Surge denúncia de racismo contra Pazuello

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Foto: Dida Sampaio/Estadão

Eduardo Pazuello comandava havia quatro meses o quartel do Depósito Central de Munições do Exército, em Paracambi, a 70 km do Rio, quando viu dois soldados passarem em uma carroça. Julgou que estavam velozes demais, que maltratavam o equino, e quis lhes dar uma lição. Mandou parar, desatrelar o animal, e determinou que o recruta Carlos Vítor de Souza Chagas, um jovem negro e evangélico de 19 anos, substituísse o cavalo. O soldado teve de puxar a carroça com o outro soldado em cima, enquanto o quartel assistia à cena, às gargalhadas.

Depois de 16 anos, o antigo soldado ainda se lembra de tudo naquele 11 de janeiro de 2005. Chagas fora escolhido por um tenente para ajudar um colega a carregar uma banheira na carroça. “Ele não tinha como pegar sozinho.” Foi quando Pazuello apareceu. “Eu não estava pilotando o cavalo, estava na carroça. Quem estava era o outro garoto.” Mas foi ele o escolhido para o castigo pelo então tenente-coronel.

Ao ser questionado por que Pazuello tomou essa decisão, o ex-soldado disse acreditar em racismo. “Pelo meu tio eu botava para frente (na Justiça), mas eu dei mais ouvido ao meu pai, que é evangélico, por medo de represália. Isso aí agora está nas mãos de Deus, Ele é o Senhor de todas as coisas.”

A história do dia em que Pazuello mandou um jovem puxar carroça no quartel faz parte da carreira militar do homem que está no centro de uma das tantas crises do governo de Jair Bolsonaro: a presença do general de divisão da ativa no palanque montado pelo presidente na República para um ato no domingo, dia 23, no Aterro do Flamengo, no Rio, em apoio ao homem que busca a reeleição em 2022.

Filho de um comerciante de família sefardita estabelecida na Amazônia com uma gaúcha da fronteira, Pazuello considera ter entrado para a vida militar quando tinha 10 anos. Foi quando seu pai o matriculou no Colégio Militar de Manaus.

A empresa de navegação da família foi a inspiração para que o cadete da Academia Militar da Agulhas Negras escolhesse o Serviço de Intendência do Exército para seguir a carreira. O futuro ministro se formaria na turma de 1984 e logo pegou um atalho, que teria um grande impacto em sua carreira: o jovem oficial decidiu parar na Brigada Paraquedista e fez o curso de operações especiais, tornando-se ele mesmo um Força Especial (FE), o que garantiu um lugar em uma das mais exclusivas igrejas do Exército.

Foi entre os FEs, a turma da “faca na caveira”, que Pazuello encontraria companheiros que o seguiram até o Ministério da Saúde. São homens como os coronéis Élcio Franco, que se tornaria o secretário executivo da pasta e carregava o broche de FE no terno, e George Divério, o superintendente da Saúde no Rio nomeado por Pazuello e defenestrado após tentar contratar sem licitação empresas para reformar prédios. Foi ainda na Brigada e entre os FEs que Pazuello conheceu o atual ministro-chefe da Casa Civil, Luiz Eduardo Ramos, outro Força Especial.

Na Brigada, o general conheceu ainda o futuro presidente da República, o capitão Jair Bolsonaro, o homem que 35 anos depois fez dele ministro na maior crise sanitária do século e o demitiu quando o número de mortos atingiu 279 mil, para depois chamá-lo de “nosso gordinho” no palanque no Rio. Ganhou fama de duro entre os subordinados quando estava na 1.ª Região Militar. E, no Depósito de Munições, se viu às voltas com uma investigação sobre o desvio de munição excedente do local para ser vendida como sucata. Foi na mesma época em que o futuro ministro conheceu o recruta Chagas.

Na época, a 1.ª Região Militar resolveu pela abertura do Inquérito Policial Militar (IPM) para apurar a conduta do oficial. O Estadão encontrou o recruta ainda com medo. Não queria falar por telefone, mas tinha consciência de que a situação que colocava Pazuello em evidência também o levaria a ser procurado por jornalistas. “É sobre o general Pazuello?”, questionou Chagas ao atender ao telefonema. Ele tinha receio de contar pelo telefone o que lhe acontecera no quartel há tanto tempo.

