Bolsonaro de 2017 explica a opinião de 2018 sobre racismo

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Foto: Reprodução

Jair Bolsonaro e Hamilton Mourão não reconhecem o racismo no Brasil porque preferem não enxergá-lo por razões políticas – acreditam que ele é um discurso associado à esquerda – e porque o veem distante dos quartéis, onde passaram parte de suas vidas. Mas não se pode unir a incompreensão à conveniência e, assim, negar a realidade. Dois vídeos com trechos inéditos de entrevistas à TV Estadão podem trazer luz para essa discussão. E esclarecer o pensamento de Bolsonaro e dos generais que o apoiam.

No primeiro deles, o próprio presidente, ainda deputado, esforça-se, em 2017, para mostrar o papel que ele atribui no quotidiano e na história do racismo aos negros, em vez de discutir o dos brancos. “Daltônico” – ma non troppo –, Bolsonaro põe a culpa na atitude dos negros pelas revistas abusivas em shoppings feitas por segurança e nas ruas por policiais. A desconfiança não seria baseada na cor da pele do “suspeito”. Diz não negar o preconceito, mas afirma que ele não é importante para resolver os problemas dos afrodescendentes no País.

O outro vídeo é do general Octavio Pereira da Costa, veterano da Força Expedicionária Brasileira (FEB). Seu relato inédito é de 2012 e ajuda a entender o argumento de Hamilton Mourão, ao negar o racismo por aqui. Costa faz um paralelo entre o Exército do Brasil e o americano na 2.ª Guerra Mundial. Mas, ao contrário do vice-presidente, relata um caso vergonhoso, ainda que o trate como episódico, que provocou uma crise na FEB.

Mourão parece desconhecer a história. Ele e Bolsonaro podem não acreditar em documentos da instituição, como os estudados pelo professor Fernando da Silva Rodrigues, pesquisador do Arquivo Histórico da Força Terrestre, sobre o racismo na seleção de oficiais durante o Estado Novo – judeus e negros e até filhos de divorciados tiveram o ingresso dificultado na Academia. Mas podem ouvir o relato de quem faz parte da história do País, como o general Costa.

Era o dia 24 de maio de 1944. Pouco antes do embarque para a Itália, a FEB ia desfilar no centro do Rio com um grupamento motorizado e outro a pé, diante de convidados americanos. O general Zenóbio da Costa, chefe da Infantaria Divisionária, resolveu retirar das viaturas os soldados negros. Queria que desfilassem a pé, onde poderiam passar despercebidos na multidão de pracinhas.

Octavio Costa era então tenente do 11.º Regimento de Infantaria, uma das unidades expedicionárias. Na Itália, os pracinhas combateram ao lado da 92.ª Divisão de Infantaria dos EUA, uma tropa segregada, só de negros, cujos oficiais eram brancos. No Brasil, brancos e negros lutavam lado a lado. “Quando eu via aquilo era um motivo de orgulho nacional brasileiro. Eu ouvia os americanos dizerem: ‘O negro brasileiro é diferente do nosso’. Eles menosprezavam os batalhões negros, e você pensar que poucas décadas depois têm um presidente negro…”

O contraste entre americanos e brasileiros faz parte da narrativa de Mourão e de Bolsonaro, mas não só deles. O ex-comandante do Exército Eduardo Villas Bôas pensa da mesma forma. Acha que falar em racismo e homofobia é patrocinar conflitos. E vê o discurso como manobra da esquerda, que substitui a luta de classes pela do sexo e da raça. Negar problemas incômodos, no entanto, não devia ser uma forma de militares e políticos se relacionarem com o mundo.

