Origem do coronavírus ainda intriga a Ciência

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Foto: Reprodução/ Internet

Os últimos meses trouxeram de volta à tona o debate sobre a origem do coronavírus SARS-CoV-2, causador da pandemia. Desde que foi primeiramente identificado num mercado em Wuhan no começo de 2021, muitas teorias circularam pela internet, às vezes com motivação mais política que científica.

Um ano e meio de buscas pela origem do vírus resultou em muitas respostas, mas também deixou muitas dúvidas. A discussão tem acirrado os ânimos tanto da sociedade quanto da comunidade científica, que querem saber quem são os heróis e os vilões da história. A reposta nem sempre é fácil.

Muita coisa já se sabia um ano atrás. O vírus se parece muito com outras variantes encontradas na natureza, e não foi projetado num laboratório.

Todas as peculiaridades do vírus, que o tornam tão eficiente em atacar células humanas, também já foram identificadas em outras variantes.

Em suma, não há nenhum indício muito forte que indique que o SARS-CoV-2 não tenha origem em animais silvestres, como tem sido o caso em todas as pandemias anteriores.

Muitos desses resultados foram publicados pelo mais importante centro de estudos sobre coronavírus: o Instituto de Virologia de Wuhan, localizado a poucos quilômetros do epicentro da pandemia.

Porém, um ano se passou e ainda não encontramos o SARS-CoV-2 em animais silvestres. Nesse meio tempo, muitos cientistas começam a achar que já é hora de considerarmos hipóteses até pouco tempo consideradas pouco prováveis.

Teria o vírus escapado do próprio Instituto de Virologia de Wuhan? A resposta pode ter consequências importantíssimas na maneira como são conduzidas as pesquisas sobre vírus.

A existência do laboratório em Wuhan em si não é suspeita. O laboratório foi construído na região de onde já havia saído o coronavírus causador do SARS, justamente com o propósito de estudar as várias espécies de coronavírus presentes em animais silvestres a fim de monitorar a evolução de novas cepas.

Em qualquer epidemia, é comum encontrarmos laboratórios nas redondezas estudando o vírus em questão. Além disso, também é comum demorarmos vários anos para encontrar os animais silvestres portadores da doença.

E com efeito, o Instituto de Wuhan foi responsável por grandes avanços na área, principalmente devido a Shi Zhengli, a “mulher morcego” que se tornou uma celebridade na China.

O trabalho de Shi Zhengli envolve a coleta de amostras de fezes de morcegos em cavernas, a fim de identificar novas variantes de coronavírus. Muita atenção tem sido dispensada a esse tipo de pesquisa desde a primeira epidemia de SARS, em 2002. Assim, é possível que pesquisadores tenham trazido o SARS-CoV-2 ao laboratório, ou mesmo o contraído durante a coleta das amostras.

Segundo Shi, todo o inventário de seu laboratório foi minuciosamente analisado assim que se teve notícia do vírus, e o SARS-CoV-2 não foi encontrado.

Com efeito, é difícil obter partículas virais completas das amostras, que majoritariamente contêm apenas fragmentos virais que não apresentam risco de contaminação. Pesquisas com tais vírus geralmente necessitam de culturas de células animais capazes de serem infectadas para manter o vírus “vivo”.

Caso pesquisadores realmente tenham trazido o vírus dos morcegos das cavernas para o laboratório e o tenham deixado escapar, isso representaria uma falha gravíssima de segurança que mancharia a reputação dos institutos chineses.

Ainda assim, apesar do papel do Instituto em começar a pandemia, a origem do vírus continuaria sendo natural. Mesmo sem a participação do Instituto, o vírus continuaria presente na natureza como uma bomba relógio prestes a explodir.

Mas ainda há um possível papel muito mais controverso do Instituto em começar a pandemia: a realização dos chamados experimentos de ganho de função, que já vinham sendo muito discutidos na última década.

Em 2012, um grupo de cientistas da Europa se propôs a estudar a possibilidade de que uma perigosa gripe aviária pudesse infectar seres humanos. Para isso usaram o vírus para infectar repetidamente um grupo de furões, animais com um sistema imunológico mais parecido com o nosso.

