As diferenças entre ser doméstica no Brasil e nos EUA

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Foto: GETTY IMAGES

“Patrão vem como uma autoridade, como ‘você faz aquilo que eu estou falando’, não é como uma igualdade. Eu senti isso na pele e minha mãe também sentiu isso muito forte. Cliente é diferente. O cliente te respeita, te olha nos olhos, te valoriza, reconhece o seu esforço e o seu trabalho. E ele te paga por isso e paga bem.”

Para Paula Costa, de 53 anos e faxineira em Boston há mais de 20, a diferença entre ter “patrões” e ter “clientes” é um dos pontos fundamentais que distinguem a experiência de ser uma trabalhadora doméstica no Brasil e nos Estados Unidos.

Ela conhece essa diferença na própria trajetória. Filha de doméstica, começou na profissão aos 9 anos, sem receber nada por isso, como uma dessas meninas que são “pegas para criar” por famílias mais ricas, ganhando moradia em troca de trabalho, que conciliava com a escola.

Nos Estados Unidos, começou como ajudante de faxineira e atualmente tem seu próprio negócio, sendo ela agora quem às vezes contrata ajudantes para dar conta do serviço.

“Eu sou uma empreendedora, tenho uma companhia pequenininha, mas ela é minha. ‘Beehive’ é o nome dela, colmeia em inglês, porque se eu tiver alguém trabalhando para mim, nós vamos ser unidos, eu não vou explorar ninguém, a gente vai trabalhar junto e se valorizar. Por isso botei esse nome.”

A diferença na cultura do trabalho doméstico no Brasil e nos Estados Unidos gerou polêmica nas redes sociais recentemente, após a ex-BBB e influenciadora digital Adriana Sant’Anna reclamar no seu Instagram da dificuldade de encontrar uma empregada doméstica em Orlando, na Flórida.

“Aqui ganha por hora de trabalho e eu quero alguém para ficar aqui o tempo todo, fazendo tudo para mim e não acho”, disse Sant’Anna, em vídeo publicado na rede social. “Eu preciso trabalhar, essas coisas que tenho que ficar fazendo não dá, que é lavar roupa, passar, arrumar, organizar, tirar bagunça, pegar roupa suja de criança.”

 

“A gente no Brasil estava feita. Porque lá [no Brasil] uma pessoa faz tudo. Aqui [nos Estados Unidos], para passar, 25 dólares a hora a mais, para dobrar 25 dólares. Ah, para poder esticar o braço, mais 10 dólares. É assim. Então, você que tem alguém no Brasil, ajoelha e agradeça a Jesus”, completou.

Depois de sofrer uma onda de críticas, a ex-BBB voltou a postar, agora para se defender.

“Em momento algum pedi uma escrava, pelo contrário, eu solicitava um ‘anjo’ para cuidar de tudo”, escreveu a influenciadora. “Até porque o salário que estou oferecendo é de US$ 5 mil [cerca de R$ 25,9 mil] para trabalhar de segunda a sexta, das 8h às 15h. Se inclusive calcular, verá que é muito mais do que US$ 25 a hora.”

Pagar melhores salários é a sugestão do presidente americano Joe Biden para empregadores dos Estados Unidos que têm se queixado de dificuldade para contratar, em meio à retomada da economia americana, com o avanço da vacinação contra a covid-19.

“Vocês estavam me perguntando… ‘Está sabendo? Empregadores não conseguem encontrar trabalhadores.’ Eu digo: ‘Paguem mais a eles'”, afirmou Biden, durante uma coletiva de imprensa ao fim de junho. “[Empregadores] vão ter que competir e começar a pagar a quem trabalha duro um salário decente”, completou o democrata.

 

A doutora em Educação e ex-faxineira Heloiza Barbosa lançou em março de 2020 o Faxina, um podcast que conta as histórias de faxineiros e faxineiras brasileiras que trabalham nos Estados Unidos.

