Bacia do Paraná reflete efeitos da crise hídrica

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Foto: Reprodução/ Folha de S. Paulo

De pé sobre a terra avermelhada que um dia foi o lago da hidrelétrica Água Vermelha, na divisa de São Paulo com Minas Gerais, o aposentado José Carlos Jesus, 57, dá a dimensão da crise: “Aqui onde nós estamos nem dá pé quando o reservatório está cheio”.

Cerca de cem metros o separam de seu rancho, onde ele vive hoje “escondido da pandemia”. A casa simples foi construída à beira da represa, mas o lago agora começa bem mais abaixo, o que o obrigou a esticar uma mangueira de 250 metros para captar água.

Com apenas 7,7% de sua capacidade de armazenamento de energia, o reservatório da usina de Água Vermelha é um retrato da crise hídrica que assusta o país e vem levando o governo a anunciar medidas emergenciais para tentar evitar o racionamento de energia.

Em um de seus braços, o ribeirão Pádua Diniz, em Indiaporã (SP), a água desceu tanto que deixou à mostra a velha estrada de terra alagada há mais de 40 anos, quando o reservatório foi criado. Resta apenas uma pequena lagoa, formada pelas poucas chuvas do verão, embaixo da ponte da estrada nova.

“Já vim aqui de barco e, só ali embaixo da ponte, pegamos mais de 100 corvinas”, relembra a funcionária pública Aparecida Batista dos Reis, 53, enquanto tentava pescar no que restou do ribeirão na tarde de quarta (2).

A situação é mais preocupante pela manutenção dos baixos níveis mesmo após o fim do chamado período chuvoso, quando os reservatórios deveriam estar cheios de água para garantir a travessia do inverno mais seco.

E traz de volta o fantasma de 2015, quando a seca foi tão severa que o tráfego na hidrovia Tietê-Paraná teve que ser interrompido por falta de calado para a passagem dos comboios que levam grãos do Centro-Oeste para São Paulo.

“Nem em 2015 o rio esteve assim”, reclama o empresário Jonzelito Luiz Pereira, 59, dono de uma fazenda e de uma pousada ao lado da barragem, em Iturama (MG). “Os poços [de água subterrânea] já estão secando. Era para começar a secar em outubro.”

Água Vermelha é a última das 12 hidrelétricas do rio Grande, que nasce na serra da Canastra, em Minas Gerais, e forma o rio Paraná após se juntar com o rio Paranaíba, na divisa entre São Paulo e Mato Grosso do Sul.

Juntos, os três rios são responsáveis por dois terços da capacidade de armazenamento de energia do subsistema energético Sudeste/Centro-Oeste, considerado a principal caixa-d’água do setor elétrico brasileiro por concentrar represas de usinas importantes.

Assim, a região está no foco do esforço do governo para tentar evitar o racionamento. Na semana passada, a ANA (Agência Nacional de Águas e Saneamento) declarou emergência hídrica na bacia, abrindo a porta para medidas mais drásticas, como limitar a captação de água nos rios.

A abundância de água faz da região um importante polo do agronegócio, com fazendas de gado e cana-de-açúcar se estendendo até onde a vista alcança, e uma forte produção piscicultora, apontada como segunda maior criadoura de tilápias do Brasil.

A seca já vem produzindo estragos na atividade local, com o atraso na colheita de cana e a piora nas condições dos pastos. Os produtores temem que a disputa com o setor elétrico inviabilize os negócios, o que deve acirrar conflitos pelo uso da água nos próximos meses.

“Se eu tiver que parar de irrigar, perco toda a produção”, diz Edvaldo Costa Mello, proprietário da Fazenda Costa Mello, produtora de cítricos que tem uma área de plantio de limões logo abaixo da barragem de Água Vermelha.

A sua propriedade fica às margens do rio Grande, mas já no reservatório da hidrelétrica Ilha Solteira, no rio Paraná. É a maior hidrelétrica da caixa-d’água, com capacidade para produzir 3.444 MW, e seu lago se estende para os dois rios que formam o Paraná.

O reservatório é usado pela hidrovia Tietê-Paraná. Por isso, há um esforço contínuo para manter um volume de água suficiente para permitir a passagem dos comboios, que dependem de uma cota mínima de 325 metros acima do nível do mar, volume observado hoje.

Mesmo assim, o gigantesco lago de 1.200 quilômetros quadrados (quase o tamanho da cidade de São Paulo) está agora com menos da metade de sua capacidade de armazenamento. Já é possível encontrar grandes áreas secas em alguns de seus braços, como o córrego do Cigano, em Três Fronteiras (SP).

O presidente do Comitê da Bacia Hidrográfica do Paranaíba, Breno Esteves Lasmar, defende que a importância da região para a economia e a possibilidade de paralisação da hidrovia devem ser consideradas na gestão dos reservatórios. “[A redução do nível] vai ter impacto muito grande sobre toda a economia nacional.”

O impacto local sobre a geração de emprego e renda também pode ser considerável, diz Fernando Carmo, assistente agropecuário da Coordenadoria de Desenvolvimento Rural Sustentável da Secretaria de Agricultura de São Paulo.

