Brasil pode precisar de nova “campanha da legalidade”

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Foto: Acervo UH/Folhapress

Milhares de pessoas se reuniram em frente ao Palácio Piratini, sede do governo gaúcho, para ouvir mais um discurso do governador Leonel Brizola no final da manhã daquela segunda-feira, 28 de agosto de 1961, em dias de tensão nacional.

“No início da fala, tinha umas 5.000 pessoas na praça, que era o que sempre tinha durante todo aquele período. Quando ele terminou de falar, uma hora depois, tinha 50 mil”, lembra o então repórter do jornal Última Hora, Carlos Bastos, 87, que assistiu tudo a dois metros do governador.

No discurso, Brizola comunicava à população que havia uma ordem do general Orlando Geisel, chefe da Casa Militar em Brasília, para bombardear o palácio, se necessário. “Podem nos esmagar, mas jogarão o país no caos. Ninguém os respeitará. Ninguém confiará nessa autoridade imposta, delegada de uma ditadura”, bradava Brizola, afirmando que seguiria ali com a esposa e aliados.

Sessenta anos depois dos dias em que o Brasil esteve à beira de uma guerra civil e que terminaram com a posse de João Goulart, o Jango, em 7 de setembro de 1961, testemunhas que viveram a Campanha da Legalidade lembram da tensão, povo nas ruas e união suprapartidária em torno da defesa da Constituição contra uma ala golpista das Forças Armadas.

Com a renúncia surpresa de Jânio Quadros à Presidência, três dias antes do discurso de Brizola, o país vivia dias de incerteza sobre o que viria a seguir. Jango, vice-presidente que deveria assumir seguindo a Constituição, estava em visita à China, e passou a enfrentar ameaças de prisão e à sua posse pelos ministros militares, que viam nele uma ameaça comunista.

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No Rio Grande do Sul, porém, Brizola, cunhado de Jango, avisou que haveria resistência em defesa da Constituição, dando início à chamada Campanha da Legalidade.

Dias depois da renúncia de Jânio, Brizola havia instalado uma rádio nos porões do Piratini, denunciando a tentativa de golpe. Foram tiradas do ar emissoras que divulgaram um manifesto a favor de Jango de autoria do marechal Lott, derrotado por Jânio nas eleições de 1960.

A deputada estadual Juliana Brizola (PDT-RS) diz que o avô falava pouco dessa época depois que voltou do exílio, querendo virar a página. “A Legalidade foi um grande momento na trajetória política dele, mas acredito que nem ele, naquele momento, teve a clara dimensão do significava tudo aquilo para a história”.

Então sargento da Aeronáutica, Édio Erig, 90, estava de serviço como adjunto na sala do oficial de dia, na Base Aérea de Canoas, região metropolitana de Porto Alegre, quando chegou uma mensagem endereçada ao oficial, que havia saído. A ordem era clara: o Palácio do Piratini deveria ser bombardeado para calar Brizola.

Erig comunicou o oficial, mas também levou a mensagem que havia interceptado sem querer para os colegas no hangar. Caso os aviões decolassem carregados, não poderiam pousar sem soltar as bombas. “Ia morrer muita gente inocente, que não tinha nada a ver com o movimento militar, porque moravam em volta do palácio”, conta Erig, preso em 1964.

“Inicialmente esvaziamos pneus dos aviões, depois começamos a tirar o disparador das bombas, deixamos eles inúteis. Não se estragou avião. Montamos uma comitiva de representação dos suboficiais e sargentos e fomos para o Piratini.”

Pouco antes, no mesmo 28 de agosto, o general Machado Lopes, comandante do Terceiro Exército (atual Comando Militar do Sul), comunicou a Brizola que se posicionava com ele em defesa da legalidade a partir dali.

José Wilson, então sargento do Exército, promovido naqueles dias e apelidado desde então de “Tenente Vermelho”, diz que Machado Lopes já não tinha tropas para enfrentar o governador, por isso tomou a decisão.

“O Rio Grande do Sul, embora sempre muito reacionário, sempre foi também muito patriota. Então, predominava o sentimento legalista”, afirma ele. “Poderia ter se passado aqui, o que se passou no Chile”, diz citando o bombardeio ao palácio presidencial La Moneda em 1973, que matou Salvador Allende.

Nos dias seguintes, com o temor de que descessem tropas a favor dos ministros militares para o Rio Grande do Sul, o Terceiro Exército se mobilizou para vigiar a divisa com Santa Catarina.

Um dos militares deslocados, o tenente Marcus Vinícius Moretti da Cunha, encontrou uma máquina fotográfica em um canto de uma sala, quando carregava as armas que levaria à região de Vacaria (RS), e registrou com ela os dias de prontidão da sua tropa.

“Ele sentia muito orgulho por ter participado, dizia: nós cumprimos a legalidade”, conta o filho George Borba da Cunha. “Por muito tempo, ele escutava ainda as duas rajadas de tiro, que era o aviso de que o inimigo estava chegando, e que ele nunca chegou a escutar de verdade”.

Brizola organizou rapidamente a reação, assim que os ministros militares deixaram claro que não permitiriam a posse de Jango, e montou a rede da Legalidade, emissoras de rádio que transmitiam as falas do governador. Com duas das principais emissoras do RS tiradas do ar, por transmitirem o manifesto pró-Jango de Lott, ele requisitou a rádio Guaíba, ainda transmitindo.

Logo no início, com a Farroupilha desativada, o radialista Lauro Hagemann, conhecido como a voz do Repórter Esso local, decidiu se apresentar e ajudar a montar uma programação mais profissional. A rede transmitia 24 horas direto dos porões da sede do governo.

