Médica negra achava que formação a blindava contra racismo

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Foto: Reprodução

Aos 6 anos, Tatiana Novais sonhava em ser médica. As pessoas que via de jaleco em consultórios, porém, não se pareciam com ela, nem com seus pais. Quando havia um doutor na televisão, também não se enxergava nele. Com 16 anos, Tatiana passou no vestibular para medicina na Universidade Federal da Bahia (UFBA) e tornou-se a primeira pessoa da família a ingressar no ensino superior.

Encontrou um ambiente machista, racista e elitizado. “Em muitos momentos da minha formação eu era a única mulher da turma. Sofria um preconceito tão grande por ser mulher que eu não enxergava a discussão por ser negra”, lembra.

Ela escolheu a cirurgia plástica como área de atuação, e, em 2021, completou três décadas dedicadas a esse ofício. Em seus canais oficiais de comunicação, apresenta-se como “a primeira cirurgiã plástica negra do Brasil”. A médica, que hoje tem 47 anos, realizou uma busca pelos conselhos de medicina de todo o país e, na época, encontrou cinco cirurgiões negros em um ambiente de mais de 8 mil médicos.

“Até hoje passo congressos inteiros sem ver uma mulher, muito menos uma negra, mesmo fora do Brasil. Sempre tive que fazer muito mais do que os meus colegas para ser considerada ‘quase’ igual a eles. Por que há tão poucas médicas negras? Não se fala de cor nas sociedades de medicina”, questiona.

Para tornar-se cirurgião plástico é preciso estudar os seis anos da faculdade de medicina, mais seis anos de residência, no mínimo. “Eu me formei em 15 anos, no total, e nunca paro de estudar. Na sociedade em que a gente vive, para uma mulher fazer tudo isso, o quanto ela tem que deixar a vida pessoal de lado?”, ressalta.

Tatiana também destaca que o médico negro, ainda nos dias de hoje, em geral, vem de uma família com menos poder aquisitivo. Negros são 75% entre os mais pobres do país, como aponta o IBGE. “Essa pessoa não tem condição de se dedicar totalmente ao estudo e ficar mais de uma década sem renda até conseguir se sustentar. Essa dinâmica elitiza demais a escolha pela profissão”, relata.

A doutora destaca que só teve condições de estudar porque, quando ela nasceu, o pai, um homem negro e autodidata, que ela descreve como “genial”, já havia passado em um concurso para trabalhar em um banco e isso mudou a vida de toda a família.

Há cerca de 10 anos, Tatiana Novais começou a despertar para a importância da questão racial dentro de sua área de atuação, após voltar a trabalhar em Salvador depois um longo período em São Paulo. Ela tem especialização em cirurgia craniomaxilofacial e atendeu um líder do grupo Ilê Aiyê, que havia sofrido fraturas no rosto após um acidente.

“Fiquei impressionada com a história dele. Em 1974, o Ilê criou, no bairro da Liberdade, um concurso de beleza negra para fortalecer e empoderar meninas que não se achavam bonitas diante de um padrão de branquitude tão fortemente disseminado. Houve uma transformação no bairro depois disso”, lembra a médica.

Eu achava que estava blindada contra o racismo, que não seria um problema para mim. TATIANA NOVAIS

A médica começou a refletir mais sobre padrões de beleza caucasianos e o impacto deles na vida de seus pacientes, que muitas vezes a procuravam em busca de procedimentos que lhes dessem traços mais parecidos com os de pessoas brancas. Salvador tem 82% da população negra – segundo o IBGE, trata-se da cidade com a maior concentração de pessoas negras fora da África.

A médica começou a refletir mais sobre padrões de beleza caucasianos e o impacto deles na vida de seus pacientes, que muitas vezes a procuravam em busca de procedimentos que lhes dessem traços mais parecidos com os de pessoas brancas. Salvador tem 82% da população negra – segundo o IBGE, trata-se da cidade com a maior concentração de pessoas negras fora da África.

A especialista teve de pesquisar e desenvolver novas técnicas que atendessem as particularidades de saúde das pessoas negras. Ela relata que negros têm mais riscos de ter queloides (crescimentos anormais de tecido cicatricial que se formam no local de um traumatismo, corte ou cirurgia de pele) e podem ter cicatrizes com coloração diferente. Também têm pele mais grossa e cartilagens mais finas, em geral.

“Um médico tem a obrigação de explicar os riscos e as particularidades para que o paciente faça escolhas baseadas em dados precisos. A mulher negra vê a foto de uma branca que colocou silicone com cicatriz invisível e acha que com ela vai ser igual.”

