Intoxicada pela cloroquina, Capitã Cloroquina não faz seu trabalho

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Foto: Júlio Nascimento/PR / Agência O Globo

Enquanto ganhava notoriedade pela defesa do uso da cloroquina e de outros remédios sem comprovação científica contra a Covid-19, a secretária de Gestão do Trabalho do Ministério da Saúde, Mayra Pinheiro, obteve resultados tímidos no principal programa que oficialmente está sob seu comando na pandemia. Ela será ouvida na CPI da Covid nesta terça-feira.

Lançada ainda em abril do ano passado para reforçar a presença de recursos humanos na linha de frente do combate à doença, a iniciativa, chamada “O Brasil conta comigo”, cadastrou 113 mil estudantes da área da Saúde, mas apenas 8.896 foram recrutados (7,9% do total). Entre o grupo de profissionais de Saúde, houve 1,007 milhão de cadastrados, dos quais 454,2 mil manifestaram interesse em atuar, mas a pasta só enviou 518 a estados do Norte (cerca de 0,1% dos dispostos a participar), segundo dados oficiais do próprio órgão.

O ministério informou que o envio de profissionais pelo governo federal à região Norte se deu de forma excepcional, pois a participação do Ministério da Saúde é apenas oferecer o cadastro para que estados e municípios façam a contratação e o pagamento dos recrutados, acrescentando que esse banco de dados foi remetido a dez estados e sete municípios. A pasta não sabe dizer, no entanto, quantos trabalhadores foram efetivamente contratados pelos governos locais.

O ex-ministro da Saúde Eduardo Pazuello afirmou, em seu depoimento na última quinta-feira à CPI, que o programa disponibilizou 6,5 mil profissionais de saúde para a região Norte, sem dizer a cargo de quem ficou a contratação e remuneração dos recrutados. Ainda assim, o dado mencionado por Pazuello representa apenas 1,43% do total de profissionais de saúde que se cadastraram com interesse em atuar na linha de frente.

Na avaliação de gestores locais, o programa foi um “fracasso” ao se limitar a fazer um banco de dados de profissionais. Presidente do Conselho Nacional de Secretários Estaduais de Saúde (Conass), Carlos Lula, avalia que o projeto já começou equivocado em sua concepção:

— É uma ingenuidade achar que um cadastro na internet vai resolver o problema da desigualdade da assistência no país. Só os estados do Norte usaram e olhe lá. Não dava para contar com isso, foi um fracasso esse programa.

O secretário de Saúde da Paraíba, Geraldo Medeiros, afirma que nos momentos de falta de recursos humanos na linha de frente, a opção mais viável foi fazer chamamentos públicos para reforçar o quadro.

— Incorporamos mais de 5 mil profissionais, nos momentos críticos, para atender a ampliação de leitos de pacientes com Covid-19. Além disso, fizemos teletreinamentos e reunião de equipes menos experientes com outras mais experientes para que os cuidados fossem repassados — diz Medeiros.

Segundo dados da pasta, os 518 profissionais contratados, excepcionalmente, pelo ministério por meio do programa foram enviados para o Amazonas, Amapá e Roraima, entre médicos, enfermeiros, técnicos de enfermagem, fisioterapeutas, farmacêuticos e biomédicos. O cadastro com 225 mil nomes de profissionais dispostos a atuar foi enviada a outros estados e municípios para efetuar contratações por conta própria, caso desejassem, de acordo com a pasta.

Além disso, o braço do “Brasil conta comigo” para estudantes recrutou 8.896 acadêmicos, dos quais 5.302 atuaram dentro de critérios de edital que permitiram o recebimento de bolsas de R$ 522 a R$ 1.045. Um terceiro eixo do programa passou a pagar bonificação de R$ 667 a “todos os residentes ativos” no país.

Mayra Pinheiro, conhecida como Capitã Cloroquina, será ouvida pela CPI da Covid nesta terça-feira. Ela, que está na pasta desde a gestão do ex-ministro Luiz Henrique Mandetta, tornou-se uma das defensoras mais ferrenhas no governo, a partir do período de Pazuello como chefe, do chamado “tratamento precoce” com uso de cloroquina e hidroxicloroquina, remédios que não apresentaram eficácia para a Covid-19.

Apesar disso, a secretaria dirigida pela médica no Ministério da Saúde, de Gestão do Trabalho e da Educação, cuida de temas ligados a pessoal, como programas de residência. Mas ela tomou para si o tema do tratamento precoce e conseguiu emplacar um subordinado, que era diretor em seu departamento, o médico Helio Angotti, admirador do escritor Olavo de Carvalho, para assumir a Secretaria de Ciência, Tecnologia, Inovação e Insumos Estratégicos em Saúde — essa sim responsável por acompanhar experimentos em saúde, inclusive farmacêuticos.

Foi ideia de Mayra Pinheiro o aplicativo TrateCov, que indicava cloroquina até para crianças a partir de sintomas e sinais declarados, e depois retirado do ar por Pazuello. Também foi organizada pela secretária um “tour” por unidades básicas de saúde de Manaus, com médicos levados pelo Ministério da Saúde durante visita da pasta à cidade para incentivar o uso do kit Covid, em meio à falta de oxigênio que matou pacientes na capital amazonense.

A secretária obteve do Supremo Tribunal Federal (STF) um habeas corpus que lhe permite ficar em silêncio sobre sua ação em Manaus, visto que é investigada nesse caso pelo Ministério Público Federal (MPF).

O Globo