Aumento legislativo da impunidade vence por 408 a 30

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Foto: Reprodução/ Internet

Em poucas horas, perdeu ontem muita força o sistema jurídico de combate à corrupção. A lei mais importante – de improbidade administrativa, foi flexibilizada por 408 votos a 30 na Câmara. Alguns Deputados fizeram uso da palavra, por pouquíssimos minutos regimentais. Os tempos da pandemia, determinam que muitos outros se conectem remotamente para se manifestar sobre o PL 10887/18, que propõe novas regras, muito mais brandas em uma série de aspectos, para o combate à corrupção no Brasil.

Sendo o Brasil membro fundador do Pacto dos Governos Abertos, que nos impõe o dever de ser padrão mundial de transparência, chamou a atenção o fato do líder do PL, Capitão Fábio, sequer mostrar o rosto nas manifestações parlamentares. Aparece nos momentos de suas falas uma tela preta constando o nome de seu perfil, ouvindo-se uma voz que se supõe ser a dele, o que pode suscitar dúvidas plausíveis sobre a transparência e até sobre a validade de sua manifestação.

O projeto original de Roberto de Lucena foi debatido. Mas o substitutivo é um outro texto, totalmente distinto. O original foi debatido, mas o substitutivo não abriu espaço sequer a uma audiência pública. A mais importante lei anticorrupção em vigor no Brasil teve relatório substitutivo protocolizado anteontem às 17h10. O pedido de urgência de votação começou a ser votado às 17h11 e se concluiu às 17h19. E não estamos falando em urgência para acelerar iniciativas visando salvar vidas ou minimizar desigualdades sociais. Ou aumentar penas para a corrupção. O conteúdo era de abrandamento ou eliminação de penas.

Não se debateu com a sociedade civil e no plenário o que se observou foi um arremedo de discussão, lamentavelmente, sem qualquer profundidade e efetividade, numa sequência interminável de louvações ao relator. E ao final, o combate à corrupção foi ferido mortalmente. Observe-se, inclusive, que o tal relatório, além de não debatido, não foi objeto de qualquer exame de constitucionalidade prévia e se afigura verdadeira ode à impunidade.

Foram estabelecidos prazos para encerramento das investigações pelo MP. É aberração estabelecer prazo tabelado de 6 meses para um inquérito civil. E se as perícias forem complicadas? E se houver documentos e oitivas internacionais a obter? Poderia se considerar a hipótese de exigir que membro do MP fundamente a necessidade da prorrogação das investigações de forma escrita, mas não nivelar todos os casos como se fosse a mesma coisa. O objetivo é indisfarçável: impunidade.

Na mesma exata direção, o estabelecimento de condenação ao pagamento de honorários de sucumbência para o MP, verdadeiro instrumento intimidatório inadmissível. Se algum membro do MP age com abuso de poder pode ser enquadrado na lei de abuso de autoridade. O dispositivo visa nitidamente inviabilizar o exercício regular das funções.

De que adianta aumentar penas para casos de enriquecimento ilícito e dano ao patrimônio público, se se intimida e estrangula o exercício investigativo pelo Ministério Público?

Eliminou-se a imprescritibilidade do direito de ressarcimento ao dano ao patrimônio público. Ao julgar em 2019 o recurso extraordinário RE 852.475 (tema 897), o STF, sob relatoria do Ministro Alexandre de Moraes, decidiu serem imprescritíveis as ações que visam ressarcir dano ao erário fundadas em improbidades dolosas, interpretando o artigo 37 parágrafo 5.o da Constituição Federal. O projeto aprovado finge ignorar a decisão e elimina a barreira da imprescritibilidade. Fixa prazo de 8 anos, o que representa afronta à Constituição e ao STF e, se mantido, será obviamente derrubado no STF.

O projeto isenta de responsabilidade por improbidade administrativa as pessoas que tiverem sido absolvidas criminalmente sob qualquer fundamento, o que é afrontoso a diversos princípios basilares do Direito, já que que a absolvição pode ser eventualmente por insuficiência de provas e as provas podem surgir em seguida. Seria salvo-conduto ilícito.

Como se não bastasse, impede-se a advocacia pública de mover ações de improbidade e se institui a prescrição retroativa, que é um dos maiores monumentos à impunidade da área penal – só existe no Brasil. É verdadeira aberração criar prescrição retroativa em matéria de improbidade administrativa.

E a cereja do bolo. Sob o argumento de falta de segurança jurídica, que na verdade se usou como disfarce para legitimar todas as improbidades sem danos ao patrimônio, como a “carteirada”, o desvio de doses de vacinas, o não fornecimento de informações a jornalistas demandadas a órgãos públicos com base na lei de acesso à informação e as “boiadas” ambientais. Nenhuma destas situações gera dano ao patrimônio público propriamente dito, mas em todas elas, são violados os princípios da legalidade, da moralidade e, algumas vezes, da impessoalidade.

Historicamente, a lista definida de condutas puníveis é exigida estritamente na esfera criminal, diante do princípio da tipicidade penal, que a pressupõe de forma cabal, não sendo plausível nem razoável pretender tal prévia especificação no mundo do Direito Administrativo. Esta redefinição do artigo 11, listando algumas poucas hipóteses significa permitir todas as demais, gerando dose significativa de potencial impunidade. Agora, a esperança é que o Senado recomponha este gigante prejuízo à sociedade.

*Roberto Livianu, procurador de Justiça em São Paulo, doutor em Direito Penal pela USP, idealizador e presidente do Instituto Não Aceito Corrupção

Este texto reflete única e exclusivamente a opinião do(a) autor(a) e não representa a visão do Movimento do Ministério Público Democrático (MPD)

Estadão