Manifestações pró-covid são feitas SÓ por brancos ricos

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Foto: Reprodução

As manifestações já foram maiores. Mesmo assim, é surpreendente que, decorrido um ano de pandemia, no rumo de 300 mil mortes e um indiscutível colapso no sistema de saúde, num quadro que configura o pior momento da crise sanitária, tanta gente em tantas cidades tenha doado horas de seu domingo, dia 14, para participar de eventos que, sob um manto político, pregam a negação das únicas medidas disponíveis para tentar conter a disseminação ainda maior do coronavírus. Os atos tornaram-se praticamente protestos pró-Covid.

Feita, porém, a taxonomia dos participantes e a decomposição de seu discurso, na moldura de suas motivações e na pregação que as sustentam, o que se descobre é um bolsão assustador (por sorte minoritário) de reacionarismo de classe – num daqueles momentos em que ficam claras razões pelas quais prospera no país a mais ignóbil desigualdade social baseada num nem sempre escamoteado sistema de defesa de privilégios.

Na teoria, esses brasileiros foram às ruas por duas razões; e uma delas é reclamar das recentes decisões no âmbito do STF que favorecem Lula e põem na alça de mira da Justiça o juiz Sérgio Moro, sobre quem não há mais dúvida da participação num conluio que visava tirar o petista da corrida eleitoral de 2018 utilizando inadequadamente as até certo ponto muito legítimas investigações da Lava Jato. Misturar essa inconformidade com a defesa do presidente Jair Bolsonaro, que já brigou com Moro, é um contrassenso, mas os tempos andam favorecendo esse tipo de coisa.

Na prática, para quem acompanhou as manifestações de domingo, o que se viu foram cidadãos que – na segunda e maior justificativa dos protestos – recusam as medidas de contenção de circulação supostamente em nome de direito ao trabalho, ao deslocamento, a liberdades públicas e, em resumo, à tentativa de suicídio mesclada com atos homicidas, na medida em que expor-se em aglomeração ou frequentar local público sem medidas de proteção cria, cientificamente, riscos para o indivíduo e para todos no seu entorno.

No contorno político desses protestos, a questão ainda é saldo da crise econômica de 2015, que inverteu perspectivas e se combinou com as revelações trazidas à luz pela Lava Jato demonstrando que o projeto político petista estava ancorado num complexo sistema de desvio de recursos que migravam de obras públicas para o caixa eleitoral do partido ou para o pagamento de apoio a aliados, quando não se tornavam propinas destinadas simplesmente a enriquecer governantes, funcionários públicos, empregados de estatais e intermediários desses negócios.

É natural que haja indignação e incompreensão diante da anulação do julgamento de Lula, principalmente porque pouco se tem esclarecido sobre o fato de que essa situação pode levá-lo a novos julgamentos, com renovada exposição de provas que indicam, no mínimo, o quanto ele sempre soube acerca da corrupção patrocinadora de campanhas eleitorais e o quanto agiu para favorecer empresas que estavam na raiz desse processo. E, mesmo que isso não ocorra, por mais que procure confundir anulação de processo com sentença de inocência, o ex-presidente puiu o princípio ético que apregoava quando oposição; e esse dado está escrito em néon na sua biografia.

O momento, porém, é confuso o suficiente para que essa revolta desesclarecida tenha sido usada como combustível para as carreatas e atos públicos do domingo, nas quais o grito mais alto foi mesmo contra as medidas tomadas por governadores e prefeitos para tentar conter a pandemia. Sabe-se há muito que grupos bolsonaristas detêm competência inigualável para impulsionar apoiadores via redes sociais com a divulgação de postagens em que o que menos importa é a questão factual. Daí veio, portanto, um estímulo aos atos pró-Covid.

Mas, considerando que cada brasileiro, a esta altura, conhece pelo menos três casos de vizinhos ou de familiares mortos pela doença – que está chegando a um óbito para cada 500 habitantes no estado do Rio de Janeiro e três para cada mil amazonenses –, a negação em forma de protesto ganha contorno de descaso com o luto do próximo que tem algum sentido mais primitivo do que o visível a olho nu.

Alcança, na verdade, uma condição desumana em que, enquadrando-se enganosamente numa luta pela sobrevivência, os participantes dos protestos ignoram os princípios de solidariedade com os mais fracos e tomam como bandeira a máxima do presidente Jair Bolsonaro segundo a qual todos vão morrer um dia, todos podem contrair a doença e o melhor, diante da inevitabilidade, é que isso aconteça o quanto antes para que os mais fortes estejam logo liberados para manter-se no jogo da selvageria. Nada pode ser mais perverso em termos de hipocrisia diante de um quadro social como o brasileiro.