“O motivo inicial era a Constituição que estava em jogo ali. Era por uma questão política, mas não partidária”, diz o filho de Hagemann, que leva o nome do pai. “Sem a força do rádio, Brizola não teria conseguido arregimentar tanta gente”.

As transmissões eram feitas em vários idiomas — inglês, espanhol, até árabe. Uma das poucas mulheres na linha de frente, Erika Kramer, 84, então estudante de jornalismo da UFRGS, fazia a transmissão em alemão.

“Teve um período que ficamos três, quatro dias sem ir para casa, minha mãe estava desesperada, parecia que eu não ia voltar mais”, lembra ela.

Enquanto isso, Jango tentava costurar uma solução para voltar ao Brasil, sem risco de ser preso, e podendo assumir a Presidência. Em Montevidéu, no dia 1º de setembro, ele conversou com Tancredo Neves e aceitou o meio-termo de ceder ao parlamentarismo. O mineiro seria escolhido primeiro-ministro.

A solução não foi bem-aceita por quem lutou na linha de frente pela Legalidade, como lembra o jornalista Carlos Bastos, que dormia nas poltronas do palácio nos dias de trincheira. Para muitos, era uma traição.

Quando Jango chegou a Porto Alegre, frustrou a multidão que aguardava um discurso na praça, se limitando a apenas um aceno. “Foi a maior vaia que eu vi na minha vida”, diz Bastos.

Ele lembra que o fotógrafo da revista O Cruzeiro, Luiz Carlos Barreto, mobilizou outros jornalistas que participavam da cobertura para abordar Jango dentro da ala residencial do Piratini, onde ele ficou hospedado, e tentar demovê-lo da ideia de aceitar o parlamentarismo.

“Falou o Barretão, o Flávio Tavares e o Tarso de Castro. Jango não disse que ia aceitar, mas já deixou mais ou menos claro que iria, alegando que queria evitar derramamento de sangue e tal”, conta.

Quando a decisão foi comunicada a Brizola, o governador, que ocupava cinco, seis vezes ao dia os microfones da rádio da Legalidade, parou de falar nas transmissões, que seguiram no ar até Jango embarcar para Brasília.

Jango tomou posse no dia 7 de setembro, dia da Independência, sem a presença de Brizola. Seu voo para a capital federal ainda correu risco de ser abatido no ar, devido a uma conspiração de oficiais da FAB, conhecida como Operação Mosquito.

“Eu tenho clube, sou gremista doente, e tenho partido, sou PDT e era PTB. Sempre procurei a isenção [no jornalismo], mas no movimento da Legalidade, tenho que confessar, fui mais militante que jornalista”, diz hoje Bastos. “É um golpe militar que foi evitado por um civil”.

Na história brasileira, há uma confusão entre o papel real das Forças Armadas, de força para defesa externa do país, e a tentativa de agir como um poder, diz a professora da UFMG e historiadora Heloísa Murgel Starling. A resistência à posse de Jango foi mais um episódio a demonstrar isso.

“Mostra essa fragilidade, naquele momento, de um Congresso que está disposto a entender os militares como poder. O que eles tinham que ter dito ali era que não eram os ministros militares que tinham que aceitar [a posse]”, afirma ela.

“Os ministros vão reagir nessa confusão que é tão perigosa e tão desastrosa para a história do Brasil. Esse é um traço da República inteira, desde a sua implantação”.

A CAMPANHA DA LEGALIDADE E OS 14 DIAS QUE ABALARAM O PAÍS
25.ago.1961
Jânio Quadros surpreende e renuncia à Presidência, com sete meses de governo, enquanto o vice, João Goulart, está em visita à China
26.ago
É divulgado manifesto do marechal Henrique Lott a favor da posse do vice, contra a decisão do ministro da Guerra, marechal Odílio Denys, e em defesa da Constituição
27.ago
O governador do RS, Leonel Brizola, requisita formalmente a rádio Guaíba e fala sobre a tentativa de golpe dos ministros militares contra a posse de Jango. Jânio embarca no navio Uruguai Star para Londres
28.ago
Uma mensagem é interceptada por militares da FAB com ordem de bombardeio ao Palácio Piratini, sede do governo gaúcho. O general Machado Lopes, comandante do 3º Exército, comunica a Brizola o apoio à Legalidade, contrariando Denys. Surgem os Comitês de Resistência Democrática
29.ago
O governador de Goiás, Mauro Borges, declara apoio à campanha liderada por Brizola
30.ago
O Exército destitui Machado Lopes do comando do 3º Exército
31.ago
Depois de viagem conturbada de retorno, com várias paradas, Jango chega a Montevidéu, capital do Uruguai, a 800 km de Porto Alegre
1º.set
Em Montevidéu, Jango negocia com Tancredo Neves e aceita o parlamentarismo para poder garantir a posse, contrariando Brizola. O vice chega à capital gaúcha no mesmo dia
2.set
A emenda constitucional nº 4 é aprovada no Congresso e institui o sistema parlamentarista
3.set
Ministros militares defendem que todos os subordinados acatem as determinações do Congresso em relação à aprovação do parlamentarismo
4.set
Operação Mosquito, de oficiais da FAB, pretendia abater o avião de Jango antes de chegar a Brasília. Brizola avisa que não irá à posse presidencial
5.set
Jango chega a Brasília, 11 dias depois da renúncia de Jânio
6.set
Jango começa a formar os gabinetes de seu governo
7.set
O vice toma posse como novo presidente, sem a presença de Brizola

Folha  

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