É o negacionismo que apaga o Amapá há 20 dias. Há um almirante no Ministério das Minas e Energia. De mágico da infraestrutura, transforma-se em artífice da escuridão? Nega-se a ciência e, nos depósitos da Saúde, 6,8 milhões de teste de covid-19 podem ser perdidos pelo general Pazuello, especialista em logística. É mais fácil desmentir a queima da Amazônia, culpar estrangeiros e a propaganda de maus brasileiros do que enfrentar que a visão conspiratória antiesquerdista levou à leniência com bandidos ambientais e ameaça, de forma real, o comércio exterior do País. Enfim, ao negar o racismo, o bolsonarismo não acaba com o problema, apenas cria palanque para a oposição.

Diz o general Costa, que completou 100 anos em julho: “Nós tivemos um episódio negro. Em um dos últimos ensaios para o desfile, o general Zenóbio, que era um bom homem, mas que tinha as suas bobagens, se dirigiu ao destacamento motorizado e viu negros nos jipes, carros e viaturas e pediu ao comandante que desse um jeito e tirasse os negros e os mandasse para o grupamento a pé. Ele não queria que os americanos vissem o grupamento cheio de negros. Foi uma tolice sem nome”.

Costa ia participar do desfile quando o oficial com a ordem de Zenóbio viu a tropa do tenente em forma e cobrou: “Vocês não tiraram os negros.” E renovou a determinação. “Foi um caos, uma calamidade. Vários oficiais nossos se apresentaram presos porque não queriam cumprir aquela ordem. Não deu certo e não desfilamos. Essa parte da tropa não desfilou.” O episódio abriu uma crise na FEB. Costa atribui a ele o fato de o 6.º Regimento de Infantaria ter sido mandado à Itália antes do 1.º Regimento, pois o comandante deste, coronel Caiado de Castro, desentendera-se com Zenóbio em razão da ordem contra os negros.

Bolsonaro e Mourão podem dizer que Zenóbio é passado. Eis a mágica: sem discussão, o problema não existe. Pode-se, então, sugerir – como Mourão – que índios são indolentes e os negros, malandros. Sem ficar ruborizado. Acochambrar é mais fácil – ou compartilhar meme no zap… Daí para se enfatizar a responsabilidade de africanos, recusando-se a discutir a dos brancos pelo tráfico negreiro é um passo. Foi o que Bolsonaro fez em 2017, para o Estadão.

A entrevista com o deputado Bolsonaro caminhava para seu fim. Foram três horas, transformadas no especial Um Fantasma Ronda o Planalto. O candidato à Presidência falou da reforma Previdência ao casamento gay. Bolsonaro então se esquivava de perguntas sobre o racismo, lembrando o que dizia ser o papel dos negros na escravidão. Mas qual o papel dos brancos na escravidão do negro? “Foi uma outra época. Quem pode te dar uma reposta sobre isso para você é o Mister Catra. Falou o Mister Catra que quem aprisionava negro na África era o próprio negro e não o branco”, disse o então candidato.

Nenhuma palavra de Bolsonaro sobre o papel de comerciantes portugueses ou ingleses no aprisionamento, transporte e venda de negros escravos para as plantações do Novo Mundo. Ignora a história do senhor de engenho descrita por Gilberto Freyre em Casa Grande & Senzala, que resolveu matar dois de seus escravos para que, à falta de óleo de baleia, o sangue e o suor de seus negros dessem ao alicerce da casa grande a sua consistência de fortaleza.

Bolsonaro manteve o discurso. É o estilo. Sempre que deseja dizer algo, mas tem receio da consequência, usa o truque de citar outras pessoas para passar a mensagem. Se a polêmica vier, logo diz que não foi ele quem afirmou; apenas repetiu. Na entrevista, usou mais uma vez a tática. “Quem caçava negro aqui era o próprio negro. Quem escravizou negro aqui, segundo Mister Catra, foi o negro, que se eu falo dá escândalo.”

Depois, citou o cantor Agnaldo Timóteo e o ator Morgan Freeman. “O Agnaldo Timóteo diz que o maior racista é o próprio negro, quando o elemento faz um grupo de pagode bota uma loirinha embaixo do braço. Essa questão de racismo no Brasil, eu vou na linha do Morgan Freeman, quando ele falou como é que você combate o racismo: é não tocando no assunto.” Freeman mudou de ideia em 5 de junho, após a morte de George Floyd, nos EUA. Bolsonaro não, como demonstra sua fala no G-20, após o assassinato de João Batista Rodrigues Freitas, por seguranças do Carrefour, em Porto Alegre.