Essa ilusão de ótica torna-se flagrante quando se confronta o discurso dos manifestantes com a sua realidade e a do entorno. Como ponto principal, eles evocam o direito de trabalhar e obter o sustento da família, contra o fechamento dos estabelecimentos não essenciais. Mas são cidadãos motorizados, com carteiras de plano de saúde no bolso, bem nutridos e brancos que desfilam pelo melhor asfalto das suas cidades na pregação principalmente contra o lockdown, única ação que mostrou resultado no mundo inteiro contra a expansão da pandemia. Grande parte se apresenta como empresário e, sem procuração, declara em nome do povo a necessidade imperativa de manter abertos shoppings, restaurantes, academias e salões de cabeleireiro.

No meio dessas carreatas, em centenas de vídeos disponíveis nas redes sociais, pobres de verdade só são vistos entre os vendedores ambulantes que oferecem água, algodão doce, balões coloridos, bandeiras e amendoim para abastecer, hidratar e decorar os protestos – ou entre motoboys que ousam ultrapassar os cortejos, sob vaias, na batalha, estes sim, pela sobrevivência.

Não se viram atos contra as medidas de contenção nas periferias, não há bandeiras verde-amarelas nas favelas e, nessas áreas verdadeiramente pobres em que o fechamento determina de fato falta de dinheiro, só se acham expectativa por um novo auxílio emergencial e a luta verdadeira pelo sustento da família com o frêmito da atividade informal. Nem sobraria tempo para essa gente fazer manifestação defendendo quem quer que seja.

Numa trajetória historicamente conhecida, a resistência às restrições necessárias para a contenção da pandemia vai, por esse caminho, ganhando contornos fascistas e de defesa de privilégios de classe – espantosamente com o aval de alguns analistas cujas razões para sustentar o que vêm pregando são difíceis de entender.

Há um que discursa, por exemplo, contra a supressão de liberdade individuais, sem tentar porém explicar como a queda da arrecadação nos municípios e estados e o risco real de desemprego compensaria para algum administrador público uma suposta sanha antidemocrática. Não cita que medidas iguais são aplicadas em democracias do mundo todo e, na massa da crítica, usa qualquer argumento para mirar o STF, como se o tribunal tivesse amarrado as mãos do presidente diante do coronavírus e não fosse ele próprio o primeiro a boicotar medidas sanitárias.

Outro, escorado no poder evangélico, combina fatos com boatos e desejos para fazer a oposição a governadores com argumentos sólidos, mas embasando conclusões insípidas. Nesse raciocínio, a razão da suspensão de aulas seriam as escolas sucateadas – que de fato existem, mas isso é razão a mais para não retomar as atividades letivas em plena pandemia, certo?

Um terceiro, que inclui na pregação a utilização de tratamentos preventivos sem sustentação científica, faz papel de vivandeira que nunca se arrependeu da genuflexão à ditadura. A posição combina inclinação ideológica conservadora com a denúncia consistente de um sistema clubístico na esquerda, mas descamba para a intolerância com facilidade. Até o general vice-presidente posa mais facilmente de democrata.

Em mais um e último exemplo, há o que escora sua argumentação necessidade de um jornalismo de pegada positiva, que destaque o total de curados da pandemia, a tragédia ainda maior de outros países e a dificuldade de outras nações, até pior do que a brasileira, para obter vacinas. Além de tolas – por pedir destaque justamente ao que levaria os cidadãos a baixar a guarda diante do risco –, são comparações baseadas em um instantâneo que ignora tendências, realidades e principalmente atitudes de governo muito diferentes.

Países que têm a população idosa proporcionalmente muito maior que a brasileira contaram mais mortes por mil habitantes até agora. Mas lá os óbitos diminuíram nas últimas semanas, e aqui continuam crescendo. Do mesmo modo, populações bem menores que a brasileira podem chegar em dias a índices de vacinação que, infelizmente, só teremos ao longo de meses, se tanto. Por fim, a análise do total de curados divulgada pelo Ministério da Saúde, quando comparada com números de outros países, só faz suspeitar que é imensa a falta de testes no Brasil.

Nesse rumo, advogados de defesa da gestão Bolsonaro vão se tornando sem constrangimento defensores da própria doença e, em consequência, também ativistas de uma causa em que o lado que tem a mais perder, em termos econômicos ou de saúde, continuará confinado na miséria mesmo depois da pandemia.

Grandes tragédias colocam as nações diante de oportunidades distintas. De um lado, esses momentos podem emular a prática da solidariedade, a repactuação de interesses e a organização de uma sociedade em novas bases, de princípios mais igualitários. Noutra ponta, catástrofes também podem estimular o acirramento do que há de pior no caráter humano, determinando o clima do salve-se quem puder.

As manifestações pró-Covid parecem indicar que uma parte considerável dos brasileiros prefere a segunda opção. Espera-se que continue em minoria.

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