Tribunais argentinos seguem condenando militares da ditadura

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Foto: Xavier Martín – 21.dez.18/Folhapress

Aos 20 anos e grávida de seis meses, Silvia Labayrú foi sequestrada durante a ditadura militar argentina (1976-1983) e passou um ano e meio presa na Escola Mecânica da Marinha, a temida ESMA, o mais importante centro clandestino de detenção de opositores ao regime.

Ali, foi submetida a surras, maus-tratos e estupros. Chegou a ser levada a motéis e à casa de militares e foi usada para que os agentes da repressão conseguissem se infiltrar em um grupo de opositores. Ao final, era sempre devolvida ao cárcere. A filha, por exemplo, nasceu numa sala improvisada para o parto.

Agora, mais de 40 anos após ser libertada, Labayrú, 64, celebra o fato de, pela primeira vez, um tribunal argentino condenar autores de delitos sexuais cometidos na ESMA, a partir de depoimentos dados por ela e outras duas ex-prisioneiras.

O capitão Jorge “Tigre” Acosta, 80, e o agente de inteligência Alberto González, 70, estão presos, condenados por mais de 80 crimes de tortura, assassinato e roubo de bebês.

A condenação é importante, também, por abrir um precedente para julgar crimes sexuais do regime à parte. Antes, os abusos eram incluídos na figura de tortura. Labayrú, que vive na Espanha desde que deixou o centro de detenção e onde estudou psicologia, falou à Folha por chamada de vídeo.

Como ocorriam os abusos sexuais na ESMA? Houve épocas diferentes ao longo da ditadura. Quanto mais cedo você fosse presa, pior era. No meu caso foi duríssimo, porque fui sequestrada em dezembro de 1976 e estive no centro de detenção até junho de 1978. Eram os anos de chumbo.

Estava instituído que os oficiais de patente mais alta tinham direitos sobre as sequestradas. Eles diziam que os subalternos, como soldados e guardas, não tinham direito a compartilhar o botim de guerra, que éramos nós, as prisioneiras. Mas o fato é que isso também ocorria. Havia pessoas estupradas nas celas e nos corredores, encapuzadas, amarradas, sobre colchonetes, durante vários dias.

A Marinha tinha um discurso de que o centro de detenção era um centro de recuperação. E, dentro dessa lógica, deixar que o estupro ocorresse seria mostrar que você estava interessada no processo de recuperação, que você não os odiava. O estupro não era violento no sentido de que recebíamos golpes ou que tínhamos que ceder porque mantinham uma pistola na nossa cabeça. Mas porque sabíamos que, caso não obedecêssemos, iriam nos jogar na água [nos chamados “voos da morte”, em que prisioneiros eram vendados, drogados e lançados nas profundezas do rio da Prata] ou matar toda a nossa família.

No tempo em que estive presa, minha família esteve na mira, parentes foram sequestrados. E sabíamos que muitos companheiros nossos estavam sendo mortos. A ameaça, portanto, não era uma abstração, era algo muito real com que convivíamos. Por isso cedíamos.

Permitir que fosse abusada foi o preço para que sua filha fosse mantida com você, e não entregue a outras famílias, como aconteceu com mais de 500 bebês? O preço que pagávamos era por tudo. Começando por nos deixar viver, por nos deixar comer. Deixar que eles nos estuprassem era uma luta pela vida, e não um acordo ou uma negociação por algum benefício.

Dos que estiveram presos na ESMA durante a ditadura, 5.000 foram assassinados, jogados no rio da Prata. Eu estou entre os 200 que sobrevivemos. [O almirante Emilio Eduardo] Massera [líder da Marinha] tinha a pretensão de fazer política depois da ditadura. Por isso, a ideia de que alguns militantes sobrevivessem era bem-vinda a ele, pois assim poderia dizer que a Marinha não era tão má, tão cruel como o Exército e a Aeronáutica, que a Marinha era mais condescendente com os prisioneiros e que tentava recuperá-los. Era uma mentira enorme, que, com o tempo, se conheceu completamente.

A senhora se decepcionou com o que veio após a liberdade? Sofreu preconceito por ser sobrevivente? Sim, vivi essa experiência muito cedo, tinha 20 e poucos anos. Achava que, se eu saísse da ESMA, tudo seria fácil. Não foi. Hoje sei que é algo que ocorre com todos os que sobrevivem a uma experiência como essa. Autores como [o italiano] Primo Levi e [o espanhol] Jorge Semprún [que sobreviveram a campos de concentração nazistas] trataram desse tema: quando você é libertado, vira uma pessoa incômoda, porque é a lembrança do horror, porque sabe de coisas sobre a condição humana que ninguém quer escutar.

