Relatório da PF mostra que Secom distribuiu verbas com viés político

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Foto: Arquivo O Globo

Mensagens de WhatsApp colhidas pela Polícia Federal ao longo do inquérito dos atos antidemocráticos revelam que Fabio Wajngarten, então chefe da Secretaria de Comunicação Social (Secom) do governo Bolsonaro, defendeu a liberação de verba publicitária da Caixa Econômica Federal para veículos de comunicação classificados por ele como “mídia aliada”.

Segundo relatório da PF, em abril de 2019 Wajngarten assumiu o comando da Secom e se aproximou do blogueiro bolsonarista Allan dos Santos, dono do site Terça Livre e amigo dos filhos do presidente. Naquela ocasião, Wajngarten se apresentou para Allan dos Santos dizendo ser um empresário de mídia “muito” próximo de executivos de emissoras de TV. Afirmou ainda que poderia aproximar o blogueiro desses veículos e que, naquela semana, já havia promovido encontros de parlamentares com a cúpula do SBT, da Band e que iria se encontrar com “bispos da Record”. Em nota, Wajngarten diz que atuação na Secom foi ‘técnica e profissional’, e emissoras negam privilégio e reafirmam isenção.

No diálogo, Wagjngarten demonstrou preocupação com o atraso no pagamento de verbas de publicidade a quem classifica como “aliados”. Ele diz ter sido informado que a “Caixa”, em provável referência à Caixa Econômica Federal, estaria “devendo dinheiro” à Band e “RTV” (possível citação à Rede TV!), conforme demonstra o diálogo a seguir:

Fabio Wajngarten: “Caixa devendo dinheiro pra BAND, RTV”.

Allan dos Santos: “E como foi?”

Fabio Wanjgarten: “os aliados estão furiosos”

Fabio Wajngarten: “General sentou em cima e não paga nenhuma nota passada”

Fabio Wajngarten “provocando iminentes tumores”

Allan dos Santos: “Desnecessário”

Fabio Wajngarten: “totalmente desnecessário”.

O relatório da PF não identifica o “general” citado por Wajngarten, mas, à época das mensagens, a Secom era vinculada à Secretaria de Governo, chefiada pelo general Carlos Alberto Santos Cruz. O militar foi alvo de ataques de bolsonaristas e acabou sendo demitido pelo presidente.

Wajngarten relatou que tentou aproximar Bolsonaro da cúpula da Band — e chegou até a fazer uma ligação por meio de videoconferência entre o presidente e Johnny Saad, dono do Grupo Bandeirantes, e Paulo Saad, vice-presidente da emissora.

Em seguida, Allan dos Santos avalia a Wajngarten que era preciso trazer “esses caras” para perto do governo, com o que o então chefe da Secom concordou, conforme demonstra o diálogo:

Allan dos Santos: “É preciso trazer esses caras pra perto, não afastá-los”.

Fabio Wajngarten: “na hora convidei-os”.

Fabio Wajngarten: “óbvio”

Fabio Wajngarten: “ninguém está vendo”

Fabio Wajngarten: “uma barbaridade”

Fabio Wajngarten: “mídia aliada”

Allan: “Excelente”

Em outro momento do diálogo, Allan dos Santos compartilhou um link de uma notícia sobre a decisão do Ministério Público que atua perante o Tribunal de Contas da União (TCU) de pedir à Corte que obrigue a Secom a distribuir verbas publicitárias do governo com base em critérios técnicos. Naquele momento, em janeiro de 2020, o jornal Folha de S. Paulo revelara que Wajngarten mantinha contratos, por meio de sua empresa FW Comunicação e Marketing, com as emissoras Record e Band, que recebiam recursos da Secom.

Contrariado, Wajngarten respondeu: “Eles querem o retorno de 80% para a Globo. Vergonhoso”. Na sequência, o blogueiro bolsonarista sugeriu: “Bora bater sem parar”. O então chefe da Secom agradeceu.

Parte dessa estratégia da Secom de retaliar os que não são considerados “mídia aliada” envolvia um canal de contato com bolsonaristas no qual foi discutida até uma proposta de criação de um departamento de contrainformação.

Segundo as mensagens analisadas pela PF, Wajngarten criou um grupo de WhatsApp chamado “Mídia Pensante — SECOM” e adicionou Allan dos Santos. Um dos integrantes chegou a sugerir em uma mensagem: “Fabio (Wajngarten), aquela ideia de comunicação estratégica e contrainformação. Na minha opinião, você deve criar um departamento para isso. Você já até concordou com a ideia. Vamos implementá-la?”. Wajngarten, sem titubear, respondeu: “Vamos implementar”.

Em outra mensagem, enviada por Allan dos Santos a um contato chamado por ele de “Eduardo”, em provável referência ao deputado federal Eduardo Bolsonaro, ele diz: “Precisamos da Secom para implementar uma ação que desenhamos aqui”, afirma o blogueiro, que sugeriu a indicação de uma pessoa para assumir a Secretaria de Radiodifusão. “Seu pai disse que sim”, alertou Allan dos Santos.

Nessa mesma mensagem, Eduardo diz que tem o contato de Douglas Tavolaro, ex-executivo das emissoras Record e CNN. “O Douglas diz que a linha será da Record, que o que vem dos EUA é só o nome CNN”, afirma o filho do presidente.

Dados extraídos do sistema de pagamentos da Secom mostram que veículos classificados como “mídia aliada” por Wajngarten foram privilegiados na distribuição da verba.