“O trabalho doméstico aqui tem categorias diferentes: tem aquele que lida com a limpeza de casa, o que lida com os cuidados das crianças, o das cuidadoras de idosos, o de cozinha e o de manutenção da casa funcionando”, enumera Heloiza, que vive nos Estados Unidos desde 1997.

“São serviços contratados e são serviços caros, se você está acostumado no Brasil a pagar muito pouco por isso”, explica a pedagoga. “Aí já tem uma diferença: a ideia de serviços prestados, ou seja, você não é empregado de alguém como o trabalhador doméstico é no Brasil, você é dono da sua empresa e vende o serviço para a pessoa que te contrata.”

A diferença parece bastante óbvia com relação a uma trabalhadora doméstica brasileira mensalista, que presta serviços a uma pessoa ou família de forma contínua, mediante um salário fixo. Mas Heloiza afirma que a dinâmica também é distinta do trabalho das diaristas, profissionais autônomas que atendem famílias diversas, sem vínculo empregatício.

“No Brasil, você paga a diária da pessoa para ela fazer absolutamente tudo dentro de uma casa. Se você fosse transpor isso para os Estados Unidos, seria muito caro, porque são várias categorias de serviços, então é uma coisa que muito poucas famílias podem pagar.”

A apresentadora do Faxina Podcast destaca, porém, que isso não significa que as domésticas que trabalham nos Estados Unidos contem com maior proteção social.

“Estamos falando de um sistema capitalista, onde o trabalhador só tem valor enquanto tem força de trabalho para vender”, afirma. “Não há benefícios sociais, férias remuneradas, aposentadoria, direito a dias de afastamento por doença. Simplesmente, se não trabalha, não ganha.”

O valor pago por uma faxina varia de acordo com o tamanho do imóvel e a frequência com que ele é limpo. Em Boston, por exemplo, para uma casa típica de classe média, com três quartos e dois banheiros, a limpeza fica em torno de US$ 120 a US$ 140 (de R$ 610 a R$ 710).

Na cidade, cujo mercado de faxina doméstica é dominado pelas imigrantes brasileiras (muitas delas sem documentação para trabalhar), a limpeza, em geral, é feita por um grupo de duas ou três faxineiras, que concluem o serviço em poucas horas e seguem para outra residência.

No geral, esse grupo é formado por uma faxineira mais experiente, que tem uma lista de clientes e é conhecida como “dona do schedule” (algo como a “dona da agenda”, em português). Essa faxineira contrata ajudantes, que em geral são as imigrantes recém-chegadas que estão em busca de emprego e, muitas vezes, não falam inglês. São as chamadas helpers.

“Eu comecei dando um ‘help'”, conta Paula Costa, sobre como entrou no mercado americano de faxina doméstica. “Levantava bem cedo, o carro vinha buscar, quando dava 7h estávamos entrando na primeira casa. Fazíamos nove casas no dia e eu ganhava US$ 60 (R$ 305 a valores atuais) por dia, isso há 22 anos atrás.”

“As donas de schedule faziam muito dinheiro, mas elas pagavam mal as ‘helps’. Nove casas num dia, pagando US$ 60 para cada uma das três ou quatro funcionárias que elas levavam. Ganhando cerca de US$ 100 por casa (R$ 510), para ficar uma hora, ou uma hora e meia. Elas faziam – e fazem – muito dinheiro.”

Além da forma de trabalhar, há outra diferença grande no mercado de trabalho doméstico dos dois países: o número de pessoas ocupadas nesse tipo de função.

Segundo a Organização Internacional do Trabalho (OIT), agência das Nações Unidas dedicada ao tema, o Brasil é o segundo maior empregador doméstico do mundo, atrás apenas da China, que ocupa o topo da lista, com 22 milhões de trabalhadores domésticos, representando 2,9% de sua força de trabalho.

