STF está pronto para a guerra, se Bolsonaro quiser

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Foto: Nelson Jr/STF/Cristiano Mariz/Andressa Anholete/Getty Images

A relação de desconfiança entre Jair Bolsonaro e o STF é pródiga em exemplos de tensão. Ainda na campanha, ele falava em aumentar o número de integrantes da Corte para que pudesse indicar nomes comprometidos com o seu projeto político. O seu filho Zero Três, Eduardo Bolsonaro (PSL-SP), disse à época que bastariam “um soldado e um cabo” para fechar a principal instância judiciária do país. Já no cargo, o capitão publicou um vídeo em que se comparava a um leão acossado por hienas — uma delas, o STF. A relação beligerante atingiu um patamar sem precedentes no sábado 10, quando os magistrados iniciaram um levante para que o presidente do tribunal, Luiz Fux, tomasse providências acerca do comportamento do chefe do Executivo, que acabara de associar o ministro Luís Roberto Barroso à defesa da pedofilia. Devido ao grau repugnante do ataque, pela primeira vez, a indignação mobilizou até magistrados que sempre tiveram comportamento discreto. Como já aconteceu em outras ocasiões, houve posteriormente um ensaio de recuo no embate, mas ficou a sensação de que um novo capítulo na escalada de provocações é questão de tempo.

Pior crise entre Executivo e Judiciário no período pós-redemocratização, o conflito mais recente começou com o ataque a Barroso, em meio a mais uma pregação do presidente em defesa do voto impresso, medida que o ministro, que é também presidente do Tribunal Superior Eleitoral, rejeita com razão. Na quarta 7, Bolsonaro disse a uma rádio gaúcha que as eleições de 2014 foram fraudadas e fez críticas pessoais a Barroso. Ficou acertado entre os membros do STF que a resposta viria por meio de uma nota do presidente da Corte. “O Supremo Tribunal Federal ressalta que a liberdade de expressão, assegurada pela Constituição a qualquer brasileiro, deve conviver com o respeito às instituições e à honra de seus integrantes”, escreveu Luiz Fux.

O recado, genérico, não foi suficiente para conter os arroubos presidenciais. No dia seguinte, Bolsonaro esticou um pouco mais a corda. “Ou fazemos eleições limpas no Brasil (em 2022) ou não temos eleições”, disse a apoiadores. Não satisfeito em pregar abertamente um golpe, na sexta 9, o capitão voltou ao tema, elevando ainda mais os decibéis. Depois de chamar Barroso de “imbecil” e “idiota”, declarou: “A fraude está no TSE, para não ter dúvida. Isso foi feito em 2014”, afirmou, repetindo a tese infundada de que Aécio Neves (PSDB) vencera Dilma Rousseff (PT). O novo ataque deu início a uma movimentação intensa entre os integrantes do STF. Após uma rodada de conversas entre Fux, Barroso, Alexandre de Moraes e Dias Toffoli, entre outros, houve consenso de que era hora de dar a Bolsonaro uma resposta dura por meio de uma nota da presidência do TSE.

Foi de Toffoli a sugestão para que se incluísse no texto que em 2014 o PSDB fez auditoria no sistema de votação e reconheceu a legitimidade dos resultados. Toffoli, que presidia a Corte eleitoral naquele ano, é visto no Supremo como pacificador, alguém que, na presidência do colegiado na primeira parte do mandato de Bolsonaro, fez de tudo para evitar atritos. Seu incômodo nesse episódio foi interpretado como um ponto de inflexão na Corte. Barroso passou a tarde redigindo a nota. Acrescentou ao final que atuar para impedir uma eleição “configura crime de responsabilidade”. A grande repercussão que teve o alerta fez os ministros pensarem que, por ora, o cabo de guerra estava suspenso.

