países de renda média. A Itália tem partes que são de renda alta, não estamos falando de países em que as estruturas do Estado e da sociedade são inexistentes ou desintegraram. Existem instituições muito boas. Estive na África do Sul por vários meses quando tentavam derrubar [o ex-presidente Jacob] Zuma. Na época, com suas instituições, conseguiam funcionar como país, por piores que fossem os problemas. Eram mais ricos, estáveis e fortes que qualquer outro lugar na África subsaariana. É importante não ser pessimista demais. É melhor construir com base nas boas instituições que o país possui.

Valor: Parte do pessimismo vem da percepção de que as estruturas de combate à corrupção sofrem erosão, com a perda de independência de instituições importantes, como a Polícia Federal e o Ministério Público. Quão resistentes são essas instituições?

Susan: O problema é grave. Também vemos isso nos EUA. Há a pergunta de quanto dano uma pessoa pode fazer quando não acredita na separação e independência dos poderes, o que deve ser pensado em paralelo com o problema de freios e contrapesos. E está relacionado ao problema da estrutura de partidos, que é determinante para ter um Legislativo que funcione como contrapeso ao poder do Executivo. Uma das forças do Brasil tem sido o Ministério Público, com sua habilidade de investigar. Existe um risco. Não estou em condições de fazer prognósticos, mas é preocupante. Há esperanças, porém. Vocês têm eleições, existe a possibilidade de mudar as coisas. O importante é que a população perceba o que ocorre e seja capaz de agir para evitar o pior.

Valor: Em 2019, a carta que a senhora assinou com especialistas estrangeiros questionando a legitimidade da prisão de Lula gerou fortes reações…

Susan: A carta teve publicidade, em ambos os lados do debate. E foi interessante, porque muita gente a assinou, mas por algum motivo as pessoas conheciam o meu nome no Brasil e diziam: “Como pode Susan Rose-Ackerman ter assinado isso!”.

Valor: Provavelmente porque os procuradores citavam seu nome com frequência.

Susan: Sim, certamente, e também porque eu falava muito com eles. A sensação que me deu foi de que se sentiram traídos. Mas assinamos aquela carta porque era importante que esclarecêssemos nossa posição. Aquilo que tinha parecido ser, ou que pelo menos eu tinha considerado como sendo uma série de processos imparciais, fundados em princípios jurídicos sólidos, na verdade começava a se parecer com uma intervenção direta na atividade política. Não me surpreendem as reações. Em ambos os lados. Mas é claro que nós, que estamos do lado de fora, nos sentimos modestos de comentar o país, mesmo se aquela carta não soou dessa maneira. Dizíamos: “Isto aqui é só uma carta, quem decide se vai levá-la em conta, se vai tomar alguma atitude, são vocês, brasileiros”. Mas era importante expressarmos essa preocupação, que era autêntica, a meu ver.

Valor: As atenções ficaram excessivamente concentradas na figura de Lula, individualmente?

Susan: É possível. Em todo caso, é importante que um partido não seja definido só em termos de um líder em particular. E penso que a marca de um bom líder é ser capaz de fomentar o surgimento de novas lideranças. Esse me parece ser um problema, hoje, no Brasil. Não estou dizendo que seja culpa de Lula. Mas há uma questão sobre como produzir sucessores ao longo do tempo. Quando um nome assume uma proporção como a de Lula, é ainda mais difícil.

Valor: Seu trabalho é reconhecido por pensar a corrupção além das punições. O tema é tratado de modo limitado?

Susan: Quando se pensa em corrupção, a primeira coisa que vem à mente das pessoas é a punição. Não permitir impunidade, processar criminosos com seriedade, dar o exemplo. Isso tem que ser parte de qualquer esforço contra a corrupção. Mas se o foco estiver excessivamente concentrado em apanhar as pessoas que já se comportaram mal no passado, não se está pensando com suficiente afinco no que as motivou a se envolver em corrupção, para além da constatação de que não se importam em quebrar a lei. É importante conseguir enxergar os casos individuais de corrupção como parte de problema sistêmico, porque esse tipo de problema requer soluções institucionais sistêmicas.

Valor: No caso brasileiro, após os escândalos revelados pela Operação Lava-Jato, as propostas de reforma são suficientemente sistêmicas?

Susan: O que conheço melhor, nesse campo, é o projeto de reforma apresentado pelos procuradores da Lava-Jato, com quem eu conversei bastante, na época.

Valor: As Dez Medidas Contra a Corrupção?

