Justiça barra tentativa de organização suspeita de censurar Carnaval

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Foto: Werther Santan/Estadão

A juíza Camila Rodrigues Borges e Azevedo, da 19ª Vara Cível de São Paulo, julgou improcedente uma ação civil pública apresentada pela Liga Cristã Mundial que pedia que a Gaviões da Fiel fosse condenada a pagar indenização de R$ 5 milhões em razão do desfile de carnaval em 2019. A Liga Cristã alegava que a escola de samba praticou ‘blasfêmia’ pela representação de Lúcifer ‘vencendo’ Jesus.

Camila ponderou que ‘descabe ao Poder Judiciário apreciações qualitativas e interpretações de manifestações artísticas e culturais’, mas sim a ‘máxima proteção da liberdade de expressão’. Na decisão datada do último dia 20, a juíza fez ponderações sobre o carnaval e a cultura e chegou a citar o histórico desfile em que Beija-Flor levou à Sapucaí um Cristo coberto por um plástico preto.

“A proteção à religiosidade deve se dar de maneira objetiva, quando se trata de garantir a liberdade de culto ou de banir discursos de ódio, isto é, manifestações que ensejem a segregação e a discriminação do indivíduo no seio da sociedade, simplesmente em razão da fé que professa. Não é o caso dos autos, em que a autora pretende a tutela da “blasfêmia”. Ora, não é o Poder Judiciário o foro adequado para as discussões relativas às liturgias religiosas”, registrou.

Na ação apresentada à Justiça, a Liga Cristã Mundial alegava a Gaviões da Fiel praticou ‘blasfêmia’ por apresentar ‘um passista fantasiado de “Lúcifer”, que arrastava outro passista no chão – este fantasiado de “Jesus Cristo”‘. Nas palavras dos autores da ação, ‘o personagem “Lúcifer” agredia o personagem “Jesus Cristo” com empurrões, debochando e dando gargalhadas’. Segundo a Liga, a representação ‘reputa vilipendiar e escarnecer do sentimento religioso dos cristãos’.

Em contrapartida a escola de samba argumentou que o samba-enredo era uma reapresentação de enredo de 1994, acerca da ‘história/lenda do tabaco’, e que o ‘conteúdo censurado’ pela Liga Cristã é simbólico, elaborado em alusão ao embate entre o bem e o mal. O nome do samba-enredo apresentado pela escola em 2019 era ‘A Saliva do Santo e o Veneno da Serpente’. Para a Gaviões, a ‘causa de pedir’ estava fundamentada em fundamentalismo religioso.

Ao analisar o caso, a juíza Camila Rodrigues Borges e Azevedo ponderou que o Carnaval e suas representações são uma expressão artística e cultural, ‘independentemente das valorações positivas ou negativas que cada um faça de acordo com suas individualidades’. Ela frisou ainda que o Brasil é uma república laica, e que ‘os julgamentos do Poder Judiciário devem ser neutros quanto às valorações que as religiões fazem dos eventos externos aos templos e cultos’.

Nessa linha, Camilla destacou que o compartilhava da sensação que o Ministério Público teve ao ler a petição inicial da Liga Cristã. Segundo a magistrada, a leitura da peça ‘faz a pretensão parecer um retorno às práticas inquisitoriais da Idade Média para perseguição dos dissidentes da fé católica’.

“Após uma longa caminhada histórica feita pela Humanidade, o direito de liberdade de expressão fora sedimentado como uma conquista das sociedades evoluídas e organizadas e qualquer retrocesso deve ser rechaçado”, registrou a juíza em sua decisão.

Em seu parecer a Promotoria apontou ainda que era necessário ‘desqualificar a autora como titular dos interesses cristãos brasileiros’ uma vez que a Liga faz o pedido ‘a partir de seu singular entendimento da religião católica, não se podendo cogitar sequer que o faça em consonância com o entendimento do Vaticano ou da CNBB’.

“Seja porque institucional e juridicamente não há o que lhe conceda tal prerrogativa, seja porque sua interpretação fundamentalista do catolicismo romano e a leitura que faz da apresentação artística é exclusivamente sua, longe estando de um consenso entre as inúmeras denominações cristãs existentes no Brasil”, registrou a manifestação do MP-SP.

Segundo Camilla, ‘no aparente conflito entre a liberdade de expressão e a representação artística dos dogmas de uma dada religião, emerge como conclusão que a expressão artística não pode estar condicionada ou limitada às representações tal como pré-estabelecidas por outrem’.

A juíza chega a citar em sua decisão o escritor José Saramago, ganhador de Nobel de Literatura e do Prêmio Camões de Língua Portuguesa, que era considerado autor de obras ‘anticatólicas’ e chegou a ser excomungado em razão das mesmas. “Do episódio, percebe-se claramente que nem sempre a arte e seus gênios estão a serviço do que se convencionou como ‘certo’, ‘possível’, ‘aceito’ e ‘admissível’”, ponderou.

Já sobre a interpretação da encenação questionada, Camila apontou que tal avaliação cabe aos críticos de arte, aos jurados das escolas de samba, aos comentaristas das transmissões televisivas. “Se é uma encenação do bem contra o mal; se Jesus ao final efetivamente é derrotado ou não; se é uma crítica social ou se é uma provocação ao pensamento reflexivo: tudo isso transborda os limites da análise jurídica”, apontou.

Nessa linha, a juíza lembra do histórico desfile da Beija-Flor, ‘Ratos e Urubus, Larguem Minha Fantasia’, em 1989. Na ocasião, a escola pretendia apresentar uma imagem do Cristo Redentor caracterizado como mendigo, mas foi ‘desautorizada’ pelo Judiciário em ação impetrada pela Igreja. A peça foi coberta por um plástico preto e levada ao desfile com uma faixa que dizia: ‘Mesmo proibido, olhai por nós’. A ideia foi do carnvalesco Joãosinho Trinta.

“Mesmo que os expectadores não visualizassem a peça tal como fora elaborada, pois oculta em plástico, a polêmica foi igual ou até maior, já que tanto o carnavalesco quanto a escola são reconhecidos, até hoje, pelo referido desfile”, registrou.

Estadão