Doria se precipitou ao relaxar restrições, diz a ciência

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Foto: Zimel / Agência O Globo

João Doria gosta de dizer que segue a ciência. Meu barbeiro discorda.

Depois de dez meses sem ir à barbearia, voltei em janeiro para aparar a barba e cortar o cabelo. Os tempos são duros para os profissionais das áreas cosméticas. A barbearia que eu frequento havia aberto uma filial em outro ponto do bairro, mas teve de fechá-la por causa do arrocho imposto pela pandemia. Meu barbeiro, que era sócio do novo empreendimento, parecia resignado com o retrocesso. Ele só não conseguia se conformar com o que lhe pareciam inconsistências nas restrições reforçadas pelo governo de São Paulo. Naquele mês de veraneio, a imprensa trazia com frequência fotos da imprudência farrista nas praias, nas quais se viam os banhistas aglomerados sem máscara em restaurantes e bares. Por que, perguntava o barbeiro, ele tinha de seguir, em São Paulo, cautelas e restrições que não eram minimamente respeitadas nos botecos de Guarujá?

As inconsistências tornaram-se mais flagrantes agora que o governo de São Paulo reabre o comércio depois de uma recuo tímido nas internações por covid-19. E já não é o meu barbeiro quem o diz: um estudo da Rede de Pesquisa Solidária, que reúne pesquisadores de várias instituições dedicados a monitorar as políticas de combate à pandemia, diz que a passagem da fase emergencial para a fase vermelha, anunciada pelo governador João Doria na última sexta-feira, é prematura.

Outros profissionais da área também consideram o afrouxamento das restrições muito arriscado neste momento. Em entrevista à Folha de S. Paulo, o epidemiologista Paulo Lotufo, professor da Faculdade de Medicina da USP, avalia que as restrições deveriam prosseguir até o Dia das Mães, lembrando que houve aumento expressivo de novos casos e de mortes no período de compras que precedeu o Natal. Um relaxamento das medidas de controle seria aconselhável, diz ele, só quando a propagação da doença recuasse para os números que se viam em agosto ou setembro do ano passado. Em números: a média móvel de mortos por dia em São Paulo era de 246 em 1o de agosto de 2020 e baixou para 161 em 30 de setembro; nesta terça-feira 20, a média estava em 752.

Especialistas ouvidos pelo Estado de S. Paulo também consideraram injustificável a decisão do governo Doria. “Foi uma medida incompreensível. Você ainda assiste a uma pressão muito grande sobre os serviços de saúde, então não tem sentido”, disse ao jornal o infectologista Leonardo Weissmann, do Instituto Emílio Ribas.

Ao longo da pandemia, Doria abraçou a causa da vacina – pelo que merece reconhecimento – e se contrapôs ao negacionismo criminoso de Jair Bolsonaro. Cacifou-se assim para se apresentar como a voz da ciência no mundo político brasileiro. Mas vem sendo acusado de hipócrita por cientistas ligados às universidades, que criticam as tentativas do governo paulista de realizar cortes no orçamento da Fapesp, uma das maiores agências de financiamento à pesquisa no Brasil. E é difícil encontrar amparo científico para medidas que agora relaxam o distanciamento social, prática cuja adesão já era baixa no estado.

A pandemia traz dilemas difíceis para os gestores públicos. Quais são os negócios realmente essenciais, que devem permanecer em atividade mesmo no ápice do contágio? Como se deve penalizar aqueles que transgridem as proibições e assim colocam a saúde pública em perigo – multa, prisão, fechamento do negócio? Em que momento se devem afrouxar as restrições, e em que circunstâncias elas devem ser retomadas? Não há uma resposta científica universal para essas perguntas. A ação dos governantes precisa considerar fatores sociais, econômicos, culturais, que variam conforme o lugar e as circunstâncias.

Mas isso não autoriza o vale-tudo: todas as decisões têm de se amparar no melhor e mais atualizado conhecimento científico à disposição do governante. O governo federal fez o contrário disso, como atestam a insistência em medicamentos cuja eficácia foi desmentida por pesquisas e a campanha irresponsável do presidente para liberar todas as atividades econômicas (e sociais, recreativas, esportivas, religiosas…).

As medidas perigosas que Doria tomou agora não são comparáveis à condução lastimável da pandemia pelo governo federal. Mas Bolsonaro é um patamar muito baixo… O fato é que a decisão de abrir o comércio do estado de São Paulo nesse momento crítico já não autoriza o governador a falar em Ciência, com maiúscula.

Afinal, a preocupação maior é conter a disseminação do vírus ou agradar comerciantes às vésperas do Dia das Mães?

Não se agradou apenas a comerciantes e consumidores, mas também a pastores e fiéis. O governo estadual permitiu a reabertura de templos e igrejas, espaços onde o risco de contágio é grande. O julgamento em que o STF autorizou estados e municípios a suspenderem cultos religiosos foi feito a partir de uma ação movida pelo PSD contra um decreto do governo de São Paulo. De olho na campanha eleitoral de 2022, Doria decerto quer evitar que se cole nele a pecha de político que proíbe cultos.

Não sei o que o meu barbeiro pensa dessas novas e escandalosas inconsistências da política de saúde em São Paulo. Não saberei tão cedo. A reabertura dos serviços está prevista para este sábado, 24. Mas o número de novos casos e mortes precisará baixar muito para que eu volte a frequentar a barbearia.

Época

 

 

 

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