14 Estados recusaram oferta de cloroquina por Bolsonaro

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Foto: Adriano Machado/Reuters/

Mesmo depois que estados começaram a devolver a cloroquina enviada pelo Ministério da Saúde no ano passado, diante de evidências de ineficácia da substância contra a Covid-19, o governo federal insistiu no envio de um volume similar de comprimidos para todo o país, priorizando gestões estaduais e municipais alinhadas ao discurso do presidente Jair Bolsonaro. Levantamento do GLOBO com dados do Localiza SUS aponta que, de setembro a dezembro, 1,5 milhão de comprimidos foram devolvidos pelos estados. A partir do mesmo período, o governo Bolsonaro enviou mais 1,3 milhão de comprimidos, sendo 80% para aliados. Na primeira leva, de março a agosto, menos de 40% haviam chegado a gestões bolsonaristas.

Desde o fim do primeiro semestre de 2020, entidades como a Organização Mundial da Saúde (OMS) e órgãos de referência como o Centro de Prevenção e Controle de Doenças (CDC) dos Estados Unidos já desaconselhavam o uso da cloroquina em pacientes infectados pelo coronavírus. A gestão do ministro Eduardo Pazuello seguiu enviando medicamentos ineficazes — e associados a aumento nas mortes de pacientes com Covid — impulsionada por uma doação de hidroxicloroquina do governo Donald Trump, que não utilizava mais o remédio — 609 mil comprimidos deste lote foram distribuídos até o mês passado, já na gestão de Marcelo Queiroga. Em paralelo a isso, o governo levou sete meses para assinar o contrato de compra de vacinas da Pfizer, prazo que foi alvo de questionamentos na CPI da Covid no Senado.

Entre os estados com gestões alinhadas a Bolsonaro, Minas Gerais, Santa Catarina, Amazonas e Roraima respondem por metade (646 mil) dos comprimidos distribuídos pelo Ministério da Saúde desde setembro. Nenhum desses estados informou ter devolvido cloroquina ao governo, mesmo diante da falta de eficácia.

O estado do Amazonas recebeu 120 mil comprimidos em janeiro, em meio ao colapso na Saúde que é investigado pela CPI. O GLOBO revelou em março que uma equipe do Ministério da Saúde fez um tour por hospitais de Manaus à época recomendando o uso do medicamento, em meio à falta de insumos básicos, como oxigênio. Outros 170 mil comprimidos foram entregues neste ano a municípios como Limeira (SP), Presidente Prudente (SP) e Porto Alegre, cujos prefeitos se alinharam publicamente ao discurso de Bolsonaro a favor do suposto “tratamento precoce”. Em outubro do ano passado, a OMS reiterou a ineficácia de medicamentos incluídos nos chamados “kit Covid”.

— No fim de 2020, já existiam dados consolidados sobre malefícios da cloroquina e da hidroxicloroquina e explicações de por que não deveriam ser utilizados. A própria aceitação entre médicos diminuiu. É por isso que estados começaram a devolver — avaliou o infectologista Julio Croda, da Fiocruz, que esteve no Ministério da Saúde na gestão de Luiz Henrique Mandetta.

Entre os municípios incluídos na leva tardia de 1,3 milhão de comprimidos, o principal destinatário foi Joinville (SC), com 160 mil — a prefeitura abriu um “centro de tratamento precoce”, para facilitar o acesso da população a medicamentos. O espaço foi mantido na atual gestão de Adriano Silva (Novo), que gravou um vídeo, em março, informando o funcionamento do local e orientando a população a ter “paciência”, pois a fila para o atendimento chegava a durar três horas.

Já em Pirassununga (SP), que recebeu 13,5 mil comprimidos, o prefeito Dimas Urban (PSD) abandonou a defesa do medicamento — há um ano, em live com o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), ele havia se mostrado entusiasta. Urban, que é médico, alegou que via a hidroxicloroquina como “única arma disponível” no início da pandemia, mas disse ter se tornado cético à medida que saíam estudos.

— Confesso que eu duvidava do lockdown, mas tivemos resultados positivos ao adotar medidas restritivas. Na live, achei que a ideia era debater estudos, mas na hora vi que era algo só para defender Bolsonaro. Acho inadmissível a postura que o presidente teve com as vacinas. Transformou em política besta, picuinha — afirmou.

No total, o Ministério da Saúde distribuiu 7,5 milhões de comprimidos desde março do ano passado, dos quais 20% foram “remanejados”, na terminologia do governo — ou seja, deixaram os estoques estaduais sem ser usados em pacientes de Covid-19.