No dia seguinte, no entanto, Bolsonaro voltou à carga ao acusar Barroso de defender a redução da maioridade para estupro de vulnerável — “Beira a pedofilia o que ele defende”, disse a apoiadores durante uma motociata em Porto Alegre. Foi a gota de água para que os ministros cobrassem de Fux uma atitude mais radical. Mesmo magistrados que não costumam se envolver nessas costuras se manifestaram, como Rosa Weber, que comandou o TSE em 2018, quando Bolsonaro foi eleito. Após o ataque a Barroso, pela primeira vez o STF publicou em sua página destinada a esclarecer fake news uma matéria desmentindo uma fala do presidente.

Mas a reação não ficou só nisso. Ainda no sábado, perto da meia-noite, Fux tentou telefonar para Bolsonaro, mas só conseguiram conversar no domingo. Bolsonaro aceitou um convite para encontrar o ministro no STF, ainda mais após ter constatado que suas declarações haviam desagradado até aos aliados. O presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), afirmou que quem pretende gerar retrocessos na democracia é inimigo da nação. Na tarde de segunda 12, o mandatário chegou ao Supremo pela garagem, sem passar pelos jornalistas. Na conversa, Fux lembrou a ele que o tribunal não atua somente para contrariar o governo, mas também para avalizar medidas de seu interesse, principalmente na área econômica. Em seguida, advertiu Bolsonaro de que, se continuasse a exceder os limites, a relação com os membros da Corte iria se deteriorar de vez e que ele, Fux, não teria mais como apaziguar um novo conflito. Ao final, a pedido do ministro, Bolsonaro concordou em falar com os jornalistas. “Reconhecemos que nós dois temos limites, e esses limites são definidos pelas quatro linhas da Constituição”, declarou o presidente, para em seguida voltar a dizer que tem problemas com Barroso. A “operação panos quentes” deveria continuar na quarta 14, em uma reunião dos presidentes dos três poderes. Mas veio o inesperado: Bolsonaro adiou o encontro para fazer exames. Foi diagnosticada uma obstrução intestinal e ele acabou sendo levado a um hospital em São Paulo. Até a tarde da última quinta, 15, a necessidade de uma cirurgia estava descartada.

A raiz do permanente cabo de guerra entre Bolsonaro e o STF encontra-se na crença por parte do presidente, compartilhada entre os seus seguidores mais radicais, de que a Corte usurpa os seus poderes e dificulta que ele leve a cabo a sua agenda, seja em questões práticas, como o combate à pandemia, ou ideológicas, como a imposição da agenda conservadora de costumes (até hoje Bolsonaro não entendeu que foi eleito presidente, não imperador do Brasil). Uma decisão que ele não digeriu, por exemplo, foi quando o tribunal, em março de 2020, decidiu que prefeitos e governadores tinham autonomia para adotar medidas de exceção para conter o coronavírus. Em uma imagem que se tornou exemplar da queda de braço, Bolsonaro liderou em maio daquele ano uma marcha de empresários do Palácio do Planalto ao Supremo, onde forçou um encontro com o então presidente, Dias Toffoli, para reclamar das restrições impostas ao setor produtivo. Outro ponto que incomoda o capitão é o cerco que o tribunal impõe aos seguidores radicais, inclusive seus filhos, com investigações sobre fake news e atos antidemocráticos. Também está na conta do Supremo a decisão de mandar o Senado abrir a CPI da Pandemia, que virou a maior dor de cabeça para o governo

Ao assumir o papel de principal represa institucional contra atos tresloucados e arroubos autoritários do Executivo, o STF fica na mira permanente do capitão e se obriga a reagir à altura a cada golpe. “O STF parece ser um ator muito público e político, muito mais do que a maioria dos outros tribunais, incluindo a Suprema Corte dos Estados Unidos”, diz Peter Hakim, do Diálogo Interamericano, de Washington. Para ele, isso pode refletir uma certa fraqueza do Congresso em proteger a democracia e o estado de direito das investidas de Bolsonaro, que não foram poucas — basta lembrar da participação dele em atos que pediam o fechamento do Supremo e do Parlamento. Também é fato que na tentativa de funcionar como um freio ao chefe do Executivo, a Corte, não raro, toma atitudes polêmicas e criticadas até por vozes mais sensatas. Exemplo disso foi a decisão de barrar a escolha de Alexandre Ramagem para dirigir a Polícia Federal, por uma iniciativa individual do ministro Alexandre de Moraes.

