Indisciplina de militares sempre precedeu crises institucionais como a de 1964

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Foto: Folhapress

Muito antes da participação do general Eduardo Pazuello em uma manifestação de rua, incursões de militares no campo da política e o consequente dilema sobre como puni-las já foram o pano de fundo de crises de governo no país e do acirramento de tensões com civis.

O regulamento do Exército veda que o militar da ativa se manifeste publicamente, sem autorização, a respeito de assuntos de natureza político-partidária.

Pazuello, ex-ministro da Saúde, compareceu e discursou em ato favorável ao presidente Jair Bolsonaro em maio e chegou a ser alvo de um processo disciplinar interno da Força. No último dia 3, porém, pressionado por Bolsonaro, o comandante do Exército, Paulo Sérgio Nogueira, anunciou que não iria punir o general pela atitude.

Talvez o precedente mais célebre sobre as dimensões que declarações políticas de oficiais podem tomar ocorreu em 1955 e foi decisivo para garantir a posse do então presidente eleito Juscelino Kubitschek.

Em novembro daquele ano, com JK já vitorioso nas urnas, o coronel do Exército Jurandir Bizarria Mamede fez um discurso no enterro de um general em que deslegitimava o pleito eleitoral. Como agravante, havia temores sobre possível articulação de um golpe para impedir a chegada ao poder do eleito.

Ao defender a punição ao coronel, o então ministro da Guerra, general Henrique Lott, foi desautorizado por Carlos Luz, presidente da Câmara que ocupava interinamente a Presidência da República.

Lott, então, liderou o que acabou batizado de “contragolpe”. Mobilizou tropas no Rio de Janeiro e comandos militares e acabou provocando a queda de Luz, afastado pelo Congresso. O então presidente licenciado, Café Filho, também teve o retorno barrado, e o presidente do Senado, Nereu Ramos, foi empossado para um período-tampão até a posse de JK, em janeiro de 1956.

Para o professor aposentado de ciência política da Universidade Federal Fluminense Manuel Domingos Neto, que pesquisa o meio militar, a comparação com o episódio de 1955 é limitada pelo contexto da época, em que, diferentemente de hoje, cooexistiam dentro das Forças Armadas diferentes correntes, como a apelidada de “entreguista”, a nacionalista conservadora e a favorável a mudanças sociais.

“Havia um embate permanente [dentro das Forças Armadas]. E esse embate toma nova dimensão em 1964, quando o grupo mais reacionário assume com o golpe militar”, diz Domingos, que também foi deputado federal pelo PC do B do Piauí.

O próprio Lott posteriormente entraria para a política. Como presidenciável, foi derrotado por Jânio Quadros na eleição de 1960.

Em uma conjuntura bastante distinta, a insubordinação militar também marcou as vésperas do golpe de março de 1964. Marinheiros haviam se rebelado dentro de um sindicato, no Rio, em mobilização que havia começado com reivindicações salariais e trabalhistas.

O Ministério da Marinha queria a prisão dos rebelados pela quebra da hierarquia, mas o então presidente João Goulart rejeitou a alternativa, e anistiou os marinheiros. A decisão, que foi mais um componente na crise política da época, desagradou o comando das Forças Armadas, que dias depois deflagraria o golpe que instaurou a ditadura militar de 21 anos.

No regime dos generais, declarações sobre a conjuntura política tiveram consequências penosas para um antigo homem forte do período.

Chefe do gabinete militar no governo de Ernesto Geisel, entre 1978 e 1979, o general da reserva Gustavo Moraes Rego ficou cinco dias preso em 1983 por criticar, em entrevista à Folha, João Baptista Figueiredo, último dos presidentes do período.

“É um passional. Em linguagem de cavalaria, explico: Ele [Figueiredo] vê o obstáculo na sua frente, o cavalete pintado, e só quer ultrapassar”, disse o general da reserva na ocasião.

As afirmações foram consideradas uma transgressão disciplinar.

Na década passada, a instauração da Comissão Nacional da Verdade, instituída em 2012 para apurar crimes da ditadura militar, reavivou tensões entre os fardados e hoje é vista como um marco no mal-estar que se seguiu entre as Forças Armadas e os governos do PT, culminado na adesão implícita à candidatura Bolsonaro, em 2018.

Na época da instauração da comissão, militares da reserva elaboraram uma carta com críticas ao governo Dilma Rousseff. A presidente e seu então ministro da Defesa, Celso Amorim, rebateram e cobraram advertência aos responsáveis. Com a celeuma, o manifesto acabou ganhando mais centenas de assinaturas. A cobrança foi repassada aos comandantes das Forças.

A reportagem procurou Marinha, Aeronáutica e Exército e questionou sobre a aplicação das penalidades na época, mas não obteve resposta até a publicação deste texto.

Dilma também teve transtornos ao lidar com um até então pouco conhecido oficial que comandava as tropas do Sul do país. Em 2015, em plena crise política que culminaria no impeachment da petista, o então general da ativa Hamilton Mourão deu declarações sobre a possibilidade de queda da presidente e falou em “despertar para a luta patriótica”.

Em 2018, ele passaria para a reserva e seria eleito vice na chapa de Bolsonaro. Com as falas políticas, acabou sendo trocado de posto: deixou a lotação no Sul e foi remanejado para a Secretaria de Finanças da corporação.

Nesse cargo, já sob a Presidência de Michel Temer, reincidiu em declarações sobre política.

Em uma entrevista na TV, o então comandante do Exército, Eduardo Villas Bôas, saiu em defesa do subordinado e disse que o caso era apenas para ser conversado internamente. “Punição, não”.

O próprio Villas Bôas seria alvo de pressão meses depois, após tuitar sobre julgamento que o Supremo Tribunal Federal realizaria para analisar pedido de habeas corpus do ex-presidente Lula. O general escreveu em rede social que repudiava “a impunidade”, no que foi interpretado como uma tentativa de influenciar a sessão. Ele permaneceu no cargo até 2019.

Para a professora da PUC-Rio Maria Celina D’Araujo, do departamento de ciências sociais, a diferença entre casos pregressos no período da redemocratização e o caso Pazuello é a desconfiança generalizada sobre os propósitos do presidente Bolsonaro e das próprias Forças Armadas.

“O fato [manifestações políticas] não é novidade. A novidade é que o contexto é crítico, em que Forças Armadas que não inspiram confiança do ponto de vista do respeito à legalidade, estão sendo dirigidas por um presidente que não tem apreço pela legalidade, pelas instituições de direito. Então, a sociedade fica apreensiva. O contexto é mais delicado, por ser um presidente que gosta de semear o caos.”

Folha