EUA começam a debater racismo nas escolas

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Foto: Hannah Beier – 8.mar.21/Reuters

Em Iowa, no Meio-Oeste americano, os professores terão que pensar duas vezes antes de debater em sala de aula a relação do racismo com a história do país.

A governadora Kim Reynolds assinou na segunda semana de junho uma lei que determina o que um educador pode —e principalmente o que não pode— falar sobre desigualdade racial com seus alunos. Discutir como pessoas brancas, ainda que inconscientemente, podem ter atitudes racistas, por exemplo, não é mais uma opção.

No Arizona, estado fronteiriço com o México, um projeto com essa orientação e apelidado de “Lei do Ensino Imparcial” foi aprovado pela Câmara estadual na primeira semana de maio, mas barrado pelo Senado, por 16 votos a 14, no dia 27 do mesmo mês.

Caso tivesse passado, professores do estado receberiam multas ao falar sobre determinados assuntos —explicar como a ideia de meritocracia exclui grande parte dos negros, por exemplo, custaria a eles US$ 5.000 (R$ 25 mil).

Projetos do tipo têm se multiplicado nos EUA. Pelo menos 27 estados —o país tem 50— estão debatendo projetos que visam limitar a discussão racial na educação básica. Oito deles já aprovaram a medida: Idaho, Oklahoma, Tennessee, Texas, Iowa, Flórida, Utah e Montana. Todos são governados por republicanos.

Em 13 estados, os legislativos discutem esses projetos ou os governadores manifestam apoio público a uma possível tentativa de emplacar conteúdos desse tipo. Outros seis estados tentaram aprovar, mas não conseguiram.

Em comum nessas propostas, além da iniciativa de cercear o debate racial na educação pública, está uma campanha massiva contra a teoria crítica da raça, escola de pensamento jurídico fundada por professores negros e latinos na década de 1980 e que teve os EUA como berço.

Doutor em direito pela Universidade Harvard e professor da Universidade Presbiteriana Mackenzie, Adilson Moreira explica que a teoria contribui com o debate público ao explicar como o racismo está permeado na lógica das instituições.

“A teoria crítica da raça trabalha com a ideia do racismo como um fenômeno sistêmico, uma discriminação estrutural”, diz. “Ela recupera o conceito das microagressões para entender como a animosidade em relação às pessoas negras, asiáticas e indígenas é perpetuada no cotidiano das relações humanas.”

Um dos conceitos com o qual trabalha a teoria, e que ganhou jurisprudência na Suprema Corte americana na década de 1970, é o da discriminação indireta. “Até então os tribunais entendiam como discriminação apenas um ato arbitrário e intencional que, movido por preconceitos e estereótipos, impõe uma desvantagem a um determinado grupo”, explica Moreira.

No caso da discriminação indireta, mesmo uma norma que não faz menção à raça pode ter impacto desproporcional em um grupo que já se encontra em situação de desvantagem. No Brasil, é o que acontece, por exemplo, com a exigência de fluência em inglês para concorrer a determinadas vagas —já que alunos de escola pública, em sua maioria negros, em geral têm menos acesso ao ensino do idioma.

Nos projetos de lei que correm nos legislativos estaduais dos EUA, porém, esse tema aparece de forma diferente. A maioria dos textos afirma proibir o ensino dos “divisive concepts” (conceitos divisivos), que ferem a união da nação americana.

É o caso da lei que começa a valer em 1º de julho em Oklahoma. Parte do texto diz que nenhum professor pode abordar que “um indivíduo, por virtude de sua raça ou sexo, é inerentemente racista, machista ou opressor, seja consciente ou inconscientemente”.

Quando assinou a norma, o governador republicano Kevin Stitt declarou: “Agora, mais do que nunca, precisamos de leis que nos unam, e não nos separem. Acredito fortemente que nenhum centavo do seu dinheiro deve ser usado para dividir nossos jovens baseado em sua raça ou sexo”.

Professora do departamento de estudos africanos da Universidade de Wisconsin-Milwaukee, Gladys Mitchell-Walthour afirma que o que se tenta fazer é uma grande campanha de desinformação.

“Eles não estão falando sobre teoria crítica da raça, mesmo porque esse é um assunto para universitários, não para crianças”, diz. “O pensamento deles é de que os brancos estão sendo atacados por minorias como os negros e os latinos.”

Adilson Moreira acrescenta que essa é uma tentativa de eliminar a raça como uma categoria social —ou seja, impedir que seja usada como um critério social e legalmente relevante na tomada de decisões.

Ainda que tenham se intensificado e ganhado celeridade no primeiro semestre deste ano, projetos do tipo têm pano de fundo histórico, observa Mitchell-Walthour.

Diferentes elementos têm peso nesse contexto. Um dos principais, para os especialistas, é o efeito rebote do governo de Barack Obama, único negro a assumir a Presidência do país.

“A eleição de Obama [em 2008] teve impacto cultural em uma nação que sempre se representou como branca, e isso despertou a fúria de grande parte da população branca norte-americana, um ressentimento racial que decorre não apenas do fato de Obama ser negro, mas porque ele criou medidas para promover a inclusão das pessoas negras”, diz Moreira.

