Gilmar detém pedidos de vista que afetam Lula e 01

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Foto: Reuters

Dois recursos fundamentais para o futuro do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva e do senador Flávio Bolsonaro (filho mais velho do presidente Jair Bolsonaro) aguardam decisão do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Gilmar Mendes para serem julgados pela Segunda Turma da Corte.

A demora pode ter consequências para o resultado dos julgamentos, já que a composição do colegiado mudou em novembro com a saída do ministro Celso de Mello, que se aposentou, e a entrada de Kássio Nunes Marques, primeiro integrante do STF indicado pelo presidente Jair Bolsonaro.

No caso de Lula, o recurso apresentado por sua defesa é um habeas corpus (HC) que questiona a imparcialidade do ex-juiz Sergio Moro, tese que, se for aceita, pode anular condenações contra o petista em processos da Operação Lava Jato. A solicitação de Lula começou a ser julgada pela Segunda Turma há dois anos, em dezembro de 2018, quando ele ainda estava preso, mas o julgamento foi paralisado por pedido de vista (mais tempo para analisar o caso) de Mendes, quando havia dois votos contra o HC, proferidos por Edson Fachin e Cármen Lúcia.

No caso de Flávio Bolsonaro, filho mais velho do presidente, trata-se de uma reclamação do Ministério Público do Rio de Janeiro (MP-RJ) que questiona o foro privilegiado de deputado estadual dado ao hoje senador pelo Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro (TJ-RJ) na investigação que apura se houve um esquema de lavagem de dinheiro e rachadinha (desvio de salário de servidores) no antigo gabinete que Flávio ocupava como deputado estadual na Assembleia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro (Alerj).

A reclamação é um recurso disponível quando uma decisão judicial contraria um julgamento do Supremo — para o Ministério Público, o TJ-RJ não seguiu decisão de 2018 do STF que restringiu o alcance do foro privilegiado apenas a crimes relacionados ao atual mandato político. O pedido do MP-RJ para derrubada do foro especial de Flávio foi apresentado no final de junho e, após manifestação da Procuradoria-Geral da República (PGR), está liberado para decisão de Mendes (com autos “conclusos ao relator”) desde 27 de agosto.

Juristas ouvidos pela BBC News Brasil notam que o STF tem um volume grande de processos para ser analisado. Segundo eles, isso acaba dando poder aos ministros de priorizar ou não determinado julgamento, abrindo espaço para questionamentos sobre atuação política na decisão de segurar ou agilizar determinadas ações e recursos.

Mendes atuou com agilidade, por exemplo, quando impediu em 2016 que Lula se tornasse ministro no governo da então presidente Dilma Rousseff. A decisão liminar (provisória), concedida individualmente, atendeu a mandados de segurança de PSDB e PPS (atual Cidadania), contrariando entendimento do próprio ministro que, até então, não considerava que partidos políticos pudessem usar esse tipo de recurso.

O MP-RJ também solicitou na reclamação sobre o foro de Flávio uma decisão rápida por meio de liminar de Mendes, mas o ministro não usou esse caminho até agora, indicando que vai levar o caso diretamente para análise da Segunda Turma.

Para o professor associado do Insper Ivar Hartmann, a demora no julgamento dos recursos envolvendo Lula e Flávio não tem relação com excesso de ações no gabinete de Mendes. Segundo ele, cada ministro tem equipes de cerca de 30 pessoas, com assessores jurídicos e analistas processuais, para auxiliar no andamento dos casos.

“Tempo de conclusão (de análise de recursos para levar a julgamento) e tempo de pedido de vista não tem grande relação com carga de trabalho. São mecanismos usados pelos ministros para controlar a agenda do Tribunal”, afirma Hartmann, foi um dos autores do estudo “O Supremo e o Tempo”, da Fundação Getúlio Vargas (FGV), que analisou a velocidade de tomadas de decisões pela Corte entre 1988 e 2013.