Por aqui, em 2019 — antes, portanto, da pandemia do coronavírus —, os trabalhadores domésticos eram 6,3 milhões (ou 6,8% da força de trabalho). Assim, o país superava em número de profissionais o México (2,4 milhões e 4,3% da força de trabalho) e os Estados Unidos (1,9 milhão e 1,2%), sendo o maior empregador doméstico das Américas.

Gráfico de barras mostra número de trabalhadores domésticos em países das Américas

Para o sociólogo Tulio Custódio, que estuda o processo de precarização do trabalho em seu doutorado na Universidade de São Paulo (USP), o elevado número de trabalhadores domésticos no Brasil é uma herança do nosso passado colonial.

“A colonização é fortemente marcada pelo padrão patriarcal, que coloca a mulher como a responsável pelo trabalho doméstico e de cuidado”, diz Custódio. “Além disso, esse é um trabalho que é realizado especialmente pelas populações situadas na marginalidade social, isto é, pela população negra, o que tem origem na escravidão.”

Apesar dos Estados Unidos também terem um passado colonial e escravista, Custódio observa que o número de africanos escravizados trazidos ao Brasil foi muito maior.

Estima-se que, entre os séculos 16 e 19, cerca de 4,9 milhões de africanos desembarcaram na costa brasileira, o que representa 46% de todos os escravizados trazidos ao continente americano. Em comparação, pouco mais de 388 mil escravizados foram levados para os Estados Unidos.

Isso se reflete na composição racial dos dois países: enquanto nos Estados Unidos os negros são 13% da população, no Brasil, segundo classificação do IBGE para pretos e pardos, somos 56%.

“Foram dois países que tiveram a experiência da escravidão, mas há uma diferença bem grande na forma como trataram essa questão”, observa Cristina Vieceli, economista do Departamento Intersindical de Estatística e Estudos Socioeconômicos (Dieese).

“Aqui houve um processo de ocultamento [do racismo] e opressão muito forte. O mito da ‘democracia racial’ perdurou ao longo da nossa história e fez com que a gente não realizasse políticas afirmativas [políticas feitas por governos ou pela iniciativa privada com o objetivo de corrigir desigualdades raciais presentes na sociedade], só começamos a fazer esse tipo de política nos anos 2000, com as cotas em concursos e nas universidades públicas”, observa Vieceli.

A economista do Dieese destaca ainda que o país tem também uma parcela muito grande da população pobre e é extremamente desigual — mais do que os Estados Unidos.

“A classe média no Brasil é muito pequena perto da classe mais pobre. Há uma concentração de renda muito grande no país e isso faz com que a mobilidade social seja muito menor aqui”, diz a economista. “Então essa classe média conta com um ‘exército de reserva’ enorme, para usufruir de uma força de trabalho que continua com características servis.”

“Exército de reserva” é um termo usado pelo filósofo Karl Marx, que se refere ao desemprego “permanente” das economias capitalistas. No Brasil, por exemplo, a taxa de desemprego atualmente está em 14,7% e quando ela chegou ao ponto mais baixo na história recente, caiu a 6,2% (em dezembro de 2013). Já nos Estados Unidos, a taxa está em 5,9% e chegou aos 3,5% em meados de 2019. Assim, o desemprego estrutural dos dois países é bem diferente e isso tem efeito, por exemplo, sobre os salários pagos aos trabalhadores menos qualificados.

Tulio Custódio destaca ainda os diferentes estágios do desenvolvimento econômico nos dois países como um fator que também afeta a disponibilidade de mão de obra doméstica e a capacidade de absorção das mulheres em outras formas de ocupação mais qualificadas.

“No caso do Brasil, um país periférico, que não desenvolve tecnologia e tem um lugar muito específico no contexto do capitalismo global, boa parte da mão de obra continua alocada em trabalhos de baixa remuneração e baixa produtividade”, observa o sociólogo.

No Brasil, a pandemia do coronavírus afetou o trabalho doméstico de duas formas marcantes.