Apesar de alguns limites terem sido perigosamente ultrapassados nessa contenda, há sinais de que ela pode não ter chegado ao fim, porque alguns elementos de tensão permanecem no ar. O principal deles é a insistência de Bolsonaro em usar o voto impresso com o objetivo golpista de pôr em dúvida a eleição de 2022, caso seja derrotado no pleito. Nos últimos dias, enquanto o presidente cuidava da sua saúde em São Paulo, o bolsonarismo mais ensandecido ocupava-se de jogar combustível na crise: deputados como Carla Zambelli (PSL-SP) e Filipe Barros (PSL-PR) acharam que era o momento adequado de convocar simpatizantes às ruas para um protesto, no dia 1º de agosto, em defesa do voto impresso. A PEC criada para garantir esse retrocesso tinha clima favorável para ser digerida pelo Congresso, até que um acordo recente entre onze partidos, incluindo alguns da base do governo, fechou questão contrária ao projeto. A tropa governista coloca a virada no jogo na conta de uma ação política do STF, capitaneada pelo ministro Barroso. “Estamos sofrendo campanha e ataque do Judiciário”, reclamou a deputada Bia Kicis (PSL-DF), autora da PEC.

A coreografia de ataques permanentes a instituições tem como objetivo primordial insuflar a base radical de apoio do governo, mas vem ganhando ares de ameaça real e o exemplo americano serve como alerta dos riscos. A estratégia de Donald Trump de questionar a derrota para Joe Biden incentivou a invasão do Capitólio por apoiadores. Para o brasilianista Peter Hakim, há uma agravante no cenário brasileiro. “A associação com os militares pode dar a Bolsonaro uma habilidade um pouco maior que a de Trump para inverter o processo eleitoral se ele perder ou estiver convencido de que perderá. Parece que uma eleição apertada em 2022 poderia pôr a democracia do Brasil em perigo”, alerta.

Ao longo da história, ruídos na relação entre o Executivo e o Judiciário não são incomuns. Em 2008, por exemplo, na Presidência de Luiz Inácio Lula da Silva, o gabinete de Gilmar Mendes, então presidente do STF, foi grampeado pela Agência Brasileira de Inteligência (Abin). “Não há mais como descer na escala da degradação institucional”, protestou então o ministro. A despeito desse tipo de episódio traumático, seu ex-colega Marco Aurélio Mello, que se aposentou na segunda 12, acha que a crise atual não encontra precedentes nos 31 anos em que atuou na Corte. “O descompasso nunca chegou a esse tamanho”, disse ele a VEJA.

A própria saída de cena do decano abre um novo foco de turbulência. Além da preocupação com uma possível relação de subserviência ao presidente por parte de André Mendonça, indicado por Bolsonaro para a vaga (veja o quadro), que Marco Aurélio quer colocar uma trava inédita a um sucessor na história do STF: pediu a Fux que seus votos em dezesseis ações em tramitação não sejam alterados, como um em que decidiu contra a proibição da discussão de questões de gênero em escolas — tema com potencial de ser revisto por um ministro “terrivelmente evangélico” como Mendonça. A manobra tem potencial de causar mais polêmicas — e todo cuidado é pouco neste momento. Embora a temperatura da crise mais recente tenha baixado nos últimos dias, até pela internação do presidente, um novo conflito pode trazer desdobramentos imprevisíveis a partir do atual grau de tensão estabelecido entre os poderes da República. É fundamental que os envolvidos, em especial o Executivo, deem um passo atrás e a normalidade institucional prevaleça. O país, afinal, tem outras crises para administrar.

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