Ernesto se incrimina para proteger Bolsonaro

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Foto: Pablo Jacob/Agência O Globo

Em quase seis horas de depoimento à CPI da Covid no Senado, o ex-chanceler, Ernesto Araújo, citou o Ministério da Saúde por pelo menos 13 vezes como a origem de todas as ações e omissões de sua gestão no Itamaraty na tentativa de proteger o presidente Jair Bolsonaro. A estratégia, porém, foi prejudicada pelo senador Randolfe Rodrigues (Rede-AP).

As declarações de Araújo foram dadas em resposta a inquirições que buscavam incriminar o presidente da República. Como se o ex-chanceler insistisse em restringir as responsabilidades ao Ministério da Saúde e a seu ex-titular, Eduardo Pazuello, Randolfe mudou a estratégia. Focou em atitudes, gestões e ações inalienáveis do Itamaraty na tentativa de mostrar que a estratégia do chanceler não apenas não será suficiente para blindar o presidente da República como acabará por incriminá-lo.

A começar pela ajuda que a Venezuela prestou ao Estado do Amazonas com o fornecimento de oxigênio no início deste ano. Araújo atribuiu ao governo do Amazonas o atraso nas informações sobre os cilindros necessários que teria prejudicado os embarques, mas reconheceu que não fez contato com o governo venezuelano, que o insumo foi oferecido pelo país vizinho e que, tampouco, agradeceu depois que os embarques foram feitos.

Também complicou-se ao falar sobre a composição da missão que visitou Israel em março deste ano, supostamente em busca de medicamentos contra a covid-19. O ex-chanceler não soube responder que funções desempenhava Max Moura na comitiva. Tratava-se, como acrescentou o relator, senador Renan Calheiros (MDB-AL), de um assessor ligado ao senador Flavio Bolsonaro (Republicanos-RJ) e a seu ex-assessor, Fabrício Queiroz. “Era passeio?”, perguntou Randolfe, deixando claro que o chefe da missão abrigou um integrante que não tinha nenhuma função específica na comissão que teria ido a Israel em busca de um suposto spray nasal. “Não, não era, como assessor do presidente ele tinha função política.”

Araújo também não foi capaz de responder porque promoveu uma palestra sobre a “nocividade no uso de máscara” na Fundação Alexandre de Gusmão, do Ministério das Relações Exteriores, pelo professor de Filosofia da Universidade de Pelotas, Carlos Ferraz.

Presidente da Comissão de Relações Exteriores do Senado e uma das senadoras mais ativas na pressão pela saída de Araújo do cargo, a senadora Kátia Abreu (PP-TO) deixou claro que pediria o áudio da reunião ministerial do dia 22 de abril de 2020, cuja íntegra foi liberada pelo ex-ministro do Supremo Tribunal Federal, Celso de Mello. A pedido da Advocacia-Geral da República, Mello aquiesceu a retirada do trecho em que Araújo falava. Segundo Katia Abreu, porque trazia ofensas à China. Ao obter a íntegra da reunião, a CPI terá condições de rebater insistentes declarações do ex-chanceler de que nunca foi hostil à China, a despeito de reiteradas provas em contrário que produziu ao longo dos mais de dois anos em que permaneceu na Pasta.

Entre as evidências citadas ao longo da sessão, estão não apenas o artigo por ele assinado, chamado “Comunavírus” como sua completa ausência da negociação da Coronavac, que, até abril, como lembrou Katia Abreu, respondia por 85% de todas as vacinas usadas no Brasil. Incluem-se ainda o pedido para que o embaixador da China no Brasil, Yang Wanming, fosse removido, além da declaração de que o Brasil não venderia a alma aos chineses para exportar soja e minério de ferro.

A despeito de cerco evidente, Araújo não demonstrou interesse em recuar. Perguntado pelo senador Angelo Coronel (PSD-BA) se gostaria de pedir desculpas à senadora Kátia Abreu por ter dito que ela tinha interesses escusos no fornecimento da tecnologia 5G pela China, o ex-chanceler, que começava todas as respostas com um “perfeito”, disse que tinha falado a verdade e que não se retrataria. Pressionado pela senadora Simone Tebet (MDB-MS) a provar a acusação de tráfico de influência consultou o advogado e disse que o tema já estava judicializado.

Araújo confirmou ter tido reuniões semanais com o presidente ao longo de toda a pandemia e que, apesar da proximidade, nunca teria dado nem recebido quaisquer orientações relativas à obtenção de vacina ou de quaisquer outras medidas para o enfrentamento da pandemia. No seu relato, o Itamaraty só agiu orientado pelo Ministério da Saúde, especialmente na gestão de Eduardo Pazuello.

Manteve a blindagem, por exemplo, ao assumir para si a decisão de não reportar ao presidente o recebimento, pelo embaixador do Brasil nos Estados Unidos, Nelson Foster, de uma cópia da carta da Pfizer com a oferta da vacina ao Brasil. Não comunicou o fato ao presidente porque presumiu que fosse do seu conhecimento. Também não atribuiu a Bolsonaro a decisão tardia de adesão ao consórcio Covax-Facility, coordenado pela OMS, para a obtenção da vacina. Disse que o Brasil havia aderido no primeiro chamado quando, na verdade, o fez no último, em junho de 2020, dois meses depois do início das negociações, e com uma cota relativa a apenas 10% da população quando poderia ter chegado a 50%.

Ao ser questionado por que demonstrar mais empenho no fornecimento de insumos para a fabricação da cloroquina do que de vacinas, Ernesto Araújo citou a rede hospitalar Prevent Senior como sede de testes com o medicamento, mas disse não se recordar de Renato Spallicci, empresário bolsonarista dono da Apsen, laboratório fabricante da cloroquina.

No momento mais tenso da CPI, Araújo tentou se negar a responder à pergunta do senador Alessandro Vieira (Rede-ES) sobre sua ascensão ao posto de chanceler, a despeito de não ocupar postos que o credenciassem para tanto. Limitou-se a dizer que foi escolhido por Bolsonaro para não se estender sobre a indicação de seu nome por seu padrinho, Olavo de Carvalho.

Araújo também não foi capaz de convencer sobre os benefícios para o Brasil de uma política externa aliançada ao ex-presidente Donald Trump. O ex-chanceler chegou a minimizar os ataques ao capitólio, em 6 de janeiro deste ano, e voltou a defender o artigo em que relaciona a recomendação do “fique em casa” ao fomento ao narcotráfico. Sem conseguir resposta a nenhuma de suas perguntas, o senador Tasso Jereissati (PSDB-CE) resumiu a perplexidade da CPI: “Não sei mais o que é a realidade”.

Valor Econômico