Arroubos de Bolsonaro não são tática, são paranoia

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Foto: Alan Santos/PR

Há quem acredite que Jair Bolsonaro impulsiona determinadas crises para desviar a atenção dos problemas que importam, disfarçar a inépcia do governo e se manter permanentemente sob os holofotes. Há quem veja na postura beligerante do presidente um simples método — uma estratégia pensada para pautar o debate e não ter de prestar contas pelo descalabro administrativo. A verdade é que os arroubos retóricos, as decisões erradas e as recorrentes trapalhadas são quase sempre derivados de convicções que o presidente forma a partir uma realidade paralela que ele mesmo criou, apenas ele conhece e, por isso, é difícil de compreender. Bolsonaro enxerga sabotadores em todos os cantos e, atormentado por fantasmas, não lida com a vida real, na qual só 30% da população foi totalmente imunizada contra o coronavírus, 14 milhões estão desempregados, a inflação dos alimentos avança de forma assustadora e há até risco de apagão.

Ninguém faz oposição ao país e ao governo como Jair Bolsonaro. Desde o início do mandato, ele se dedica a escolher adversários de ocasião e a combater toda sorte de supostas conspirações que teriam o mesmo objetivo: tirá-lo do poder. Para o presidente da República, o Legislativo, que é controlado por seus aliados do Centrão, trabalha para inviabilizar a sua gestão. Já o plano do Judiciário seria declará-lo inelegível em uma frente de ataque e, em outra, decretar a prisão de seus filhos. Bolsonaro, o escolhido, Messias de sobrenome, seria vítima de uma perseguição do sistema, do tal establishment que o sustenta há trinta anos, mas que ele tanto jura combater. Os problemas dos brasileiros são muito mais graves e urgentes do que as guerras imaginárias travadas pelo ex-capitão. Bolsonaro não entende isso, ou finge não entender, tanto que deu o passo mais arriscado até agora em sua tática de confrontar às instituições.

No feriado de 7 de setembro, em discursos para uma multidão de apoiadores em Brasília e São Paulo, o presidente ameaçou fechar o Supremo Tribunal Federal (STF), disse que pode desrespeitar decisões da Justiça, o que configuraria crime de responsabilidade, e afirmou que só deixará o cargo morto. Na Avenida Paulista, os poucos minutos de seu discurso foram recheados de tentativas de intimidação. “Quero dizer aos canalhas que eu nunca serei preso. Ou esse ministro se enquadra ou ele pede para sair. Não se pode admitir que uma pessoa apenas, um homem apenas, turve a nossa liberdade”, disparou. O homem, no caso, é o ministro do STF Alexandre de Moraes, relator de inquéritos que investigam o presidente e dois de seus filhos — Eduardo, deputado federal, e Carlos, vereador pelo Rio. Já a liberdade, em tese, diz respeito à liberdade de expressão, empunhada como bandeira depois de Alexandre de Moraes determinar a prisão de bolsonaristas acusados de pregar a ruptura democrática e até a violência física contra ministros do STF.

A liberdade que mais preocupa Bolsonaro, no entanto, não é a de expressão, mas a de ir e vir. O presidente colocou na cabeça que o Supremo se articula há algum tempo para prender o vereador Carlos, o Zero Dois, foco constante de monitoramento nos inquéritos que apuram ataques às instituições e propagação de fake news. Foi por isso que Bolsonaro partiu para o enfrentamento direto com Alexandre de Moraes. “Ou o chefe desse poder enquadra o seu ou esse poder pode sofrer aquilo que nós não queremos”, afirmou Bolsonaro em Brasília, em recado direcionado ao ministro Luiz Fux, presidente do Supremo e chefe do Judiciário. Ao externar o recado, Bolsonaro tinha a seu lado o ministro da Defesa, general Braga Netto, e o vice-presidente da República, general Hamilton Mourão, coadjuvantes especialmente convocados para transmitir a ideia de que — se a corda esticar a ponto de estourar — os militares marcharão ao lado do mandatário. A grei bolsonarista respondeu aos gritos de “eu autorizo”, em referência a uma eventual intervenção militar destinada a fechar o Supremo.

“Por que dar ênfase a casos simples só por envolverem parentes do mandatário? Isso não deveria se chamar perseguição?”, diz o deputado governista Marco Feliciano (PL-SP). “O recado dado ao Supremo é o de que o ativismo político do Judiciário precisa ser contido. Milhares de pessoas foram às ruas para dizer isso”, acrescenta o líder do governo na Câmara, Ricardo Barros (Progressistas-PR). Ao contrário do que sugerem essas declarações, o Supremo não faz oposição a Bolsonaro — e, evidentemente, não é o responsável pelos verdadeiros problemas brasileiros. É fato que o tribunal já tomou decisões que contrariaram o presidente, como a suspensão da nomeação de Alexandre Ramagem para o cargo de diretor-geral da Polícia Federal, que foi entendida como usurpação de uma competência do presidente. Mas também é fato que a Corte deu decisões que dificultaram o avanço da investigação da rachadinha no gabinete do então deputado estadual Flávio Bolsonaro e, de maneira geral, sempre demonstrou boa vontade com o governo. Prova disso é que o ministro da Economia, Paulo Guedes, pediu ajuda ao STF para encontrar uma forma de financiar o Auxílio Brasil, programa com o qual Bolsonaro pretende recuperar sua popularidade entre os mais pobres. O entendimento, claro, ficou mais difícil

