Preso no Jacarezinho sofreu intimidação no IML

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Foto: Reprodução/ Uol

Um dos presos na operação da Polícia Civil na favela do Jacarezinho relatou em audiência de custódia ter sofrido intimidação para não relatar ter sido torturado por policiais. O episódio ocorreu no IML (Instituto Médico-Legal) —que no Rio é vinculado à Polícia Civil— no momento em que passava por um exame de corpo de delito.

A reportagem obteve no SEI (Sistema Eletrônico de Informações) do TJ-RJ (Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro) vídeos das audiências, laudos de corpo de delito e diversos outros documentos sobre os seis presos pela Polícia Civil. Ao UOL, organizações de direitos humanos afirmaram que os relatos devem ser apurados e colocam em dúvida a isenção da Polícia Civil na investigação.

A ação terminou com 28 pessoas mortas, sendo um policial —tornando-se a mais letal da história do Rio de Janeiro, como revelou o UOL.

Max Arthur Vasconcellos de Souza —que não era alvo de um dos 21 mandados de prisão, mas foi detido em flagrante— afirmou ter sido torturado por policiais.

O juiz Antonio Luiz da Fonseca Lucchese, que conduziu a audiência de custódia, perguntou então se ele havia relatado dessa maneira as agressões durante o exame de corpo de delito no IML.

“Não. Como que relata? O cara lá dentro quase matando nós”, afirma o preso. No depoimento, ele não detalha quem seria o autor da intimidação.

O laudo de Max constatou sete contusões compatíveis com agressões, entre escoriações e equimoses —hemorragia na superfície da pele, similar a um hematoma.

O perito legista André Luis dos Santos Medeiros atestou que as lesões mostram vestígios de “lesão à integridade” do preso. No entanto, deixa de responder uma série de outros quesitos de avaliação. Um deles trata da possibilidade de as lesões terem sido produzidas por “tortura ou por outro meio insidioso ou cruel”.

Em um resumo da audiência elaborado por Lucchese, o juiz chama de tortura os relatos trazidos por Max e por sua defesa.

Dos laudos produzidos sobre os seis presos, apenas um teve o preenchimento completo dos quesitos avaliados por um perito, conforme padrão estipulado no órgão.

Preso relata lesões que IML não atestou
Há divergências entre o relato feito por outro dos presos na audiência de custódia e o laudo de corpo de delito, de acordo com os documentos.

Marcos Vinicius Pereira Messias —alvo de um dos mandados de prisão que resultou na operação— é questionado pelo juiz se foi agredido. Em um primeiro momento, ele afirma não se sentir seguro para relatar os abusos: “Pô, eu tenho um pouquinho de medo de falar”, explicou. Ele é convencido a informar a conduta dos policiais e então revela ter sido golpeado com um fuzil. “Na minha cabeça, nos meus braços e nas costas”, detalhou.

O homem também é questionado se ficou com marcas da sessão de espancamento. “Fiquei. Nos braços, aqui e nas costas”, fala, enquanto aponta para as regiões feridas.

No entanto, nada disso consta em seu laudo de corpo de delito. O perito legista André Luis dos Santos Medeiros afirma não ter identificado nenhuma lesão em Marcos Vinicius e diz não haver indícios de agressão.

Os relatos de tortura estão presentes em depoimentos de outros dois presos em audiências de custódia. Todos afirmam terem sido agredidos por policiais antes de serem conduzidos para a delegacia.

Juiz Antonio Luchese: Eram quantos policiais? O senhor lembra? Que agrediram o senhor…

Max Arthur: Era mais de uns dez, 15. Toda hora sobe dois, três e me dá chute na cara

Depoimento em audiência de custódia

A reportagem enviou uma série de questionamentos à Polícia Civil a respeito das denúncias dos presos e das informações contidas nos laudos, mas não obteve resposta. A corporação limitou-se a dizer que “esta versão dos criminosos presos será apurada no inquérito policial, que tem acompanhamento do Ministério Público”.

Nesta segunda-feira (24), o UOL revelou que a Polícia Civil impôs sigilo de cinco anos a ao menos dois documentos relacionados à operação no Jacarezinho —o comunicado enviado ao Ministério Público e o relatório final da ação foram classificados como reservados.

Independência da investigação está em xeque, diz OAB
A advogada Nadine Borges, vice-presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB-RJ, avalia que o relato de intimidação dentro do IML durante um exame pericial coloca em xeque a isenção das provas técnicas na investigação sobre a operação no Jacarezinho.

“A comissão teve conhecimento de que havia agentes da Core [Coordenadoria de Recursos Especiais, unidade responsável por boa parte das mortes na operação] com entrada e saída livre no IML, e isso é inadmissível. A privacidade na hora do exame legal deve ser garantida, porque mesmo se houver risco de fuga, o policial pode aguardar no lado de fora da sala.”

A presença [de policiais no IML] tem tom intimidatório e fere qualquer manual básico de perícia técnica. Com esses relatos de intimidação, deveríamos ter elementos para uma perícia indireta, com registros fotográficos do corpo, fotos panorâmicas, para poder verificar os laudos. Mas não temos

Nadine Borges, vice-presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB-RJ

“Apesar do caso ainda ser recente, já causa estranhamento esses elementos juntos: a baixa qualidade técnica dos laudos, que impedem a perícia, e o sigilo imposto pela Polícia Civil aos documentos. Tudo isso dificulta uma investigação independente. Isso pode eventualmente configurar fraude processual”, completa a advogada.

Para César Muñoz, pesquisador sênior da ONG Human Rights Watch, os novos elementos apurados pelo UOL ampliam as suspeitas de crimes cometidos por policiais durante a operação no Jacarezinho.

“Os relatos nas audiências de custódia são gravíssimos e, juntamente com outras provas, evidenciam uma série de abusos policiais”, aponta.

Ainda segundo o representante da organização de defesa dos direitos humanos, o Ministério Público do Rio de Janeiro tem a obrigação de apurar com rigor as denúncias feitas pelos presos.

“Os relatos devem ser levados muito a sério pelas autoridades. O MP tem o dever constitucional de exercer o controle externo da polícia e deve investigar não somente as mortes, incluindo possíveis execuções extrajudiciais, mas também os relatos gravíssimos de abusos e fraudes processuais.”

Uol