Brasil pode ser primeiro país a proibir ações das redes sociais contra fake news

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Foto: Reprodução

Sob o pretexto de dar liberdade de expressão a usuários de redes sociais, membros do governo querem alterar a regulamentação do MCI (Marco Civil da Internet) por meio de decreto e podem, também, atualizar a Lei de Direitos Autorais.

Em live transmitida por um canal conservador há pouco mais de uma semana, Felipe Carmona Cantera, secretário de direitos autorais e propriedade intelectual, afirmou que as big techs moderam conteúdo por uma perspectiva que mira a direita e que conteúdos publicados em redes sociais devem ser protegidos pela legislação que trata de direito autoral —portanto, não poderiam ser derrubados apenas pela decisão das empresas.

“Todo mundo ficou sabendo quando o Trump foi banido do Twitter nos Estados Unidos. Isso levantou uma coisa estranha. Em janeiro deste ano, o Terça Livre [canal bolsonarista] teve um strike por ter infringido direito autoral”, disse Carmona ao Canal Conservador de Carapicuíba, em vídeo com menos de cem visualizações.

Segundo ele, a moderação de empresas tem “algo ideológico no meio do caminho” e vários políticos e pensadores de direita sofrem muito com a perda de alcance de suas postagens ou com a rotulação de que um conteúdo é duvidoso. “Isso deixou pulga atrás da orelha e começamos a ir para cima”, disse.

Carmona está à frente da secretaria que, de acordo com a minuta do decreto analisado pelo governo para alterar a regulamentação do MCI —um dos últimos atos de Dilma Rousseff (PT) na Presidência—, fiscalizará as big techs. Procurado, ele não respondeu à reportagem até a publicação deste texto.

O Terça Livre, canal liderado por Allan dos Santos, investigado por fake news, foi removido no início do ano pelo YouTube, mas a alegação da plataforma não foi infração de direito autoral. Nas advertências, um dos vídeos citava supostas fraudes nas eleições presidenciais nos Estados Unidos, o que vai contra a política de integridade da eleição presidencial da plataforma.

Outro vídeo alvo de advertência violava a regra que impede “incitação para que outras pessoas cometam atos violentos contra indivíduos ou um grupo definido de pessoas”.

Na live, Carmona também cita os casos da deputada Carla Zambelli (PSL-SP) e de Paulo Kogos, ambos apoiadores de Bolsonaro, que tiveram publicações removidas.

Carla teve que excluir de seu canal no YouTube o vídeo em que o músico Netinho, 54, cantava a música “Milla” em um ato pró-Bolsonaro. Quem entrou com ação foi o próprio autor, Manno Góes.

“Elas [big techs] derrubam porque dizem que infringe os termos de uso deles, mas eles não são donos da razão. A gente não pode ser tolhido da nossa fala”, afirma.

A secretaria pretende criar um canal de comunicação do governo para usuários “de todas as ideologias” para que entendam que houve um “cerceamento da fala”. “Óbvio que crimes, terrorismo, torcidas organizando confronto, climes explícitos, precisam ter esse controle [das plataformas]”, afirma.

A ideia é tornar a secretaria de direito autoral a fiscalizadora dessas práticas. Carmona não deixa claro que tipo de alteração o governo pretende fazer na Lei de Direitos Autorais, mas diz que já foi feita a consulta pública para o tema.

O Marco Civil não define a responsabilidade das plataformas de internet em casos de violação e diz que isso deve ser feito em lei, não em decreto.

Há anos discute-se uma reforma de direito autoral (a lei é de 1998) que aborde aspectos online. Há um projeto que vem sendo amadurecido há mais de dez anos. A Folha apurou que o assunto vem sendo estudado no governo e que um projeto pode vingar pelo Executivo ou por medida provisória.

“Houve uma consulta pública em 2019, mas as contribuições nunca foram publicadas. Estão mexendo na discussão sobre a responsabilidade das plataformas sobre direitos autorais, mas sem debate público, e o Marco Civil diz que isso deve ser feito por lei”, afirma Mariana Valente, professora do Insper e diretora do InternetLab.

Em linhas gerais, o governo pretende minimizar o poder de moderação das redes sociais e determinar que publicações só sejam removidas mediante decisões judiciais. Hoje, o MCI diz que as plataformas têm obrigação de retirar conteúdo após decisão da Justiça, mas elas têm liberdade para moderação de acordo com suas políticas.

A minuta tem exceções para violações ao ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), pedidos do próprio usuário ou de terceiros, além de casos que configuram alguns crimes.

Em relação ao direito autoral, diz que cabe a um terceiro, que sentir sua autoria lesada, requerer a retirada de um conteúdo. Também fala em “contas protegidas por direitos autorais”. Para especialistas, esse termo é uma saída para blindar a derrubada de contas e canais muitas vezes banidos por discurso de ódio.

“Não exite conta protegida por direito autoral. O que pode ser protegido é o conteúdo da conta”, diz Allan Rocha, diretor do Instituto Brasileiro de Direitos Autorais e professor da UFRJ (Universidade Federal do Rio de Janeiro).

“Para proteger a liberdade de criação criativa, de crítica, de polêmica, humor, sátira, todos reflexos da liberdade de expressão, o governo deveria focar em coibir que simples alegações (principalmente as automatizadas) de violação de direitos autorais impelissem a derrubada de conteúdo legítimo e legal, ainda que use trecos de obras protegidas”, afirma.

Para André Giacchetta, do escritório Pinheiro Neto, “contas protegidas por direitos autorais” é um termo inédito nas discussões sobre regulação de internet no Brasil.

“Precisamos escolher: a gente quer que as plataformas ajam espontamentam e evitem a disseminação de determinados conteúdos ou que ajam mediante requerimento ou ordem judicial. Me parece que a segunda alternativa vai criar ambientes não saudáveis para comunição”, diz.

Como mostrou reportagem da Folha, o presidente Jair Bolsonaro faz acenos a sua base eleitoral e mira a reeleição ao Palácio do Planalto ao dar aval para elaboração do decreto que limita a retirada de publicações e contas das redes sociais.

As publicações do presidente e de seus apoiadores foram excluídas das redes sociais durante a pandemia da Covid-19 por desinformar sobre a doença. Em abril deste ano, o Twitter colocou um aviso de publicação “enganosa” em crítica do deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) ao lockdown.

No mesmo discurso do início do mês, Bolsonaro afirmou que as redes sociais têm “papel excepcional” para que a população “possa ter informações verdadeiras”.

Ele disse que estes canais tiveram papel importante na eleição de 2018 e citou o papel do seu filho e vereador Carlos Bolsonaro (Republicanos-RJ) durante a campanha. “São pessoas perseguidas o tempo todo”, afirmou.

Por se tratar de uma minuta, as empresas optaram por não comentar o assunto.

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Folha