Na comparação entre os biênios de 2017 e 2018 (sob o governo do então presidente Michel Temer) e 2019 e 2020, já no governo de Jair Bolsonaro, a verba da Secom caiu, em média, 26%, saindo de um total de R$ 409 milhões para R$ 300,5 milhões. O volume de recursos públicos destinado à Globo Comunicação e Participações, que controla a TV Globo, teve um corte maior — de 69%. A verba destinada à Record caiu 7%, saindo de R$ 36,5 milhões para R$ 33,8 milhões. O SBT teve uma queda de 16%, passando de R$ 34,5 milhões para R$ 28,9 milhões. A Bandeirantes teve uma queda de 22%, ainda abaixo da média, caindo de R$ 12 milhões para R$ 9,6 milhões. A Rede TV!, ao contrário, teve aumento no volume de verbas de 10%, saindo de R$ 1,5 milhão para R$ 4,1 milhões no período.

Os dados compilados de janeiro a junho deste ano apontam que o padrão vem se mantendo. Duas emissoras lideram o ranking de recebimento de verba pública — a Record, com R$ 8,3 milhões, e o SBT, com R$ 8,3 milhões. A Globo está em terceiro lugar, com R$ 6,2 milhões, à frente da Bandeirantes, com R$ 4,4 milhões e Rede TV! com R$ 1,8 milhão.

Uma instrução normativa do governo federal estabelece quais os critérios que a Secom deve considerar para fazer a distribuição da sua verba de publicidade institucional. O primeiro critério estabelecido na norma é a audiência. Em seguida estão: perfil do público-alvo, perfil editorial, cobertura geográfica dados técnicos de mercado, e pesquisas de mídia, sempre que possível. Um trabalho de auditoria do TCU, revelado pelo jornal Folha de S. Paulo, apontou que faltam critérios técnicos para a distribuição de verbas publicitárias a TVs abertas pelo governo Jair Bolsonaro.

Essa não é a primeira vez que a atuação de Wajngarten em benefício de veículos vem à tona. Em 2020, sua gestão foi alvo de processos no Tribunal de Contas da União (TCU) e no Ministério Público Federal (MPF). Os processos começaram depois de revelações feitas pelos jornais O GLOBO e Folha de S. Paulo de que canais do Youtube e sites que veiculam desinformação e propagam discurso antidemocrático recebiam verba publicitária da Secom e de estatais como o Banco do Brasil, Petrobras, Eletrobras e BNDES. O TCU chegou a suspender toda a publicidade do Banco do Brasil na internet. O MPF, por sua vez, abriu um inquérito para apurar a eventual distribuição de verbas com base em critérios “ideológicos”.

Questionado sobre o teor das mensagens, Fabio Wajngarten disse, por e-mail, que sua gestão foi “técnica e profissional”. Ele foi questionado sobre se era comum a sua atuação para liberar verbas atrasadas de estatais para veículos considerados “aliados”. Sem mencionar o assunto, Wajngarten respondeu que “se alguma repartição resolveu não pagar por qualquer serviço prestado, cabe ao bom gestor resolver a falta de pagamento”.

“Minha gestão sempre foi técnica e profissional. Cabe à Secom atender a todos os veículos de maneira equânime. Se alguma repartição resolveu não pagar por qualquer serviço prestado, cabe ao bom gestor resolver a falta de pagamento. A redução de verbas condiz com uma política de mídia técnica. Vale esclarecer ainda que não faço parte desse inquérito”, disse o ex-secretário.

Em nota, a Caixa diz que sua publicidade é feita por agências contratadas por licitação e que divulga as despesas com propaganda na internet. No endereço, no entanto, não é possível saber qual o total de verbas destinadas a cada veículo. Em pedidos abertos via Lei de Acesso a Informação, a Caixa alega que a divulgação poderia prejudicar sua estratégia mercadológica.

Em nota, a Rede TV! informou que não fornece dados dos seus contratos comerciais. “O único relacionamento com o senhor Fabio Wajngarten era como chefe da Secom, nos processos diários”, disse em comunicado. “O jornalismo da emissora é reconhecidamente imparcial, plural e independente” e afirmou que o seu share de participação é “muito inferior do que seria o justo pela mídia técnica”. “Nesse sentido, o faturamento da RedeTV! é extremamente menor do que, por exemplo, o da TV Globo”, informou.

A CNN Brasil, também por meio de nota, disse que “não tem nenhuma relação com o Sr. Fábio Wajngarten” e que “desconhece qualquer contato que o Sr. Fábio Wajngarten possa ter feito com a emissora fora de suas atribuições enquanto era Secretário de Governo”. A emissora também informou que Douglas Tavolaro não faz parte dos quadros da CNN Brasil desde março.

Em nota, o Grupo Bandeirantes afirma que é “reconhecido pela qualidade e imparcialidade de seu jornalismo” e que as suas “relações com chefes do Secom são institucionais como as de qualquer grupo jornalístico —inclusive O Globo”. “Entra governo e sai governo, somos acusados ora de ser de oposição, ora de ser de situação. Nada mais natural para uma emissora que pratica um jornalismo sempre — e apenas — ao lado do cidadão”.

Record e SBT não responderam. A reportagem procurou os advogados de Allan dos Santos, mas eles não atenderam às chamadas e mensagens de texto. O blogueiro também não retornou às tentativas de contato. A reportagem enviou questionamento à Secom, Ministério das Comunicações e ao Palácio do Planalto, mas não houve resposta. Procurado, o deputado federal Eduardo Bolsonaro também não respondeu às ligações e às mensagens de texto enviadas.

O Globo