A constitucionalista Estefânia Barboza, professora da Universidade Federal do Paraná (UFPR), também considera que Mendes ganha “poder político” ao manter os casos em seu gabinete. Ela ressalta, porém, que esse não é um problema apenas dele, mas algo que também é adotado por outros integrantes da Corte.

O atual presidente do STF, ministro Luiz Fux, por exemplo, reteve em seu gabinete por quatro anos uma liminar sua garantindo auxílio-moradia a juízes. Ele revogou sua decisão apenas depois que o então presidente Michel Temer e o Congresso concordaram em 2018 com a aprovação de um reajuste dos salários da categoria.

“O mal uso ou uso estratégico individual da agenda (de julgamentos) atrapalha politicamente o Tribunal”, afirma a professora, ressaltando o desgaste da credibilidade do STF na sociedade. “Não me parece que o Gilmar está politicamente ao lado de Bolsonaro, mas, ao engavetar e não julgar, talvez ele consiga outras articulações políticas, como por exemplo usar isso contra ataques (de bolsonaristas) ao Supremo”, acredita a professora.

A BBC News Brasil solicitou ao STF no dia 6 de janeiro o tempo médio que ministros da Corte levam para retornar um pedido de vista e para colocar em julgamento uma reclamação para comparar com o ritmo de andamento desses dois recursos que aguardam decisão de Mendes. A assessoria disse que a área de estatística faria o levantamento até dia 8 de janeiro, mas os dados não ficaram prontos até a publicação da reportagem.

O estudo “O Supremo e o Tempo” indica que em ambos os casos (de Lula e Flávio) o tempo de espera para julgamento no gabinete do ministro já supera o tempo médio do STF para análise de ações semelhantes.

De acordo com esse levantamento, recursos do mesmo tipo do que questiona o foro de Flávio Bolsonaro (reclamações) ficaram em média 75 dias parados nos gabinetes dos ministros com autos “conclusos ao relator”, entre 1988 e 2013. Ou seja, desde 11 de novembro de 2020 o recurso do MP-RJ superou esse tempo no gabinete de Mendes.

O levantamento da FGV também mostra que os ministros pediram vista no intervalo estudado (1988 a 2013) em 833 habeas corpus (mesmo recurso de Lula). Desse total, a grande maioria (793) foi devolvida até 31 de dezembro de 2013, após uma média de 141 dias sob vista, ou seja, menos de cinco meses. Outros 40 pedidos de vista ainda estavam em aberto no final de 2013, sendo analisados pelos ministros, em média, há um ano e meio (531 dias).

No caso de Lula, Mendes chegou a liberar o HC para julgamento em junho de 2019, cerca de seis meses depois do seu pedido de vista, o que representaria uma pequena demora em relação à média calculada pela FGV.

No entanto, no dia da sessão ele próprio mudou de ideia e defendeu novo adiamento, argumentando que era necessário mais tempo para analisar melhor as revelações do portal de notícias Intercept Brasil, que, em série de reportagens conhecida como Vaza Jato, mostrou mensagens privadas atribuídas a Moro e a procuradores da força-tarefa da Lava Jato que indicavam condutas ilegais por parte deles nos processos da operação.

Na ocasião, o ministro defendeu que a Segunda Turma soltasse Lula provisoriamente, enquanto fosse analisado o mérito do HC sobre Moro, mas a maioria da Segunda Turma rejeitou a proposta — apenas Ricardo Lewandowski concordou com Mendes, enquanto Cármen Lúcia, Edson Fachin e Celso de Mello ficaram contra.

O petista estava preso naquele momento por ter condenação em segunda instância no caso do Tríplex do Guarujá. Ele foi solto depois, em novembro de 2019, quando o Supremo reverteu decisão de 2016 e voltou a permitir prisão apenas após o trânsito em julgado (quando se esgotam as possibilidades de recurso).

Lula e Flávio Bolsonaro negam as acusações contra si e se dizem perseguidos politicamente pelo Ministério Público.

A BBC News Brasil questionou Gilmar Mendes se há previsão de quando os dois recursos serão levados a julgamento e qual os motivos para isso ainda não ter acontecido, mas o ministro não quis se manifestar.