A herança recente do governo de Donald Trump também está presente nos projetos de lei. O republicano, aliás, atua como uma espécie de padrinho de propostas que tentam limitar o ensino da história negra.

Nos últimos meses de seu governo, em setembro de 2020, Trump assinou um memorando que proibia a presença da teoria crítica da raça nos treinamentos de funcionários de agências federais. Seu sucessor, o democrata Joe Biden, porém, revogou a medida em um dos primeiros atos de seu governo.

Esta não foi a única tentativa de Trump. Também no segundo semestre de 2020, já com a popularidade em queda na corrida eleitoral, ele criou a Comissão 1776 —referência ao ano em que os EUA declararam sua independência—, uma espécie de comitê consultivo da Presidência para assuntos de educação, que visava o ensino patriótico.

A comissão, amplamente criticada por historiadores, veio em resposta ao premiado Projeto 1619, do jornal The New York Times, que investiga o legado contemporâneo da escravidão negra nos EUA. O material, que passou a ser usado por muitos educadores em sala de aula, também está no escopo de diversas das propostas que deputados e senadores republicanos tentam emplacar nos legislativos estaduais.

Na Dakota do Sul, por exemplo, a governadora republicana Kristi Noem assinou uma carta do movimento “1776 Pledge to Save Our Schools” (comprometa-se a salvar nossas escolas, em tradução livre), que segue linha semelhante ao que Trump planejava.

Ao justificar o ato em uma rede social, Noem disse: “O Projeto 1619 defende que a América foi fundada com base no racismo e na escravidão, e não no ideal de igualdade. Busca reformular incorretamente a noção da nossa história como ‘nós contra eles’ ao invés de ‘Nós, o povo’.”

Ainda que um deputado estadual republicano tenha retirado, em abril, projeto de lei sobre o tema, Noem manifestou que trabalha para que o estado proíba a teoria crítica da raça e o Projeto 1619 nas salas de aula.

Mesmo fora da Presidência, Donald Trump não deixou de inflamar o assunto. Em artigo publicado no site Real Clear Politics na sexta-feira (18), o republicano voltou a defender que cada estado deve aprovar leis que proíbam a teoria crítica da raça nas escolas públicas e retirem o repasse de verba para os centros de ensino que abordarem o assunto. Sugeriu ainda que cada estado crie a sua própria Comissão 1776.

“Longe de promover o belo sonho do reverendo Martin Luther King —de que nossas crianças devem ‘não ser julgadas pela cor de suas peles, mas por seus caráteres’— essa nova vil teoria de esquerda prega que julgar pessoas pela cor de suas peles é realmente uma boa ideia”, diz em um trecho.

Segundo o professor Adilson Moreira, o argumento faz parte de uma estratégia antiga, que remonta às décadas de 1970 e 1980, quando grupos conservadores se apropriavam de reivindicações e princípios do movimento de direitos civis dos negros norte-americanos para defender ideias como o racismo reverso.

“Líderes como Malcom X e Martin Luther King falavam que, como vivemos numa democracia, precisamos manter o tratamento simétrico [entre as pessoas]. Os conservadores reacionários se apropriaram disso para dizer ‘sim, vocês estão certos, e é exatamente por isso que devemos acabar com ações afirmativas’.”

Na última semana, quando o Congresso americano aprovou a criação de um novo feriado nacional em 19 de junho para celebrar a emancipação dos últimos escravos do país —batizado de “Juneteenth”—, o primogênito de Martin Luther King, homônimo do pai, teceu críticas aos projetos em curso.

Ao comemorar o marco do novo feriado, emendou: “Mas não esqueçamos que, na Flórida e no Texas, os educadores estão proibidos de ensinar a teoria crítica da raça. O Juneteenth deve ser tanto um dia de celebração, quanto um dia para educar sobre a verdadeira história da nossa nação.”

Enquanto a enxurrada de projetos avança em nível estadual, mais críticas se tornam públicas. Em 16 de junho, 90 associações, entre elas a Associação Mundial de História, publicaram uma carta em oposição a esse tipo de lei.

“O claro objetivo desses esforços é suprimir o ensino e o aprendizado sobre o papel do racismo na história dos Estados Unidos”, diz o documento. “Qualquer análise sobre o racismo nas salas de aula deste país causará a alguns estudantes ‘desconforto’, porque este é um assunto desconfortável e complicado. Mas o ideal de cidadania necessita de um público educado, e professores devem oferecer uma visão precisa do passado a fim de melhor preparar os estudantes para a vida em comunidade e o engajamento cívico.”

A professora Gladys Mitchell-Walthour diz que grupos da sociedade civil vão seguir se manifestando contra projetos desse tipo, mas que o avanço a galope nos legislativos estaduais não deixa de ser preocupante.

Em especial, ela explica, porque cada vez mais alunos brancos estão deixando as escolas públicas e migrando para as particulares, o que os faz perder contato com outras realidades. “Tenho muitos estudantes de cidades pequenas e rurais de Wisconsin que falam ‘você é a primeira pessoa negra com a qual converso’. A consequência desses projetos de lei será pior do que o que já temos.”

Folha de S. Paulo