O governo estadual calcula que a piscicultura no entorno do lago de Ilha Solteira gere cerca de 5.000 empregos diretos e indiretos. A hidrovia seria responsável por outros três mil empregos, que ficaram suspensos durante a paralisação de 2015.

A crise hídrica pega os produtores locais já enfrentando aumento de custos pela escalada nas cotações internacionais das commodities, já que rações são baseadas em soja e milho. Pereira, de Iturama, decidiu vender metade das 120 cabeças de gado que tinha para economizar na ração.

“Há um complicador na manutenção dos pastos para o gado”, diz o presidente do Sindicato dos Produtores Rurais de Aparecida do Taboado (MS), Eduardo Sanchez. “A planta sofre estresse hídrico, tem que fazer um trabalho mais custoso, de tratar o gado no coxo.”

Na piscicultura, que chegou a fechar 40% das unidades na crise de 2015, os custos elevados podem inviabilizar investimentos para adaptação a níveis mais baixos do lago, diz Carmo. “O custo da ração está altíssimo, e muita gente pode parar de produzir por não ter como investir para deslocar os tanques.”

“Se baixar mais, vai dar problema”, confirma Akemi More, da Piscicultura More, uma pequena empresa familiar que produz em espelho-d’água cedido pela União no rio Paranaíba. “O rio já está como se fosse na seca”, reforça seu irmão e sócio Sandro More. Com a crise, venderam na semana passada 15 dos 93 tanques que tinham.

Os produtores locais confiam na manutenção da cota mínima para garantir o tráfego na hidrovia, mas na semana passada o ONS (Operador Nacional do Sistema Elétrico) divulgou relatório considerando a flexibilização para 319 metros em junho para reforçar a recuperação dos reservatórios.

O operador quer reduzir as vazões obrigatórias nas hidrelétricas das partes altas dos rios Grande e Paranaíba para segurar água nos reservatórios de cabeceira. A energia gerada pelas vazões mínimas pode ser substituída agora por usinas eólicas no Nordeste, que está em plena estação de ventos.

Em 2014, a redução da cota do reservatório de Ilha Solteira se transformou em uma guerra judicial, que culminou com a suspensão da geração de energia na hidrelétrica após liminar concedida a associações de piscicultores da região.

Hoje, os produtores confiam que a proximidade do setor com o governo federal pode ajudar a evitar maiores impactos, diz Assis Henrique, diretor administrativo da Global Peixes, que produz tilápias e tem uma unidade de reprodução em tanques em diferentes pontos do lago.

Especialistas no setor elétrico dizem entender a preocupação com a economia local, mas afirmam que os bilionários custos da crise energética que encarecem a conta de todos os brasileiros são relevantes no debate sobre a gestão das águas.

A expectativa é que o brasileiro passe 2021 pagando taxa extra para bancar as usinas térmicas, que pressionarão também os reajustes das tarifas das distribuidoras ao longo dos próximos anos. Um racionamento de energia, no momento, é considerado improvável.

É consenso entre os especialistas que a crise é estrutural e precisa de soluções de longo prazo. “São questões como mudança da ocupação do solo, mudança climática, aspectos de desenvolvimento econômico que levam à supressão de vegetação”, diz Lasmar. “Onde não há floresta, não há água.”

Segundo o Cemaden (Centro Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais), a bacia do rio Paraná vem enfrentando chuvas abaixo da média há 22 anos e a situação se agravou a partir de fevereiro de 2019, quando recebeu os piores volumes desde o início dos anos 1980.

“Em termos de vazão, pode-se concluir que a porção alta da bacia do rio Paraná enfrenta uma situação que pode ser classificada como severa e excepcional desde 2014” diz.

Roberto Kishinami, coordenador sênior do Instituto Clima e Sociedade, defende que o agronegócio da região deve buscar tecnologias mais eficientes de irrigação, como o gotejamento usado no Centro-Oeste. “Aqui [em São Paulo] se usa muito pivô central, que é como jogar água de mangueira.”

No Brasil, em média, 50% da água captada nos rios brasileiros é usada para irrigação, diz a ANA. Um aumento na tarifa de captação de água, que é regulada pelos estados, poderia levar à busca por maior eficiência, considera Kishinami.

O ex-presidente do ONS Luiz Eduardo Barata lembra que, a cada crise hídrica, autoridades falam em recuperação de mananciais e matas ciliares, as florestas às margens dos rios, mas as propostas raramente vão adiante.

Ele defende mudanças no modelo do setor elétrico para permitir a contratação de mais energias renováveis, como solar e eólica, para garantir a recuperação dos reservatórios a seus níveis máximos, o que não ocorre há muito tempo —a última vez em que eles superaram os 80% de capacidade foi em abril de 2011.

“Hoje, estamos enchendo o tanque até a metade e rodando até cair na reserva”, compara. “Mas seria melhor andar de tanque cheio e abastecer quando chega na metade. O custo é o mesmo e o risco, menor.”

Folha de S. Paulo