Generais bolsonaristas de pijama se isolam no meio militar

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Foto: FABIO MOTTA / ESTADÃO

Os militares são “uma das categorias mais citadas e menos conhecidas da sociedade brasileira”. A frase é do antropólogo Gilberto Velho, que orientou um dos trabalhos mais importantes para que esse grupo fosse estudado – e compreendido – no País, que está sendo reeditado pela editora Zahar. Trata-se de O Espírito Militar, do antropólogo e professor da Escola de Ciências Sociais da Fundação Getulio Vargas (FGV), Celso Castro.

O leitor vai encontrar um novo prefácio na edição e um posfácio, quase um novo capítulo explicando aspectos da obra, seu impacto e destino nas ciências sociais e na caserna. Os “nativos” estudados por Castro em 1987 e 1988 na Academia Militar das Agulhas Negras (Aman) são agora generais do Exército brasileiro e participam da geração que viu, não só ascensão de Jair Bolsonaro ao poder, bem como à volta dos militares – ou de uma parte deles – à política, depois que o general Eduardo Villas Bôas usou sua conta no Twitter para pressionar o Supremo Tribunal Federal, em 2018, na véspera do julgamento do habeas corpus de Luiz Inácio Lula da Silva.

É sobre as características, diante do destino dessa geração de “nativos”, que Castro se debruça em seus dois novos textos. O primeiro é chamado pelo autor de “para entender o mundo militar”. Castro diz estar certo de que seu livro, reeditado agora 31 anos depois da primeira edição, ajuda a compreender o tempo presente ainda que reconheça a escassez de dados sobre o mundo militar e a mudança que nele se passou depois de 33 anos de afastamento desse atores do palco principal da política nacional.

Em um País em que diariamente os analistas falam em polarização, Castro nos mostra como se dá a construção da identidade militar. Primeiro, trata do processo de endogenia dos oficiais. Metades dos cadetes que ingressaram na Aman entre os anos 1984 e 1985 eram filhos de militares. Em 1993, esse número chegava a 60% – fora de 20% nos anos 1940. O processo se mostrava ainda mais intenso quando se levava em consideração de que apenas 8,7% dos cadetes chegavam à Aman por meio de concurso de admissão, sem passar por nenhum estabelecimento militar anterior.

Para o pesquisador era evidente que esse recrutamento endógeno e o isolamento posterior do militar, com sua socialização sempre ligada à caserna, onde suas mulheres e filhos, escolas, hospitais, casas, transferências, regras e regulamentos afetavam a visão de mundo e a trajetória desses homens e mulheres. Ela criava o que um de seus futuros entrevistados – o general Eduardo Villas Bôas – chamaria de “círculo de giz”, separando-os de uma outra vida, chamada pelos militares de mundo civil.

É aqui que Castro chega à conclusão de que a construção dessa identidade, opondo o mundo da caserna ao mundo civil, faz com que o processo de se tornar militar envolva “necessariamente a invenção do civil”. E esse civil seria mais displicente, desordeiro, corrupto e menos patriota, organizado, dedicado à comunidade e mobilizado para o bem comum. O linguajar incorreto, a apatia e o uso de gírias acompanhariam a formação nas faculdades “lá de fora” de quem é e sempre será o “paisano”.

“O ‘civil’ é uma invenção dos militares. Não sou civil a não ser quando estou diante de militares e quando sou assim classificado por eles. Se eu tiver, por exemplo, de fazer uma lista dos principais elementos que definem minha identidade, ‘civil’ não estaria entre eles. Posso identificar-me como homem, brasileiro, carioca, antropólogo, pai, professor, vascaíno, vegetariano e uma dúzia de outros atributos sem lembrar de acionar uma identidade civil”, escreve o autor.

Castro mostra como a interação social endógena é intensamente estimulada no Exército – pode-se estender esse universo com algumas especificidades à Marinha e à Aeronáutica. Entre os militares, além do ambiente de trabalho, os locais de moradia, de lazer e de estudo são também, em grande medida, compartilhados. O antropólogo lembra ainda o papel “das esposas (e, em certa medida, dos filhos) para a construção da chamada ‘família militar'”. “Há, inclusive, uma reprodução informal da hierarquia dos maridos entre as esposas de militares.”

Castro chama a atenção para um fato pouco percebido pelo mundo civil: a dificuldade de se conhecer o “militar” passa por barreiras de pertencimento ao grupo, de identificação e aceitação do “civil”, do antropólogo como uma espécie de parente do “nativo”. O parentesco que permite o diálogo entre as identidades distintas só seria possível quando parte das barreiras se liquefaz? O “militar” só permitiria a alguém de fora conhecer o seu universo quando a pessoa – o acadêmico, o político ou o jornalista – não é mais vista como uma ameaça à estabilidade de seu mundo?

O desconhecimento se torna um duplo. Pois ao criar o civil, o militar também deixa de conhecer esse mundo. Esse isolamento explicaria por que um importante general do Palácio do Planalto foi capaz de afirmar à coluna que a Faculdade de Direito do Largo São Francisco era dominada por esquerdistas. Só alguém distante do “mundo civil” seria capaz de cometer tal erro.

Antes dos anos 1970, durante muito tempo se buscou explicar os militares por meio da teoria do dualismo das sociedades dependentes latino-americanas. Nesse processo, os militares, identificados com as classes médias, eram descritos no papel de vanguarda das reivindicações burguesas durante as primeiras décadas da República. Mas as contradições da sociedade de então não se explicavam pelo dualismo, bem como os militares não tinham um programa político próprio. Nem os tenentes, após 1930, tiveram papel autônomo em relação ao governo de Vargas, como mostram, aliás, autores como Boris Fausto e Anita Leocádia Prestes.

Para compreender os militares e seus papéis na República – e também no governo Bolsonaro – é preciso partir de suas entranhas, de seu espírito, sem o qual tudo parecerá rumores e conspirações, arroubos e fantasias, onde o que cada vez mais se conhece e se qualifica como “bolsonarismo” servirá mais para confundir do que para explicar o tempo em que vivemos. Ao tratar desses homens e de seu tempo, diante da urgência da opinião e da análise de conjuntura, lembradas por Castro, é necessário não perder de vista o que Marc Bloch escreveu em Apologia da História.

Em meio ao contínuo processo de desencatamento do mundo, não é só o historiador que deve ter ao menos uma paixão, resumida em uma palavra, que dominava e iluminava o trabalho de Bloch: “compreender”. Compreensão do homem e de seu tempo em meio ao desafio posto pela justiça e pela verdade. Jacques Le Goff, outro historiador, completou a proposta de Bloch: “compreender, portanto, não julgar”. Eis um dos grandes desafios dos que hoje se debruçam sobre os militares. E destes para conhecer o “mundo de fora”. A obra de Castro, certamente, torna essa tarefa mais fácil.

Estadão  

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