Alardeada pela gestão Bolsonaro como uma alternativa “barata” para combater o vírus — segundo o governo, houve um gasto total de R$ 259 mil com os comprimidos —, a cloroquina foi apontada pela OMS não só como ineficaz, mas também como substância que traz chance elevada de “efeitos adversos”. Após as primeiras remessas para todos os 26 estados e o Distrito Federal, no primeiro semestre de 2020, o Ministério da Saúde fez verificações periódicas de interesse no recebimento de mais cloroquina, apesar da hesitação de gestões locais.

Segundo a Secretaria de Saúde do DF, que recebeu 72 mil comprimidos até maio de 2020, o Ministério da Saúde “mensalmente questionava o DF sobre a necessidade de recebimento de estoque ou remanejamento” após esses envios. Quase metade (31 mil comprimidos) foi devolvida ao governo federal, que justificou ter redistribuído os remédios para o combate à malária, sem detalhar sua destinação, e outros 20 mil foram repassados a Macapá (AP). “Não houve consumo expressivo do medicamento que justificasse solicitação de novas remessas”, afirmou o órgão.

A Secretaria estadual de Saúde de São Paulo, que recebeu uma carga total de 986 mil comprimidos no primeiro semestre de 2020, antes de a OMS se posicionar pela ineficácia do medicamento, devolveu mais de 700 mil. De acordo com a secretaria, a recomendação mudou no ano passado “devido à insuficiência de evidências científicas”.

Para o ex-ministro da Saúde, José Gomes Temporão, a distribuição de cloroquina foi prejudicial à condução da pandemia.

— Isso estimulou a automedicação e um comportamento de risco, dada a falsa sensação de segurança — afirma Temporão.

ONDAS DE CLOROQUINA

1º semestre de 2020
Ministério da Saúde repassa cerca de 4,5 milhões de comprimidos de cloroquina, dos quais 100 mil vão para aldeias indígenas. Apenas um município recebe esta primeira leva: Porto Seguro (BA).

Secretária de Saúde de Porto Seguro, Raíssa Soares Foto: .
Secretária de Saúde de Porto Seguro, Raíssa Soares Foto: .
O Município recebeu cloroquina em junho, após viralizar um vídeo da secretária de Saúde, Raíssa Soares, pedindo o remédio a Bolsonaro. No total, cidade já recebeu 80 mil comprimidos, média de um para cada dois habitantes, a maior proporção em todo o país.

Julho de 2020
OMS interrompe estudos com a hidroxicloroquina em pacientes de Covid-19 após identificar sua ineficácia. Órgãos de controle dos Estados Unidos, como o CDC e o FDA, já desaconselhavam seu uso.

Agosto de 2020
Pfizer faz três propostas para entrega de vacinas ao governo federal, com previsão de remessa em dezembro. A última delas, no dia 26, tinha prazo de 15 dias para avaliação, mas fica sem resposta.

Setembro de 2020
Com a ineficácia sendo comprovada, estados começam a devolver cloroquina, e governo passa a priorizar prefeituras. Pfizer envia carta, que não é respondida.

Joinville (SC): após abrir “Centro de tratamento precoce” em agosto, na gestão de Udo Döhler (MDB), cidade recebe 160 mil comprimidos; neste ano, seu sucessor, Adriano Silva (Novo), manteve e incentivou o funcionamento do local.

Pirassununga (SP): após Dimas Urban (PSD) defender hidroxicloroquina em live com Eduardo Bolsonaro, município recebeu 13,5 mil comprimidos. Hoje, o prefeito contesta eficácia, defende isolamento social e critica omissão de Bolsonaro em vacinação.

Outubro de 2020
OMS reitera recomendação para que se abandone o uso de cloroquina e hidroxicloroquina em pacientes da Covid-19, bem como de outros medicamentos do chamado “tratamento precoce”. Estados seguem devolvendo os medicamentos.

Dezembro de 2020
Ao todo, 14 estados devolveram 1,5 milhão de comprimidos de cloroquina. São Paulo, Alagoas e Maranhão, responsáveis por 70% desta devolução, reclamam de insistência de Bolsonaro. Mesmo assim, governo federal segue enviando quantidade similar para outros locais.

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Renan Filho (MDB-AL) diz que o incentivo do governo federal ao tratamento precoce “atrapalhou muito” os estados.

O Globo