Se Bolsonaro não começar a se mexer teremos apagão em outubro

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Foto: Eduardo Anizelli/Folhapress

Líder da equipe que investigou as causas do racionamento de energia de 2001, o engenheiro e hidrólogo Jerson Kelman diz que o país vive situação “menos aflitiva” hoje, mas precisa tomar medidas para evitar apagões em horários de maior demanda no fim do ano.

“Se nada for feito, a chance é grande de que lá para outubro e novembro a gente possa ter desligamentos no horário de pico”, afirma, descartando, porém, a possibilidade de um novo programa de racionamento.

Ele diz que as soluções são simples, mas dependem de uma maior orquestração entre as diversas esferas do Executivo relacionadas ao setor, como ocorreu em 2001, para garantir a tomada de decisões sem questionamentos posteriores.

“Não pode cada braço do Executivo fazer uma coisa olhando seu próprio umbigo”, diz ele, que comandou as agências reguladoras que tratam do setor elétrico e das águas e presidiu a Sabesp na época do racionamento de água em São Paulo.

Como o cenário atual se compara com o de 2001? A seca é pior, mas há uma diferença importante: agora temos térmicas e elas estão sendo acionadas. Mas isso não está sendo suficiente para economizar água nos reservatórios para enfrentar situações mais difíceis adiante. A Bacia do Paraná está se esvaindo por uma restrição ambiental sobre [as hidrelétricas] Porto Primavera e Jupiá, no Rio Paraná.

Que restrições são essas? A diminuição da vazão de Porto Primavera deixa o rio mais baixo e forma algumas lagoas marginais, com pouca profundidade, onde a temperatura da água esquenta e os peixes começam a morrer. Nesse tipo de situação, o Ministério Público local costuma ir em cima dos operadores das usinas, gerando um temor de processos por crime ambiental.

Como essas duas usinas não têm reservatório, acabam demandando que as usinas rio acima soltem água. Então está esvaziando a bacia como um todo. Um estudo do ONS mostra que, se permanecer como está, todos os reservatórios da bacia do Paraná vão esvaziar ainda no segundo semestre.

E, como a potência depende da vazão e da altura da queda d’água, se o nível baixa demais, precisa de mais água para produzir a mesma potência. A preocupação é chegar em novembro com quedas muito pequenas e pouca água nos reservatórios, o que torna muito provável que comecemos a ter apagões.

Que tipo de apagões? Apagões no horário de pico. Se nada for feito, é muito provável que não tenhamos potência para atender a carga naquele momento em que todo mundo está com ar condicionado ligado. É grande a chance de que, lá para outubro e novembro, a gente tenha desligamentos no horário de pico. É inevitável? Não. Ainda temos coisas a fazer.

O que pode ser feito? Primeiro, temos que parar de soltar água. Os peixes têm que ser protegidos de outra maneira. Podemos usar o exemplo da Califórnia, que criou uma força tarefa para salvar os peixes e estão usando caminhões [para transportar para áreas com mais água]. Não é ficar olhando o peixe morrer, é fazer alguma coisa. No nosso caso, podemos fazer algumas obras para deslocar os peixes.

O governo, corretamente, já mandou acionar todas as térmicas, inclusive aquelas que não estavam na lista do ONS [Operador Nacional do Sistema Elétrico]. Outra coisa é verificar algum tipo de rearranjo da demanda. Não é diminuir a energia total que se consome no mês, como em 2001, mas distribuir durante o dia para evitar o pico.

Mas, a pouco mais de um ano para a eleição, o governo não terá resistência a medidas que afetem o eleitorado? Pode ser uma negociação econômica. Dependendo da indústria, o uso da carga pode ser remanejado. Se retribuir de forma interessante, a empresa pode fazer um turno de madrugada, reduzindo o consumo na hora do pico.

De onde sairia o dinheiro para essas compensações? Não sai do contribuinte, isso tem que ficar no setor elétrico. Mas é viável. Outro aprendizado de 2001 é que é preciso ter articulação no Executivo, é preciso ter governança no processo. Não precisa ser exatamente igual ao de 2001, mas alguma coisa é necessária. Não pode cada braço do Executivo fazer uma coisa olhando seu próprio umbigo.

É também necessário que as decisões finais sejam da alçada de alguém com nível ministerial. Essa autoridade não pode ficar à mercê de todo e qualquer promotor de Justiça que discorde das medidas, olhando apenas o trecho do rio que ele quer ver e não para o país como um todo. A alçada tem que ser ministerial, porque assim só o procurador-geral poderia processar.

