Luana Araújo rebate Queiroga sobre causa de sua pré-demissão

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Foto: Pedro Ladeira/Folhapress

Anunciada em maio como nova secretária especial de Enfrentamento da Covid e dispensada dez dias depois, a médica infectologista Luana Araújo rebate a nova versão dada em CPI pelo ministro da Saúde, Marcelo Queiroga, que afirmou ter retirado a indicação por conta própria em razão de resistências na classe médica ao nome da especialista.

“O que depreendi da fala do ministro é que o meu comportamento pró-ciência é desagregador. Mas, se o comportamento agregador não é o pró-ciência, a quem estamos querendo agregar?”, questiona a infectologista, que é mestre em saúde pública pela Universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos.

Em entrevista à Folha, Araújo avalia que a resposta à epidemia parou no tempo, que o Brasil nunca saiu da primeira onda da Covid e que a priorização de “estratégias equivocadas” vem colocando o país “em situação bastante sensível”.

Para a médica, que ficou conhecida por fazer críticas na CPI à busca por medicamentos sem eficácia, gastar tempo, energia e dinheiro em discussões como a cloroquina é uma ideia delirante.

Seu depoimento na CPI gerou muita repercussão, mas também ataques. Como tem sido desde então? Tem sido tranquilo dentro do que a situação permite. Acabei sendo exposta e envolvida politicamente numa questão que era absolutamente técnica. E esse movimento político não reflete meu posicionamento, mas o ambiente tóxico que o país vive.

Muitas coisas ocorreram desde o depoimento. Houve muitas tentativas de saber quem eu sou, porque como nunca fui uma pessoa pública e não sou ligada a nenhum tipo de filiação partidária ou a político nenhum, as pessoas talvez não esperassem que quem fosse indicado para ocupar um lugar como esse fosse uma pessoa isenta e técnica.

Houve uma tentativa esdrúxula de me encaixotar e de me classificar, o que não é possível, lamento.

Logo após seu depoimento, o ministro da Saúde mudou de versão sobre a retirada da sua indicação para a secretaria de Enfrentamento da Covid, afirmando ter sido uma decisão dele, e não do Planalto. Como viu essa mudança? O que aconteceu descrevi na CPI [quando disse que ouviu do ministro que seu nome não havia sido aprovado pelo Planalto]. E o que depreendi da nova fala do ministro é que o meu comportamento pró-ciência é desagregador.

Então me faz pensar que o comportamento agregador não é exatamente o pró-ciência. E, se não é o pró-ciência, a quem estamos querendo agregar?

Em meio a essa mudança de versões, o que acha que pesou mais para que seu nome não fosse aprovado? Nunca houve nenhuma dificuldade técnica. Pelo contrário. O que aconteceu é que foram resgatadas declarações minhas [de antes de assumir o cargo, contra o uso de cloroquina para a Covid, por exemplo].

O ministro chegou a falar em uma questão de validação política que, para mim, técnica, não filiada e apartidária, só pode ter sido atribuída a meu posicionamento pró-ciência. Mas um cargo técnico ter virado questão de validação política é extremamente temerário. Isso me deixa um pouco constrangida com eventuais rumos.

Temos um governo que é reconhecidamente negacionista. O que a levou a aceitar o convite ao ministério? Já não imaginava que esse tipo de situação pudesse ocorrer? A falta de informação não é uma exclusividade brasileira. Você precisa aprender a fazer o melhor que pode com o que tem. E o que entendi a partir daquele convite é que existia possibilidade de fazer melhor do que estava acontecendo.

Não esperava que fosse uma situação ideal ou fantástica, mas sabia que poderia contribuir dentro da minha expectativa, que foi alinhada quando fui a Brasília e perguntei: “Teremos autonomia para isso?”. Não pleiteei insubordinação. O que me interessava era fazer melhor do que estava sendo feito.

Algumas das suas falas na CPI geraram muita repercussão. Uma delas é quando disse que a ideia de tratamento precoce é uma “discussão delirante, esdrúxula, anacrônica e contraproducente”. Na sua visão, o que leva a essa insistência no país e até mesmo de membros do governo em torno de algo que não existe? Por questões completamente alheias à ciência, nossa resposta [à epidemia] parou no tempo.

Essa era uma discussão —e por isso chamei de anacrônica— que tínhamos em fevereiro de 2020. Estamos em junho de 2021 e existe uma estrutura governamental e federal do Senado, por exemplo, discutindo uma questão que é completamente fora de propósito. E falo da CPI porque ela existe, e existe um comportamento que está sendo investigado. Mas que isso ainda seja motivo de tempo, energia e dinheiro nosso, de novo, é delirante.

É esdrúxulo porque não consigo justificar isso para ninguém que me pergunta lá fora: ‘Por que razão as pessoas ainda falam isso? Será que não viram os artigos?’. E é absolutamente contraproducente porque deveríamos estar usando esse dinheiro, essa energia e essa discussão toda na busca de soluções adaptadas ao nosso sistema, para aquilo que funciona no nosso nível de vulnerabilidade.

Mas, enquanto isso, estamos falando sobre validade de máscaras, se vacina funciona ou não funciona, se faz ou não medicações que são comprovadamente ineficientes.