Naquele dia, ele estava na carroça com o também soldado Celso Tiago da Silva Gonçalves. No Inquérito Policial Militar do caso, o soldado disse que estava com o ombro machucado e por isso “não poderia cumprir a ordem de puxar a carroça”. “Foi prontamente atendido pelo tenente-coronel”, conforme registrou a procuradora-geral militar Maria Ester Henrique Tavares, que decidiu arquivar o caso.

O episódio seria um ponto fora da curva na carreira do oficial? O Estadão procurou sua defesa e antigos colegas. Poucos se dispuseram a falar – seu advogado, Zoser Hardman, não respondeu à reportagem. Dois oficiais – um colega de turma e outro que foi seu colega na Brigada – demonstraram restrições à narrativa do “especialista em logística” que levou o oficial à Saúde. Disseram que ele tinha uma fama imerecida, que, se não fosse a “Igreja FE”, não teria recebido o comando da 12.ª Região Militar (Manaus), cargo normalmente reservado aos integrantes das Armas, como infantes e artilheiros, e não a intendentes, como Pazuello.

As alegadas humilhações ao soldado não impediram Pazuello de seguir sua carreira. Após o depósito, ele comandou o 20.º Batalhão Logístico da Brigada Paraquedista. E seria mandado à Amazônia para coordenar a Operação Acolhida dos imigrantes venezuelanos. No governo de Jair Bolsonaro viraria ministro da Saúde. A exposição pública poderia lhe garantir a candidatura a um governo estadual ou ao Senado.

É que ninguém mais se lembrava do argumento usado pelo tenente-coronel para se livrar do IPM da carroça. Além de dizer que ele tratava os subordinados com “seriedade e dignidade”, a defesa usou depoimentos de outros militares para atestar que Pazuello não quisera impor maus-tratos ao recruta. “Há aspectos pessoais da vida de Pazuello que demonstram sua familiaridade e, sobretudo, amor aos equinos.”

Tudo se resolveu assim. Pazuello não quis humilhar o soldado; só orientá-lo “para a preservação da boa saúde dos cavalos de tração utilizados na OM (organização militar)”. Quinze anos depois, promovido a general de divisão, Pazuello se viu de novo diante dos limites da disciplina. O afeto e a obediência a Bolsonaro – “É simples assim: um manda e o outro obedece, mas a gente tem um carinho” – o transformaram em alvo da CPI da Covid.

Um mês antes de comparecer ao comício de Jair Bolsonaro no Aterro do Flamengo, no Rio, o general de divisão Eduardo Pazuello participou de evento político do governo, em Manaus, que foi encerrado pelo presidente com seu slogan da campanha eleitoral de 2018: “Brasil acima de tudo, Deus acima de todos”.

Tratava-se da inauguração do Centro de Convenções do Amazonas, que se transformou em ato de desagravo a Pazuello e à política do governo na pandemia nas vésperas da abertura da CPI da Covid, no Senado. O ministro do Turismo, Gilson Machado, abriu a cerimônia. Saudou os colegas ministros presentes, como general Augusto Heleno (Gabinete de Segurança Institucional), deputados federais e os comandantes militares. Em seguida, disse: “Eu quero fazer uma saudação especial. Cadê o general Pazuello? Cadê ele? Venha cá”. A claque bolsonarista interrompeu Machado aos gritos: “Pazuello! Pazuello!”

O ex-ministro da Saúde havia voltado ao Exército e estava à disposição do Comando Militar da Amazônia – naquele dia seria transferido para a Diretoria-Geral de Pessoal, em Brasília. Já havia, portanto, sido revertido à ativa e, como militar da ativa, não poderia participar de atos político-partidários. Trajando roupas civis, Pazuello foi abraçado por Bolsonaro, que acenava ao público como uma celebridade.

Machado continuou: “Fui testemunha da luta desse homem pela erradicação da doença em nosso país”. Pazuello agradeceu. “Obrigado.” E voltou para seu lugar no palanque. Machado prosseguiu com a defesa da ação do governo na pandemia. Depois, Bolsonaro agradeceu o trabalho de Pazuello no ministério. O evento durou pouco mais de 50 minutos e foi encerrado por Bolsonaro com o slogan da campanha de 2018.

Para o ex-presidente do Superior Tribunal Militar (STM), tenente-brigadeiro Sérgio Xavier Ferolla, a presença de Pazuello no Aterro do Flamengo não foi a única vez que o militar comparecera a evento político. “Essa não foi a primeira vez.”

O caso está nas mãos do Comando de Exército, que decidirá se pune o general por infringir o Regulamento Disciplinar do Exército. O comportamento de Pazuello, como sua presença no evento em Manaus, será levado em consideração

Estadão