CNJ foca em prisões abusivas por reconhecimento facial

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Foto: Reprodução

Não se sabe o número total, mas o noticiário está repleto de casos do gênero, que já ganharam uma normalidade apavorante. Brasileiros têm sido presos, processados e condenados a partir de sessões de reconhecimento que não seguem os padrões mínimos estabelecidos no Código de Processo Penal. É uma sucessão de prisões incorretas marcadas por um mesmo erro de origem.

Pessoas supostamente reconhecidas, inclusive por fotografias em redes sociais, um dia são intimadas a depor numa delegacia e no dia seguinte acordam num presídio, sob ordem judicial. São encarceradas sem outra prova adicional que reforce o alegado reconhecimento. Às vezes apenas com base na palavra de uma pessoa que, no calor dos eventos, foi induzida a apontar com convicção algo que nunca aconteceu.

A população negra é a mais atingida. Um levantamento feito em âmbito nacional pela Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro concluiu que houve decretação de prisão preventiva em 60% dos casos de reconhecimento fotográfico equivocado nas delegacias de polícia. Nos casos de reconhecimento errado, 83% vitimaram negros.

Um levantamento da “Folha de S. Paulo” em cem casos de prisões injustas no país indicou que 42% dos erros ocorreram por reconhecimentos mal conduzidos. Nesse conjunto de casos, 71,5% dos prejudicados foram pessoas negras.

Em junho passado, a organização não governamental Innocence Project Brasil, que atua na defesa de réus principalmente pobres para reverter condenações injustas, e dois parceiros peticionaram ao CNJ (Conselho Nacional de Justiça) a fim de solicitar a instalação de um grupo de trabalho que possa definir “regulamentação, parametrização, critérios de realização e valoração” de reconhecimento de pessoa sob suspeita de crime.

O pedido foi subscrito pela diretora do Innocence, Dora Cavalcanti, por Hugo Leonardo, presidente do IDDD (Instituto de Defesa do Direito de Defesa), e por Mauricio Dieter, professor de criminologia e coordenador do Centro de Pesquisa e Extensão em Ciências Criminais da USP (Universidade de São Paulo).

As entidades citaram que, nos Estados Unidos, o reconhecimento equivocado correspondeu a quase 30% de todas as condenações de inocentes revertidas naquele país de 1989 a 2019, “proporção que supera os 75% quando se consideram apenas condenações injustas pelo crime de roubo”. Apontaram ainda o Brasil não dispõe de protocolos que orientem o reconhecimento, “ficando a sua normatização a cargo exclusivo do CPP”.

A boa notícia veio no último dia 31. O presidente do CNJ e do STF (Supremo Tribunal Federal), Luiz Fux, acolheu a sugestão e determinou a instalação de um grupo de trabalho “com vistas a evitar condenação de pessoas inocentes”. Será chamado de “GT Reconhecimento Pessoal” e terá prazo de 180 dias.

Fux listou três atribuições do novo GT: “realizar estudos necessários ao diagnóstico dos elementos catalisadores da condenação de inocentes no sistema de justiça criminal brasileiro, por meio da atuação integrada entre a magistratura e parceiros estratégicos; II – sugerir proposta de regulamentação de diretrizes e procedimentos para o reconhecimento pessoal no país e a sua aplicação no âmbito do Poder Judiciário; e III – organizar publicação destinada ao aperfeiçoamento e à aplicação em ações de formação na temática”.

O presidente do CNJ escreveu ainda – em um reconhecimento público surpreendente – que “o reconhecimento pessoal equivocado tem sido uma das principais causas de erro judiciário, que faz com que inocentes sejam indevidamente levados ao cárcere”.

É um passo importante do CNJ no sentido de reconhecer e dar visibilidade ao problema e apontar soluções. O Judiciário já vinha dando sinais nesse sentido, sobretudo no STJ (Superior Tribunal de Justiça). Em outubro e dezembro de 2020, a Sexta Turma do tribunal e o ministro do STJ Rogério Schietti Cruz reafirmaram – o ponto de inflexão terá sido o julgamento do habeas corpus número 598.886/SC – que os atos de reconhecimento de suspeitos de crimes em todo o país passarão a ser anulados se não respeitarem as normas contidas no CPP (artigos 226 e 228). A decisão foi entendida por especialistas como uma advertência a delegados de polícia, promotores e juízes em todo o país.