Assim que terminaram as manifestações de rua no dia 7, ministros do STF se reuniram virtualmente para analisar a escalada retórica do presidente e debater o teor de uma resposta institucional. O mais exaltado era Alexandre de Moraes. “Temos de responder duramente”, defendeu Ricardo Lewandowski. A resposta foi dada na quarta-feira 8, por Fux. Ao abrir a sessão plenária, ele declarou que ninguém fechará o Supremo, tachou de ilegais e inaceitáveis os rompantes autoritários de Bolsonaro e afirmou que eventual desrespeito a uma decisão judicial configurará crime de responsabilidade, que é punível com impeachment. Considerando as famosas “quatro linhas da Constituição”, Fux deixou clara a disposição de tabelar com o Congresso, a quem cabe tocar um processo de impedimento do chefe do Executivo (leia a coluna de Dora Kramer, na pág. 90). “Os ataques ao Supremo têm a ver com a busca do inimigo externo, que faz parte da estratégia como líder populista”, diz o professor do Ibmec Bruno Carazza.

No estranho mundo de Jair Bolsonaro, o Legislativo também sabota suas ações — um raciocínio, digamos, absolutamente psicodélico. Na prática, deputados e senadores aprovaram pontos importantes da agenda econômica do governo, derrotaram o Palácio do Planalto uma ou outra vez no varejo, mas sempre garantiram uma vida tranquila ao presidente no atacado. Essa relação predominantemente harmoniosa, pontuada por desgastes esporádicos, ficou evidente na ressaca pós-feriado. Notório defensor de um pacto entre os poderes e de um ambiente de união nacional, o presidente do Senado, Rodrigo Pacheco (DEM-MG), avalia devolver a medida provisória editada para dificultar a retirada de conteúdo das redes sociais, mas, como de costume, evitou bater de frente com Bolsonaro. Já o comandante da Câmara, Arthur Lira (Progressistas-AL), pediu temperança, enalteceu a Constituição, mas, em sua resposta institucional, nem sequer fez menção à possibilidade de impeachment. Por mais que haja torcida nesse sentido e até motivos, a destituição de Bolsonaro não está na pauta nem do chefe nem da maioria da Câmara. “Vale lembrar que temos a nossa Constituição, que jamais será rasgada. O único compromisso inadiável e inquestionável que temos em nosso calendário está marcado para 3 de outubro de 2022”, disse Lira, citando a data das próximas eleições.

Em meio à confusão, as cúpulas de alguns partidos passaram a debater a possibilidade de defender o impeachment. A dificuldade delas está em convencer as suas bases a aderir ao movimento. Apesar do desgaste do governo, parlamentares ainda preferem rumar ao lado de Bolsonaro, o que lhes garante cargos, acesso privilegiado a fatias do Orçamento e outras benesses (a partir de abril do ano que vem, o jogo pode mudar). Outro obstáculo está no fato de o vice-presidente Hamilton Mourão não dar sinais de que tope trabalhar pelo impedimento do presidente. Sem ele em campo, dificilmente haverá jogo. “Não vejo que haja clima para um impedimento do presidente. Clima tanto na população como um todo como dentro do próprio Congresso. Acho que nosso governo tem maioria confortável de mais de 200 deputados”, disse Mourão. Uma votação recente lhe dá razão.

No mês passado, o plenário da Câmara rejeitou a proposta de emenda constitucional que instituía o voto impresso, tema que substituiu a cloroquina no rol de obsessões presidenciais. As cúpulas dos partidos esperavam uma derrota acachapante de Bolsonaro, mas a PEC recebeu 229 votos a favor e apenas 218 contrários. O presidente não conseguiu os 308 votos necessários, mas colheu uma vitória importante ao mostrar que tem na Casa mais do que os 171 votos exigidos para barrar qualquer processo de impeachment. Os atos do feriado reforçaram a posição de Bolsonaro momentaneamente e deixaram claro que ele também tem suporte de parte considerável das ruas. Na quinta-feira 9, o presidente tentou amenizar um pouco o impacto de sua escalada retórica. “Nunca tive a intenção de agredir os poderes”, alegou em nota.

Enquanto submete o país a um estado de tensão permanente e trava suas guerras particulares contra os ilusórios conspiradores, Bolsonaro descuida da administração e sabota os esforços de recuperação da economia. Depois das manifestações do dia 7, ele pode até se sentir fortalecido na realidade paralela em que atua, mas nas eleições de 2022 quem definirá o resultado serão o desempenho da economia, o peso da inflação, o nível de emprego, o preço do gás de cozinha, a conta de luz. A vida real, dificultada pela crise econômica e pela pandemia, é a grande — e verdadeira — ameaça ao mandato e à reeleição de Bolsonaro. Mas definitivamente ele não consegue enxergar isso.

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