Muitos médicos também se posicionaram nos últimos meses a favor desses medicamentos sem eficácia para a Covid. Como vê o papel de parte da classe médica? Existe uma falha na educação médica que sempre foi importante, mas que a pandemia evidenciou. Uma dificuldade enorme de compreensão de epidemiologia, do que é um artigo científico, como interpreta metodologias.

Nesse período todo a classe médica também foi deixada à míngua. Foi colocada nas costas de cada médico, a despeito de sua capacidade técnica, uma decisão que deveria ser coordenada entre as sociedades científicas e o resto do mundo: “A sua autonomia lhe permite fazer o que você quiser, mas as evidências são essas”.

O médico ficou muito vulnerável e como existe um gap [intervalo] grande entre produção e atualização científica, as pessoas ficaram a mercê da própria capacidade, o que nem sempre é possível.

Foram dez dias à frente da secretaria no ministério. O que encontrou na pasta? Ela foi criada para promover uma coordenação da resposta à pandemia. Se foi criada para isso, significa que o ambiente até esse momento era de falta de coordenação, ou de pelo menos uma coordenação efetiva.

A ideia era puxar equipes sob quatro pilares: ciência e epidemiologia; educação, com comunicação para as pessoas e educação de profissionais; plano de vacinação; e, por último, insumos críticos. Nada disso se concretizou.

Não conseguir implementar foi uma questão de tempo curto ou sentiu também alguma resistência? Não tive nenhuma resistência. As dificuldades que encontrei foram dificuldades para trazer pessoas externas ao ministério, por causa dessa questão de sobrepairar a questão política. As pessoas tinham medo de fazer parte disso, e não quiseram se expor nesse nível. E, depois dessa situação toda, como dizer que estão erradas?

Os dados da epidemia já mostram novo aumento de casos. Podemos falar em terceira onda? Falar de terceira onda só funciona se estiver falando de avaliação epidemiológica geograficamente restrita, em que se pode determinar que houve uma ascendência e depois uma queda de número de casos suficiente para caracterizar que uma onda acabou. Se falar nacionalmente, não pode nem dizer que acabou onda nenhuma. Viemos subindo degraus.

A população faz um esforço enorme, e existe um preço socioeconômico alto, mas essa morosidade da vacinação e priorização de estratégias equivocadas vai nos colocando em uma situação que é bastante sensível.

Quando fala em estratégias equivocadas, quais seriam? Investimento em medicações que não são apropriadas como estratégia prioritária de política pública, a falta de informação clara, precisa e única para a população, pouco investimento na testagem, a não utilização da atenção primária como ferramenta básica de combate à epidemia e o direcionamento da resposta à atenção terciária [rede de hospitais].

Isso mostra que estamos atrasados, porque, quando se foca apenas em abrir leito e não em prevenir a doença, em uma doença viral pandêmica, estamos enxugando gelo.

Vimos o presidente Jair Bolsonaro propor desobrigar o uso de máscaras. E uma resposta do ministro de que iria estudar essa medida. Como vê essa proposta e essas investidas do presidente? Acho que a saída sempre é a educação do povo. É isso que muda as coisas. Se as pessoas tiverem acesso à informação correta e condição crítica de avaliar o que é oferecido a elas, não interessa o que o gestor fale.

O governador de São Paulo, João Doria, disse que pretendia convidá-la para auxiliar nas ações contra a Covid. Pretende aceitar? Não tenho nenhuma pretensão de assumir cargos em administrações públicas. No momento político tóxico que vivemos, qualquer outra manifestação nesse sentido vai ser vista como política, e não técnica, e não é esse meu objetivo.

No meio da enxurrada de mensagens pós-CPI, sua posição política foi bastante questionada. Chegou a apoiar o governo Bolsonaro em algum momento? Tecnicamente essa posição política é absolutamente irrelevante. O que precisa ser feito é resolver os problemas, e não me interessa quem está lá.

A CPI tem evidenciado cenas de machismo. Você chamou a atenção na CPI para o fato de que não havia senadoras presentes. Como foi depor nesse ambiente? Conforme vamos ascendendo nas questões profissionais, vemos menos mulheres. E estamos acostumadas com um ambiente que é potencialmente tóxico e misógino.

Quando cheguei na CPI, não me senti intimidada. Mas isso não quer dizer que não me incomode chegar ali e não ver uma senadora.

Uma delas disse que estavam atuando em comissões diferentes, e entendo. Mas também entendo que homens também participam de outras comissões. Então por que diabos não tínhamos mais mulheres ali?

E também entendi que a participação da bancada feminina teve de ser pleiteada. Em que mundo vivemos que precisamos pleitear uma bancada de gênero para fazer perguntas em uma CPI técnica?

Com relação a ataques que vieram depois, isso era absolutamente esperado. O que eu falei na CPI foi o consenso científico. E, como não se consegue rebater o consenso científico, ataca-se o mensageiro. E nesse país uma técnica bisonha para isso é a misoginia.

LUANA ARAÚJO, 40
Formada em medicina pela Universidade Federal do Rio de Janeiro (2006), com residência médica em infectologia pela mesma universidade (2010). É mestre em saúde pública pela Universidade Johns Hopkins (Estados Unidos, 2019-2020). Recebeu para o mestrado a bolsa de estudos Sommer, que reconhece estudantes com excelência acadêmica ou potencial para liderança em saúde. Atua como consultora em saúde pública global

Folha de S. Paulo