Schietti também alertou que os reconhecimentos de suspeitos por fotografia não podem ser usados como prova no processo e são apenas atos antecedentes do reconhecimento pessoal. O ministro escreveu ainda que as observações contidas no CPP não são “mera recomendação” e devem sim ser seguidas à risca.

O CPP cita cinco passos para as sessões de reconhecimento, entre os quais: a pessoa que tiver que fazer o reconhecimento será, antes de qualquer ato, “convidada a descrever a pessoa que deva ser reconhecida”; a partir daí, a autoridade policial reunirá pessoas que tiverem “qualquer semelhança” com o suspeito descrito pela vítima e as colocará lado a lado para o reconhecimento.

O ministro fez o alerta ao mandar suspender o processo contra o pedreiro Robert Medeiros da Silva Santos, assistido pelo Innocence Project Brasil, que apontou erros no reconhecimento do acusado, conforme relatado pela coluna em dezembro de 2020. Na véspera do Natal, o STJ determinou a soltura de Robert, que estava preso desde novembro de 2018 em Dracena (SP).

Pela portaria do dia 31, Fux nomeou Schietti como o coordenador do GT, que será formado por juízes, membros do Ministério Público, integrantes do CNJ, um delegado, um policial militar e os autores do pedido de instalação do grupo.

No ofício enviado a Fux em junho, as entidades disseram que a decisão tomada pela Sexta Turma do STJ no julgamento do habeas corpus 598.886 “engendrou uma transformação paradigmática na jurisprudência brasileira: seis meses após o seu julgamento, o precedente já havia sido acolhido por ambas as turmas responsáveis pelo julgamento de matéria processual penal no STJ, e foi expressamente invocado em 59 novos processos que chegaram àquela Corte vindos de 16 das 27 federativas do país. Entre esses casos, a enorme maioria (80%) das decisões da Corte que enfrentaram o mérito do reconhecimento seguiram o precedente em sua integralidade”.

O ofício citou ainda uma pesquisa do Ministério da Justiça feita em 2015 sob coordenação da psicóloga Silvia Stein, segundo a qual “tanto na fase pré-investigativa (atuação da polícia assim que um crime é comunicado) quanto na investigativa, a prática de reconhecimento de uso mais comum no Brasil é a exibição unipessoal, que consiste na apresentação de um único suspeito para ser reconhecido pela vítima ou testemunha”.

A prática, segundo as entidades, é “criticada massivamente por especialistas, por seu caráter intrinsecamente indutivo e seu comprovado potencial de produzir reconhecimentos equivocados”.

“Além de esquecerem alguns detalhes do evento, vítimas e testemunhas de um crime podem lembrar-se de fatos que nunca ocorreram ou de pessoas que nunca viram, atribuindo a elas, de forma absolutamente não intencional, crimes que não cometeram. A inclusão de elementos inverídicos na memória original das vítimas e testemunhas pode ocorrer quando elas são expostas a informações divulgadas pela mídia, submetidas a procedimentos policiais indutivos – inclusive e especialmente reconhecimentos mal feitos – ou ainda por terem, espontânea e involuntariamente, criado memórias sobre coisas que nunca ocorreram”, escreveram as entidades.

Essa constatação, segundo as entidades, não está restrita à realidade brasileira. No mundo todo, agentes do sistema de Justiça hoje se preocupam com a “falibilidade da memória humana e seus impactos na produção de provas”. Países têm criado protocolos sobre o assunto.

“Os objetivos desses protocolos são 1) identificar as condições reais em que o reconhecedor teve contato com o autor do crime, a fim de avaliar os limites e possibilidades de sua colaboração para a elucidação da autoria delitiva; 2) identificar a ocorrência de possíveis induções (propositais ou acidentais) que tenham ocorrido no curso de um procedimento de reconhecimento; 3) avaliar a confiabilidade de um reconhecimento, permitindo que essa prova seja sopesada diante de outros elementos probatórios”, diz o ofício enviado a Fux pelo Innocence Project Brasil, IDDD e Dieter, da USP.

Uol  

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