A primeira delas foi a dispensa de milhares de trabalhadoras domésticas por empregadores que perderam renda ou que ficaram com medo de se contaminar ao contato com essas trabalhadoras.

Segundo dados do IBGE (Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística), o número de pessoas ocupadas com trabalho doméstico no país diminuiu de 6,1 milhões no primeiro trimestre de 2019, para 4,9 milhões em igual período de 2021, com quase 1,2 milhão de domésticos a menos no mercado de trabalho em apenas dois anos.

Considerando que 97% da categoria é formada por mulheres, isso significa que mais de 30% das 3,1 milhões de mulheres que deixaram o mercado de trabalho no período eram domésticas.

“Isso é bastante grave, considerando que boa parte dessas mulheres têm filhos e são chefes de família”, observa Vieceli, do Dieese.

Um segundo fato marcante foi a privação de liberdade de diversas trabalhadoras domésticas que foram obrigadas por seus patrões a permanecer no trabalho sem poder voltar para suas famílias, devido ao medo dos empregadores de contaminação.

O Sindicato dos Trabalhadores Domésticos da Bahia (Sindoméstico), por exemplo, recebeu 28 denúncias de casos do tipo no Estado, ao longo da pandemia.

“A maioria são mulheres negras, que tiveram que deixar seus filhos com algum parente e foram obrigadas pelos empregadores a aceitar as condições que eles estavam oferecendo”, diz Valdirene Boaventura, secretária-geral do Sindoméstico Bahia.

“Elas foram obrigadas a permanecer no local de trabalho, algumas delas por meses.”

Para o sociólogo Tulio Custódio, esse fenômeno também está ligado ao passado colonialista brasileiro. “Há uma ideia de que o empregado não é um profissional, mas uma posse, o que tem origem na relação escravocrata, onde o escravo era visto como um objeto”, observa.

“Foi muito simbólico o fato de a primeira pessoa a morrer de covid [no Rio de Janeiro] ser uma mulher negra, idosa e empregada doméstica”, lembra Custódio, referindo-se à mulher de 63 anos, cujo nome não foi divulgado a pedido da família, que morreu em 17 de março de 2020, após ser contaminada pela patroa que voltou de viagem da Itália.

“Há uma ideia de que existem pessoas que valem menos do que as outras, existem vidas que podem ser sacrificadas, porque elas estão ali para servir. Esse esvaziamento do sentido de respeito ao outro está no horizonte colonial e isso ainda é muito forte na nossa sociedade.”

Trabalhando como doméstica nos Estados Unidos, Paula Costa viu sua filha mais velha, Jéssica Oliveira, de 30 anos, se formar em Relações Internacionais.

Atualmente, Jéssica trabalha no Matahari Women Workers’ Center, uma organização que luta pelos direitos de faxineiras, au pairs (um trabalho de cuidado de crianças feito por mulheres imigrantes com idades entre 18 e 26 anos, em troca de moradia, alimentação e uma pequena remuneração) e trabalhadoras que dependem de gorjetas, como as garçonetes.

Paula se orgulha de Jéssica ter rompido o ciclo da família. Com avó e mãe domésticas, a jovem conseguiu ter outro destino.

“Para mim, a sensação é de missão cumprida, de vitória. Jéssica fez entrevistas em grandes universidades, uma delas Ivy League [grupo de oito universidades de elite dos EUA formado por Brown, Columbia, Cornell, Dartmouth, Harvard, Princeton, Universidade da Pensilvânia e Yale]. No Brasil, eu jamais teria conseguido dar isso para minha filha sendo uma doméstica.”

“Aqui dá para uma trabalhadora doméstica ter um pouco mais de dignidade e ser reconhecida pelo serviço que presta à sociedade, acho que essa é a maior diferença [entre Estados Unidos e Brasil]”, acredita Jéssica. “Eu pude fazer faculdade, receber uma bolsa e ter mais escolhas.”

BBC 

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