Pela primeira vez Brasil pune um militar que cometeu crimes na ditadura

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Foto: Apu Gomes – 21.out.2011/Folhapress

A Justiça condenou, pela primeira vez em uma ação penal, um ex-agente da ditadura militar por crimes políticos cometidos durante o período do regime (1964-1985).

O delegado aposentado Carlos Alberto Augusto, conhecido na época como Carlinhos Metralha, atuava no Departamento Estadual de Ordem Política e Social de São Paulo (Deops-SP) e foi condenado em primeira instância a 2 anos e 11 meses de prisão por participar no sequestro do ex-fuzileiro naval Edgar de Aquino Duarte.

A sentença foi proferida pelo juiz federal Silvio César Arouck Gemaque, da 9ª Vara Criminal Federal de São Paulo. Ainda cabe recurso à decisão, e o delegado poderá recorrer em liberdade. A defesa de Augusto foi procurada, mas não respondeu até a publicação deste texto.

​Duarte foi preso no dia 13 de junho de 1971, sem qualquer ordem judicial que embasasse a ação. Na época, trabalhava como corretor da Bolsa de Valores de São Paulo e já não tinha nenhum vínculo com grupos de oposição à ditadura. Ele havia sido expulso da Marinha em 1964 em decorrência do AI-1 (Ato Institucional nº 1) e tinha deixado a militância política desde que retornara do exílio, em 1968.

De acordo com o procurador Andrey Mendonça, além de ser a primeira condenação da perpectiva penal relacionada a crimes cometidos no período da ditadura, a decisão também é importante porque reconhece o “caracter sistemático da conduta e que as ações não eram apenas fruto de casos isolados”.

A denúncia foi realizada pelo MPF (Ministério Público Federal) em 2012 contra o delegado e outros envolvidos no caso. Segundo o órgão, este é um dos poucos casos relacionados a crimes da ditadura que tiveram andamento na Justiça. A maioria das mais de 50 ações penais propostas pelo órgão nos últimos anos foi rejeitada ou está paralisada.

Na sentença, a Justiça reconheceu a responsabilidade penal do réu, comprovada “além de qualquer dúvida razoável” com documentos do Arquivo Público do Estado de São Paulo e diversos depoimentos de testemunhas.

“Há provas mais do que suficientes no sentido de que o acusado Carlos Augusto participou da prisão da vítima e atuava em pelo menos um dos locais onde se encontrava detida ilegalmente”, escreveu o juiz federal.

Ainda segundo o magistrado, “em hipótese alguma, é admissível que forças estatais de repressão, mesmo em regimes como os vivenciados naquela época, tivessem autorização para a prática de atos à margem da lei em relação a Edgar, permanecendo preso por pelo [menos] dois anos, incomunicável, submetido a toda a sorte de violências, torturas e tratamentos degradantes. Ora, espera-se das forças de Estado o exercício legítimo do direito da força, não a prática de crimes”.

“Esta é uma decisão importante e pode colocar novamente em debate um tema ainda mal resolvido no país, que são os crimes cometidos na época da ditadura”, avalia Leandro Sarcedo, presidente da Comissão de Direitos e Prerrogativas da OAB São Paulo.

Ele ressalta, entretanto, que podem ocorrer dificuldades para manter a decisão, do ponto de vista jurídico. Sarcedo afirma que o período de 50 anos para um sequestro pode ser considerado demasiadamente longo. “Não existe sequestro de 50 anos. A vítima, infelizmente, desapareceu.”

Segundo ele, caindo a tese de sequestro, o crime pode ser considerado prescrito. “Crimes contra a humanidade entraram no ordenamento jurídico somente após o fato”, diz ele, ressaltando que a avaliação é sobre as dificuldades jurídicas e não sobre a legitimidade do caso.

Para Renan Quinalha, professor de direito da Unifesp (Universidade Federal de São Paulo), a decisão foi “extremamente importante” por mostrar uma postura do Judiciário “diferente da que vinha sendo praticada”.

“Era uma postura muito conservadora do ponto de vista das questões da Justiça de transição no Brasil e também refratária ao direito internacional dos direitos humanos, já que o Estado brasileiro já foi condenado duas vezes na Corte Interamericana para que reveja a interpretação que vem sendo dada à Lei da Anistia.”

Quinalha afirma que a revisão da interpretação da Lei da Anistia foi uma das 27 recomendações que a Comissão Nacional da Verdade, da qual ele fez parte, estabeleceu ao longo das análises que o grupo fez dos crimes ocorridos no período da ditadura.

O STF (Supremo Tribunal Federal) já decidiu anteriormente que a Lei da Anistia não pode ser alterada para possibilitar a punição de agentes do Estado que praticaram tortura durante a ditadura militar.

A sentença de Gemaque reforça que o desaparecimento da vítima até os dias de hoje impede que o crime, ainda em prática, seja considerado prescrito. De acordo com a decisão, a anistia também não pode ser aplicada neste caso.

A decisão avalia que ações como o sequestro de Duarte foram efetuadas em um contexto de ataque generalizado do Estado brasileiro contra a população civil e, por isso, constituem crimes contra a humanidade.

“Sem dúvida nenhuma o caráter de um ataque sistemático de perseguição política praticado durante o período de maior perseguição política pós-1964 aplica-se ao caso retratado na denúncia, como bem salientou o representante do MPF em suas alegações finais, uma vez que o crime de sequestro imputado ao acusado pode ser caracterizado como desaparecimento forçado de pessoas, na esteira do que vem decidindo sistematicamente a Corte Interamericana de Direitos Humanos”, ressaltou o juiz.

Além de Carlos Alberto Augusto, o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra —ex-comandante do Destacamento de Operações de Informações do 2º Exército (DOI-Codi) em São Paulo— e o ex-delegado Alcides Singillo também respondiam pelo sequestro de Duarte. Porém, eles deixaram de figurar como réus após morrerem em 2015 e 2019, respectivamente.

O ex-fuzileiro naval entrou no radar das autoridades após ter seu nome citado no depoimento de José Anselmo dos Santos. Preso dias antes de Duarte, o Cabo Anselmo hospedava-se no apartamento do ex-colega de Marinha e viria a se tornar um agente infiltrado dos órgãos de repressão, sob supervisão de Carlos Alberto Augusto.

Augusto participou diretamente da ação que resultou na prisão de Duarte e sua condução ao DOI-Codi. Preso, ele foi mantido sem comunicação judicial pelos dois anos seguintes. Neste período, a vítima foi sucessivamente transferida entre os prédios do DOI-Codi e do Deops-SP. Duarte foi visto por testemunhas pela última vez em junho de 1973.

Folha de S. Paulo