Com a mudança climática, as condições extremas como secas e inundações tendem a ser mais frequentes. O Brasil precisa pensar em outra alternativa às hidrelétricas? Não. O Brasil vai ter cada vez mais eólicas e solares e, nesse cenário, as hidrelétricas tendem a operar com reservatórios cheios, fazendo o atendimento à flutuação de demanda alta. Mas é preciso que o Congresso se debruce sobre o PL que reforma o setor elétrico.

Antes da solar e eólica, o único produto relevante produzido pelas usinas era a energia, a capacidade de produzir MWh. Com a inserção de eólica e solar, que não são despacháveis [isto é, geram apenas quando a natureza permite], a capacidade de poder ligar uma usina quando necessário passou a ser um atributo, que precisa ser diferenciado.

Quando isso for feito, os sinais econômicos estarão dados e terá incentivo para as hidrelétricas ficarem cheias. Essa proposta nasceu na CP 33 [consulta pública iniciada no governo Michel Temer], quando o setor elétrico estava numa boa direção. Mas agora está sendo descarrilhado pela MP da Eletrobras, que retrocede o setor elétrico fazendo reserva de mercado.

O sr. é contra o texto da privatização? Interessa aos consumidores que chegue energia na casa deles ao menor preço possível. Isso é garantido por um processo de competição. Mas o atraso é o Brasil cartorial, em que se tem reservas de mercado, que a fonte energética, a localização da fonte energética, tudo isso seja decidido de forma cartorial. Quem for amigo do rei recebe aquela capitania hereditária. Não queremos isso, queremos competição.

Há situações em que a política pública pode proteger, incentivar alguma tecnologia ainda na infância. Foi assim no caso do Proinfa [programa de incentivo a fontes renováveis], que deu condições especiais para eólica e solar. Passaram-se anos, mostrou-se tão certo que essas fontes ficaram baratas. Aí alguém coloca um jabuti na MP da Eletrobras prorrogando aqueles contratos que foram fechados lá atrás a preços muito altos.

Térmicas a gás serão necessárias, mas obrigar a instalar num lugar que não tem gasoduto e depois puxar uma linha de transmissão de volta para onde tem o consumo é uma ginástica que privatiza o benefício e socializa o custo.

O sr. acredita que isso pode ser alterado no Senado?  Eu sou favorável à capitalização da Eletrobras como foi concebida. A meu ver, ela é positiva para o país. Agora, esse tema, como saiu da Câmara para o Senado, me leva a dizer o seguinte: hoje sou contra a aprovação no Senado como está. Eu, se fosse senador, votaria contra. Prefiro que a Eletrobras permaneça como está a que se aprove esse retrocesso, que é mais do que as contas mostram. É um retrocesso que recria reserva de mercado cartorial.

O sr. citou que sinais econômicos errados levaram ao apagão de 2001 e hoje há muitas críticas ao modelo de formação de preços da energia, por não refletir a crise hídrica. É a mesma situação? O modelo de preços precisa ser revisto. Hoje, cerca de 75% da carga é atendida por fontes não controláveis: solar, eólica e hidráulica. Se sou obrigado a soltar água na hidrelétrica, ela passa pela turbina e acaba gerando energia em usinas que não gostaríamos de usar nesse momento.

A água dessas hidrelétricas deveria ter um custo altíssimo [na seca], poderia estar valendo R$ 900 por MWh. Mas o sistema considera que vale zero porque não tem a possibilidade de guardar lá. Isso induz a uma má operação. Se não tem a obrigação de soltar água, o programa [que define os preços] calcula quanto vale o metro cúbico de água. Se a água valesse R$ 800 por MWh e o PLD [o preço do mercado de curto prazo] está R$ 200 por MWh, eu não uso a água agora.

Mas há também outros conflitos pelo uso da água, como abastecimento humano ou irrigação. No passado, o rio São Francisco vivia vazio, porque o Ibama tinha restrição para soltar um mínimo 1,3 mil metros cúbicos por segundo para manter o nível do rio alto e permitir a captação de água de Aracaju. Mas tem soluções, como botar bomba flutuante e jogar a tomada d’água para dentro do rio. Há uma série de restrições operativas que, se olhadas de forma mais holística, têm solução sem sacrificar o consumo local.

Temos ainda um problema de tomar decisões de forma fragmentada, olhando aspectos locais e usando uma visão unidimensional. Vejam o caso da Volta Grande do Xingu [região beneficiada por decisão do Ibama que reduziu a geração da hidrelétrica de Belo Monte]. Toda a opinião pública ficou a favor da Volta Grande, com certa razão, porque tem os índios e os ribeirinhos.

Mas Belo Monte deixou de gerar 2,5 milhões de MWh. O reservatório de Furnas [em Minas Gerais] estaria com 45% de sua capacidade se essa energia fosse utilizada [está com 35%]. Quando olhamos apenas para aquela comunidade, não vemos que estamos cobrindo um santo para descobrir outro.

Folha