A decisão do TJ-RJ de garantir foro privilegiado a Flávio tirou em junho a investigação da rachadinha da primeira instância judicial, mais especificamente das mãos do juiz Flávio Itabaiana, da 27ª Vara Criminal do Rio de Janeiro.

Com isso, o caso passou para a jurisdição do Órgão Especial do TJ-RJ, composto por 25 desembargadores, o que tira agilidade do andamento investigativo e processual.

Apesar dessa mudança, o TJ-RJ não atendeu ao pedido do senador para que a investigação que havia sido realizada até então sob jurisdição de Itabaiana fosse anulada. Com isso, o Ministério Público apresentou no início de novembro uma denúncia criminal contra Flávio, Fabrício Queiroz (ex-assessor apontado como operador do esquema de rachadinha) e mais 15 pessoas. O senador e seu antigo assessor são acusados dos crimes de organização criminosa, peculato, lavagem de dinheiro e apropriação indébita.

Agora, o Órgão Especial do TJ-RJ decidirá se aceita a denúncia e os transforma em réus.

No entanto, a indefinição sobre se o foro de deputado estadual será mantido ou não pelo STF pode estar atrasando o andamento do caso. O relator da denúncia no TJ-RJ é o desembargador Milton Fernandes. Segundo o jornal Folha de S.Paulo, interlocutores do desembargador dizem que ele está aguardando o STF julgar o recurso contra o foro de Flávio para dar andamento à análise da denúncia ou remetê-la à primeira instância.

“Esses casos de competência (que discutem em que instância o caso deve ser julgado) têm um agravante quando se demora muito para julgar: se o Supremo disser que a competência era de um juiz de primeira instância, todos os atos decisórios (do TJRJ) são anulados e isso muitas vezes favorece a prescrição (quando o crime não pode ser mais julgado por ter decorrido muito tempo)”, nota Gustavo Badaró, professor de Direito Processual Penal da Universidade de São Paulo (USP).

“As reclamações, em tese, são procedimentos céleres, com objeto de análise mais limitado, que costumam ser julgados mais rapidamente. Não é um processo inteiro para saber se a pessoa é culpada ou inocente”, disse ainda Badaró.

O STF definiu em 2018 que o foro privilegiado só teria validade para parlamentares federais quando o crime investigado tivesse ocorrido no atual mandato e tivesse relação com o exercício do cargo. Embora a decisão tenha sido tomada no caso concreto de um ex-deputado federal, ela se tornou referência para outros cargos políticos e passou a ser aplicada também para ministros de Estado e governadores pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ).

Por isso, o Ministério Público do Rio de Janeiro considera que Flávio Bolsonaro não tem direito ao foro de deputado estadual, já que não exerce mais esse cargo. Tampouco, dizem os promotores, ele tem direito ao foro de senador, porque os supostos crimes investigados são anteriores a esse mandato.

Apesar disso, a Procuradoria-Geral da República — que em 2018, na gestão de Rodrigo Janot, defendeu a restrição do foro privilegiado — se manifestou ao STF contra o recurso do MP-RJ, usando argumento técnico. Segundo a PGR, hoje comandada por Augusto Aras, como a decisão de 2018 do STF foi dada num caso concreto, não pode ser contestada por meio de reclamação, mas apenas por meio de outros instrumentos recursais.

Acontece que o MP-RJ perdeu o prazo para apresentar outros tipos de recurso. Dessa forma, só restam dois caminhos que potencialmente podem reverter o foro especial dado a Flávio: o recurso parado no gabinete de Mendes e uma Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) que questiona o foro privilegiado de forma mais ampla e foi apresentada pelo partido Rede Sustentabilidade.

A relatoria dessa ação foi sorteada para o gabinete de Celso de Mello e, com sua aposentadoria, foi herdada por Nunes Marques. Caberá a ele liberar a ação para que o presidente do STF, Luiz Fux, marque o julgamento no plenário do Supremo, mas não há previsão de quando isso ocorrerá.