Susan: Os procuradores tinham projeto de reformas da legislação. Quando olhei, muitas propostas pareceram razoáveis no contexto da justiça criminal. Estavam relacionada ao problema da prescrição de crimes. Mas eram medidas que iam facilitar e acelerar as atividades de quem está processando e aplicando a lei. Algumas eram questionáveis, sobretudo no que dizia respeito à prisão preventiva. Mas o fato é que eram dirigidas para o lado da punição. E quando eu falava com os promotores sobre isso, dizendo “Vocês estão deixando de fora uma parte importante da estratégia”, eles respondiam: “Mas isso é normal, nós somos promotores”!

Valor: Era um projeto unilateral?

Susan: Melhor dizendo, não constituía uma resposta sistêmica, estruturada, para um problema sistêmico, estrutural. A verdadeira questão ficava sem resposta. É preciso equilibrar a resposta à corrupção. O que tento mostrar é que encontramos corrupção em lugares particulares, instituições particulares, situações particulares. É um contexto institucional específico. Não é coincidência que as pessoas mal-intencionadas se encontrem nessas funções. Há razões implícitas que explicam por que essas áreas são vulneráveis à corrupção.

Valor: Houve pequenas alterações no lado sistêmico com a minirreforma eleitoral que proibiu coligações proporcionais, instituiu a cláusula de barreira e proibiu doações empresariais de campanha. São mudanças na direção correta?

Susan: Vamos ter que ver os resultados para falar com maior segurança. A cláusula de barreira faz sentido, contanto que seja capaz de convencer os partidos menores a colaborar uns com os outros. Seria realmente lamentável se, ao fim, o país terminasse com um sem-número de candidaturas. Se a barreira está, por exemplo, em 5% e uma série de candidaturas tem 3%, 4%, então os votos de boa parte da população não contam. Isso seria perturbador.

Valor: E a proibição das alianças? Susan: Ela está conectada com a mesma questão. Um motivo pelo qual alguém poderia defender que haja muitos partidos é que cada pessoa seria capaz de encontrar um partido que se encaixa exatamente com o que ela pensa. Com isso, acabamos com mais de 30 partidos. A ideia é que haja alianças de verdade, por meio da fusão dos partidos, concorrendo como uma unidade. Assim, pelo menos se sinaliza aos eleitores que aquilo pelo qual estão votando é uma colaboração, um grupo de pessoas que não pensam do mesmo jeito, mas se juntaram.

Valor: E quanto à contribuição empresarial?

Susan: Fico curiosa para ver por qual caminho vai esse ponto. Sou um pouco cética em relação a isso, porque parece algo que não se consegue realmente aplicar. Nesse caso, tudo que se vai conseguir é forçar esse dinheiro para os subterrâneos, transformá-lo em pagamentos corruptos. A proibição pura e simples das doações, num sistema em que a riqueza privada tem um interesse direto no resultado das eleições, pode acabar sendo uma maneira de abrir as portas para a fraude. A não ser que haja uma quantia suficiente de dinheiro público sendo canalizada para as campanhas, e que isso seja feito de um modo imparcial. Não conheço o caso brasileiro em tantos detalhes para afirmar que esse risco está sendo tomado. Mas, em todo caso, é por isso que resisto à afirmação feita nos EUA sobre a corrupção do sistema, porque as pessoas estão seguindo as regras. Podemos dizer que é ruim haver tanto dinheiro corporativo na política, sem dúvida. Mas não creio que seja corrupção, no sentido de tentar quebrar as regras.

Valor: A Lava-Jato não se limitou ao Brasil, já que a Odebrecht atuava em outros países. O escândalo provocou respostas diferentes em outros países da América Latina?

Susan: O caso da Odebrecht colocou o tema da corrupção em larga escala sobre a mesa. Mas houve respostas diferentes nos países. E há uma segunda questão. Estamos descobrindo que em toda a região esse tipo de negociação era comum. Uma coisa interessante é que o acordo de leniência fechado pela Odebrecht nos EUA e na Suíça trouxe à tona informação sobre o que ocorria mundo afora, particularmente, Moçambique e Angola, países de língua portuguesa. Os números podem não ser precisos, mas dão noção do volume das transações. A maneira como essa informação foi usada variou de país a país na América Latina. Houve atividade no Peru, o que levou ao suicídio do presidente Alan García. O México, com o [ex-presidente Enrique] Peña Nieto, não fez nada. Com [o presidente, Andrés Manuel] López Obrador, começaram investigações e processos. Mais interessante é a função particular dessa corrupção.

Valor: Em que sentido?

Susan: Um economista chileno, Eduardo Engel, examinou como a Odebrecht atuava na região. Consegue ver como a empresa se beneficiou, mas não como os interlocutores do setor público se beneficiaram. O que ele mostra é que a principal vantagem obtida pela empresa com essa corrupção foi aumento de sua participação de mercado. Para cada negócio individual, eles não obtiveram um volume expressivo de lucro extra. Basicamente, conseguiram ganhar espaço nos mercados ao redor da região.

Valor Econômico