Há os que creem que, se você está viva, é porque fez algo terrível que não deveria ter feito, como delações. E os que se interessam, mas fazem perguntas genéricas, não querem saber os detalhes, porque se negam a imaginar que tal terror existe e que poderia ter ocorrido com aquela pessoa. Isso me acompanhou no exílio por décadas. Proibiram-me de ir a bares frequentados por argentinos em Madri, de participar de associações de psicologia, colocavam entraves para que eu exercesse a minha profissão.

O que achou do fato de, enfim, terem chegado a uma condenação a esses repressores por delitos sexuais? Parece-me singular que um país que tenha uma democracia tão precária como a Argentina possa ter realizado isso. Sempre digo que a reparação de direitos humanos é o item mais exportável que temos.

A denúncia, porém, é antiga. Eu a fiz logo que saí do campo, em 1978, ante a Justiça argentina e às Nações Unidas. Depois, com a redemocratização e o Julgamento das Juntas [em que repressores e guerrilheiros, na gestão de Raúl Alfonsín, nos anos 1980, foram condenados], voltei a denunciar. Mais recentemente, também apresentei a acusação nos dois processos de delitos cometidos na ESMA.

A diferença é que, naquelas ocasiões, os abusos sexuais não entravam como um crime à parte. Eram listados dentro do delito de tortura. Sempre acreditei que deveriam ser uma figura jurídica separada. Em 2014, sob pressão minha e de outras vítimas, um processo separado foi aberto, e então voltei a depor.

O que houve de diferente agora? A Justiça amadureceu, os tempos são outros. Todo o processo de colher o depoimento, de interrogatório e de audiências ocorreu em clima de extremo respeito e de modo técnico. Houve uma equipe de mulheres especialistas em termos de gênero assessorando juízes e promotores.

No passado, não era assim. Havia uma via-crúcis que uma mulher enfrentava para esse tipo de denúncia. Sempre se ouvia, da parte de magistrados, piadas, comentários desrespeitosos e insinuações que, como resultado, além de fazer com que as denúncias caíssem num saco furado, desestimulavam as mulheres de falar sobre o assunto. Muitas sentem vergonha até hoje ou estão incapacitadas psicologicamente. Ter um tratamento como se deu a esse caso é fundamental para que mais mulheres possam relatar abusos.

Tive apenas um inconveniente quando a defesa dos repressores pediu que fosse feita uma perícia em mim para encontrar no meu corpo supostos vestígios do abuso. Vestígios mais de 40 anos depois! Por sorte, o pedido foi negado. Fizeram de tudo para que desconfiassem do que eu estava dizendo. Mas minhas declarações foram muito minuciosas, com detalhes impossíveis de inventar, em que descrevia como e onde ocorreram os abusos, com descrições dos lugares, endereços e datas.

A senhora pertencia aos Montoneros [guerrilha urbana de esquerda que se opôs à ditadura]. Como se posiciona politicamente hoje? Venho de uma família de militares de alta patente, portanto, conservadores. Fui a um colégio muito politizado. Depois, eram os anos 1970, sentíamos a influência do Maio de 1968 francês. Entrei para os Montoneros com a ideia de que poderíamos mudar o mundo.

Depois que saí da prisão, refleti muito. Hoje sou uma pessoa de esquerda, mas de uma esquerda democrática, não acredito mais na luta armada como resposta a nada.

Crê que o kirchnerismo politiza os direitos humanos? Sim, os políticos usam tudo o que podem usar. Por outro lado, eles têm crédito. Colocaram os julgamentos em marcha. Alfonsín também o fez nos anos 1980, mas acabou retrocedendo. Não sei se outro governo o faria, mas é fato que este o fez.

A senhora sabe de alguma reação de seus agressores a essa condenação? Não tive contato com eles, mas fiquei sabendo que estão encantados que esses fatos sejam conhecidos. Para eles é motivo de orgulho e não se arrependem de nada. Eles só se arrependem de não terem nos matado. Mas eu não movi essa ação para que eles ficassem mais tempo na cadeia, e sim para que houvesse uma condenação e um reconhecimento da sociedade de que esses crimes sexuais ocorreram e que não ficaram impunes.

Silvia Labayrú, 64
Natural de Buenos Aires, foi sequestrada durante a ditadura militar argentina em 1976 e libertada em 1978, quando se mudou para a Espanha, onde estudou psicologia na Universidade Complutense de Madrid

Folha de S. Paulo

 

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