O argumento da defesa de Flávio é que seu caso é uma situação de “mandatos cruzados”, em que o político deixou de ter um cargo político para assumir outro na sequência. Na visão de seus advogados, o STF não fixou como o foro privilegiado deve funcionar nesses casos.

Para os juristas ouvidos, a demora em definir a situação Flávio pode criar a sensação na sociedade que a decisão de restringir o foro não se aplica da mesma forma aos poderosos.

“Não diria que o caso deveria ser julgado mais rápido, mas pelo menos não deveria ter demora excessiva, porque gera uma sensação de que nem todos são iguais perante a lei”, afirma Badaró.

“Num país republicano, não se deve perseguir (políticos), mas é preciso mostrar que os precedentes (decisões prévias da Justiça) se aplicam também ao filho do presidente”, concorda Estefânia Barboza, da UFPR.

No caso do julgamento de Lula, o voto de Celso de Mello era considerado crucial para o resultado, já que Mendes e Lewandowski haviam indicado que votariam a favor do pedido de Lula para considerar Moro parcial, enquanto Cármen Lúcia e Fachin tinham votado contra, quando o julgamento teve início em 2018.

Agora, o voto decisivo deve ser o de Nunes Marques — não é possível saber se será diferente ou igual ao que Celso de Mello decidiria, pois o antigo decano nunca deu pistas de como votaria.

Além dessa mudança de composição, cujo impacto para o julgamento não está claro, a demora em julgar pode ter beneficiado o petista, já que o prestígio que Moro tem hoje já não é o mesmo de dois anos atrás.

O ex-juiz da Lava Jato ainda tem apoio de parcela da sociedade, mas as revelações da Vaza Jato e sua participação no governo Bolsonaro como ministro da Justiça e Segurança Pública aumentaram as críticas a ele.

Mais recentemente, também gerou desgaste a sua imagem a decisão de se tornar sócio da consultoria Alvarez & Marsal, empresa com sede nos Estados Unidos que foi nomeada em 2019 pela Justiça de São Paulo como administradora-judicial no processo de recuperação da Odebrecht, empreiteira alvo da Lava Jato devido a práticas corruptas. Esse serviço já rendeu R$ 17,6 milhões para a consultoria.

Apesar da mudança de cenário ser positiva para Lula, a defesa do petista tem cobrado desde o ano passado agilidade na análise do HC em petições ao STF.

Para seus advogados, há “provas robustas” da suspeição de Moro. Um dos argumentos da defesa é que o ingresso dele no governo Jair Bolsonaro teria evidenciado seu interesse político ao condenar Lula por corrupção passiva e lavagem de dinheiro no caso Tríplex do Guarujá.

O petista acabou barrado da eleição presidencial de 2018 pela Lei da Ficha Limpa, após o Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4) ter confirmado a condenação por Moro. Depois, já em 2019, Lula foi considerado culpado também pelo STJ.

Moro, por sua vez, diz que condenou Lula baseado nas provas processuais em julho de 2017, quando Bolsonaro ainda não era considerado um candidato competitivo. Ele argumenta que, naquele momento, não tinha como prever a vitória do atual presidente, nem o convite para ser ministro. Além disso, afirma que aceitou integrar o governo para fortalecer o combate à corrupção e ao crime organizado.

Caso o recurso seja aceito pelo STF, pode levar à anulação de todos os atos processuais de Moro, quando este era juiz, em processos e inquéritos contra Lula. Isso cancelaria a condenação de Lula no caso Tríplex do Guarujá por corrupção passiva e lavagem de dinheiro, mesmo que a sentença já tenha sido confirmada pelo STJ.

Também anularia a condenação de Lula no caso do Sítio de Atibaia pela juíza Gabriela Hardt, já que ela assumiu o caso em sua etapa final. O ex-presidente teria, então, direito a novos julgamentos.

Em ambos os casos, Lula é acusado de ter recebido benefícios de empreiteiras em compensação a contratos superfaturados que elas obtiveram com a Petrobras durante o governo PT. Sua defesa nega.

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