Também existe uma padronização na estética baseada em conceitos de cinco séculos atrás, que são usados para harmonização facial, por exemplo. “O limite da largura nasal seria o canto interno dos olhos. Isso coloca 90% dos negros fora do padrão”, descreve. Para a médica, é preciso questionar essa estética, e os médicos têm responsabilidade nessa transformação.

Com o modismo da vez, a harmonização facial, ela tem recebido muitos jovens negros (as) em seu consultório insatisfeitos com suas feições, em especial com o próprio nariz. “A mídia tem uma influência muito grande nisso. Não se reflete sobre o peso que os filtros das redes sociais e as maquiagens têm”, alerta.

A médica afirma que há tratamentos muito perigosos feitos por quem deseja se adequar a um padrão de branquitude “imposto em redes sociais”. “Amputações clínicas da asa nasal geram riscos, como necrose. Tenho visto problemas que não via há muito tempo”, relata.

O caso de Sthefane Matos, popular em redes sociais, é usado como exemplo dessa tendência. Ela passou por tantas intervenções no nariz que a pele não aguentou ser tão esticada e começou a abrir. “Um dia eu acordei e meu nariz estava aberto, a cartilagem completamente exposta. Foi muito desesperador”, relatou.

Tatiana afirma que sempre teve orgulho de suas origens, da sua cor e suas feições. “Eu tenho um nariz grande, e já tive oportunidades de operar, mas eu não quis mudar. Tinha medo de não me reconhecer.”

Ela tenta levar essa mesma reflexão a seus pacientes e relata receber relatos de meninas de 8 anos que já manifestam desejo de fazer cirurgia plástica no nariz, para seguir um padrão de estética branco, o que considera “completamente absurdo”.

Se você avaliar a face de uma pessoa negra pelos padrões brancos, sempre haverá algo de errado nela. Já atendi uma menina que queria se matar por causa do nariz. TATIANA NOVAIS

“Quando uma paciente adulta, negra, me procura eu sempre pergunto se ela já pensou no fato de que a filha pode não se reconhecer nela, se alterar demais as suas feições. Tudo isso tem que ser discutido”, defende.

Além de debater a questão da aceitação dos próprios traços, Tatiana reconhece que há os casos de pessoas que têm indicação para cirurgias por deformidades ou pelo desejo de ter um rosto mais “equilibrado” e é preciso oferecer opções sensatas e seguras a esse público.

“Um negro lindo não precisa ter traços finos. Vende-se uma falsa ilusão para uma geração de meninas, principalmente as mais jovens, de que só assim elas são bonitas e isso é cruel.”

A profissional também estudou tricologia capilar para ajudar pacientes com queda de fios e outros problemas. Ela montou um protocolo para quem deseja fazer transição capilar (voltar ao cabelo natural). “Muitas mulheres levam uma vida muito limitada pela estética imposta. Valorizar o cabelo é um dos fatores mais libertadores”, acredita.

Tatiana também organiza eventos nos quais reúne profissionais relacionados à saúde e à beleza negra. Este ano, pretende fazer um congresso inédito com essa temática e reunir os maiores especialistas. “O volume financeiro que os negros mobilizam é enorme. É preciso ouvir as demandas estéticas dessas pessoas. Você, branco, não pode considerar só a sua estética como única e superior.”

A médica usa redes sociais, principalmente o Instagram, onde tem mais de 5 mil seguidores, para levar informações sobre estética, saúde e questões raciais à população. Utiliza o mesmo ambiente onde as imposições estéticas correm soltas para combatê-las.

“Desde que me abri para esse diálogo, as perguntas que mais recebi foram de mulheres negras perguntando se eu tinha uma ginecologista negra para indicar. Temos a necessidade de sermos ouvidos e vistos como um igual”, diz.

A menina que não se via representada em figuras de poder hoje é uma mulher que acredita que o mundo começou a mudar em questões de representatividade. “Eu, médica cirurgiã, uma mulher adulta, babei quando vi a Taís Araújo protagonista de novela. Na mesma semana coloquei um cabelo igualzinho. Também quero ver modelos de mulheres negras ricas e felizes.”

O nascimento da filha, Ana Lourdes, hoje com 3 anos, foi a “cereja do bolo” no despertar racial de Tatiana. A menina é fruto de um casamento inter-racial e é branca. “Eu recebo parabéns por ter uma filha branca. Ouvi de uma juíza que tenho um ‘útero limpo’, que tive sorte. Me aconselharam a me arrumar ainda mais para não ser confundida com a babá. Percebi que eu não poderia mais me comportar como se isso fosse normal”, relata.

As próximas gerações não vão passar pelo nós passamos, e isso não é sobre escolhas individuais. É sobre libertação coletiva

Metrópoles

 

 

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