Ao final do experimento, os cientistas concluíram que realmente o vírus evoluíra a capacidade de infectar células humanas, um resultado muito importante para tentar impedir a próxima pandemia. Porém, esses cientistas agora tinham em mãos um novo vírus, que “ganhou uma nova função” e agora era capaz de iniciar uma epidemia.

Mas como então antecipar o surgimento de novas cepas com potencial de infectar seres humanos?

Muitos cientistas respeitados argumentam que só há uma maneira: reproduzir nos laboratórios as condições que levariam esses vírus a desenvolver a capacidade de infectar células humanas.

Em tese, esses experimentos nos deixariam um passo à frente dos vírus, e poderíamos já estar preparados quando essas infecções enfim ocorressem.

Mas é mesmo uma boa ideia conduzir experimentos que arriscam produzir vírus mais perigosos que os já existentes? A maioria da comunidade científica discorda.

Reconhecendo o risco dos experimentos de ganho de função, a administração de Obama impôs uma moratória na sua realização. Já sob a administração de Trump, essa moratória foi suspensa, e os experimentos foram retomados em algumas poucas localidades, como Galveston no Texas e Chapel Hill na Carolina do Norte. Da mesma maneira, o NIH (National Institutes of Health) voltou a financiar pesquisas do tipo, incluindo projetos no Instituto de Virologia de Wuhan.

Em um desses projetos, publicado em 2017, Shi Zhengli queria verificar se coronavírus obtidos de amostras de morcegos conseguiriam desenvolver a capacidade de infectar células humanas, algo que geralmente não acontece diretamente.

Coronavírus não têm uma taxa de mutação alta, mas frequentemente se recombinam com outras variantes, adquirindo novas características (por isso não é surpresa que o SARS-CoV-2 apresenta características de variantes distintas).

Shi então conduziu experimentos onde várias cepas obtidas de morcegos eram recombinadas até desenvolverem uma variante com afinidade ao receptor ACE2, o mesmo utilizado pelo SARS-CoV-2 para adentrar células humanas.

A variante gerada nesse experimento, muito bem documentado, não foi exatamente o SARS-CoV-2. E na realidade o projeto até demonstra o mecanismo pelo qual o vírus poderia ser gerado na natureza. No entanto, o fato de que o Instituto de Virologia de Wuhan vinha realizando experimentos de ganho de função deixam uma pulga atrás da orelha sobre o conteúdo de outros projetos ainda não publicados.

Alguns na comunidade científica acreditam que os experimentos de ganho de função são essenciais para se prever e evitar futuras pandemias. Esse grupo encabeçado por Peter Daszak, muito investido na situação, escreveu uma carta no ano passado que praticamente eliminava a possibilidade de um acidente de laboratório.

Depois as dúvidas foram ganhando corpo, e o NIH, a mando da Casa Branca, cortou o financiamento às pesquisas de ganho de função conduzidas em Wuhan.

Mais recentemente, outra carta encabeçada por Jesse Bloom e David Relman, refletindo a posição da maioria da comunidade científica, pede uma investigação mais aprofundada das origens do SARS-CoV-2.

Apesar de a origem natural do vírus ainda ser considerada mais provável, é necessário considerar seriamente a hipótese de um acidente laboratorial.

Enquanto isso, tempo precioso vai sendo perdido com a politização da questão.

Acuado pelo clima inóspito no Ocidente, o governo chinês vai cercando cada vez mais o Instituto de Wuhan.

A missão da OMS incumbida de averiguar a origem do vírus voltou sem uma análise aprofundada do Instituto, e foi criticada até pelo próprio presidente da OMS.

E Shi Zhengli, uma das pessoas mais qualificadas e talvez a única que possa fornecer respostas definitivas, segue isolada, frustrada e sem poder conceder entrevistas.

Até recentemente, as pesquisas de Wuhan eram feitas abertamente, em colaborações internacionais e com financiamento internacional.

Entender o que se passou é fundamental não só para se evitar pandemias futuras, mas para se repensar os limites da pesquisa com vírus perigosos, estabelecendo o ponto onde o cientista deixa de ser herói e passa a ser vilão.

Uol