O presidente foi ainda perguntado sobre relatos de negros que dizem ser submetidos a revistas e a vigilância vexatórias de seguranças e policiais em shoppings e nas ruas. Ao não se discutir o problema, não se perpetua esse comportamento? Sua reposta: “Esses seguranças são todos brancos? Eu olho com desconfiança em muitos momentos, pois não interessa a cor da pele do elemento, mas a atitude do elemento. A princípio, o policial experiente sabe se a pessoa quer fazer algo de errado. É tirocínio. É a vivência dele. Esse tipo de abordagem (racista) desconheço existir.”

E a empatia pelas vítimas? O fato de alguém ser branco e ter olhos claros não altera nada? “É a sua atitude”, insistiu o presidente. “O pessoal usa a causa negra para se promover. Aqui teve a CPI de Extermínio de Jovens e Negros. E aí eu perguntei: Como é na Bahia? Acho que 80% dos policiais da Bahia são afrodescendentes. E o que há de errado de um policial afrodescendente dar uma revista em um afrodescendente na Bahia?” Bolsonaro devia conhecer a tragédia do dentista negro Flávio Santana, filho do sargento Jonas, da PM paulista, um jovem executado por policiais que pensavam ser ele um ladrão… Se fosse branco, Flávio, de 28 anos, estaria vivo.

Seria então uma coincidência? O presidente, então, pela primeira vez, fez uma concessão. “Não é coincidência. Existe preconceito, mas, no meu entender, se combate se não tocar no assunto.” Em seguida, disse: “O problema do povo brasileiro é salário, fome, água. Querem botar essas coisas na frente do que discutir o roubo dessas riquezas”. Bolsonaro terminou contando lembranças dos quartéis, nos dias 13 de Maio. “O pau cantava na pelada, negros contra brancos. Acabou a partida era a confraternização na cantina. Hoje você fala negão, o mundo cai na sua cabeça, acaba com minha carreira política.”

O mundo dos quartéis de Bolsonaro parece funcionar como uma Nação dentro da Nação, não para refletir a sociedade, mas para negá-la, isolando os homens de farda da vida nas ruas e da história do País que faz do preto e do pardo um contingente enorme de soldados e cabos, mas de poucos generais. Essas tensões não são alheias à nossa história, nem importadas. Fazem parte do dia a dia da sociedade, dissimuladas, como os soldados negros no desfile da FEB. “Os generais também cometem tolices”, concluiu o general Costa.

A nenhum governante ou militar é permitido fechar os olhos aos dramas dos que construíram o País, livres e escravos, de Guararapes ao Paraguai. Uma das mais belas imagens da FEB é a do soldado Francisco de Paula, negro da mesma guarnição do obuseiro calibre 105 mm do cabo Adão Rosa da Rocha (outro negro), que disparou o primeiro tiro da artilharia brasileira na Itália contra o inimigo nazista. Em cima da foto de Paula, na capa da edição de 24 de janeiro de 1945, o jornal O Cruzeiro do Sul, órgão oficial da tropa, trazia o título: “A nossa resposta.”

Quem pôs Adão, o cabo atirador negro do 2.º Grupo do 1.º Regimento de Obuses, para dar início à ação da FEB na Itália até podia não saber o que estava fazendo. Mas não escondeu que a luta do Exército era também contra o racismo. E fazia isso por meio de um símbolo poderoso, o mesmo exemplo legado pelos que se recusaram a cumprir a ordem de Zenóbio ou por quem deu ao cabo a primazia do primeiro disparo contra o nazifascismo. Eis os exemplos da FEB. Eis o que falta a Bolsonaro e a Mourão.

Estadão

 

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