Investigadores do caso Marielle são excluídos de depoimento de viúva de miliciano

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Foto: Reprodução

Sob a chancela da cúpula da Polícia Civil e da Procuradoria-Geral de Justiça do Rio, uma delegada foi ao condomínio de luxo onde cumpre prisão domiciliar a viúva do miliciano Adriano Nóbrega para tratar de sua proposta de delação premiada sobre o chamado “escritório do crime” no Rio.

Embora o duplo homicídio da vereadora Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes estivesse na pauta de um pretenso acordo de delação, os encontros com Júlia Lotufo, 29, aconteceram sem que o delegado e as promotoras responsáveis pelo caso tivessem conhecimento.

Em maio e junho deste ano, foram ao menos dois encontros em um condomínio na orla da Barra da Tijuca, zona oeste do Rio. Titular da delegacia de Homicídios da Capital (DHC) à época, Moisés Santana disse à Folha que desconhecia a ocorrência dessas reuniões.

“Desconheço. E, como não sou mais o delegado titular, não é mais minha atribuição”, afirmou Santana, que foi exonerado do cargo em 6 de julho.

As conversas com Júlia Lotufo foram conduzidas pela delegada Ana Paula Costa Marques de Faria. Nome de confiança do secretário de Polícia Civil, Allan Turnowski, ela é chefe da Coordenadoria de Investigação de Agentes com Foro (Ciaf).

A atribuição da Ciaf é otimizar as investigações de crimes cometidos por pessoas com prerrogativa de foro no estado do Rio, graças a um convênio entre polícia e Ministério Público do Rio.

Mas Ana Paula permaneceu à frente das tratativas com a viúva do miliciano mesmo depois de constatada a inexistência de agentes com prerrogativa de foro entre seus potenciais delatados.

Em nota, a Secretaria de Polícia Civil afirmou que “ameaças à segurança e os problemas com o funcionamento da tornozeleira da presa criaram a necessidade das idas da delegada e membros de sua equipe ao local onde Júlia cumpre prisão domiciliar”.

Ainda segundo a nota, “todas as medidas adotadas foram comunicadas às autoridades competentes”.

Além das oitivas em domicílio, equipes do CORE (Coordenadoria de Operações e Recursos Especiais) se revezam na garagem do prédio onde Júlia mora.

Segundo relatos, após as conversas com Júlia, a delegada sugeriu que as promotoras Simone Sibilio e Letícia Emile ouvissem a versão da viúva sobre o assassinato de Marielle.

A tese era a de que o crime fora encomendado por um consórcio de contraventores. Ainda segundo esses relatos, as promotoras concordaram com a oitiva, contanto que fosse realizada nas dependências do Ministério Público e com autorização judicial, o que aconteceu em 9 de junho.

Após a audiência, as promotoras —que desde setembro de 2018 integravam a força-tarefa que investiga o assassinato de Marielle— teriam apontado inconsistências na narrativa de Júlia.

No dia seguinte, o caso foi encaminhado ao promotor Luís Augusto Soares que atua na 1ª Vara Criminal Especializada, onde tramita o processo contra viúva.

No dia 8 de julho, a viúva de Adriano Nóbrega prestou um depoimento com a participação da delegada Ana Paula. Dois dias depois, as promotoras deixaram a força-tarefa por suposta interferência nas investigações.

Cerca de duas semanas depois, o advogado Demóstenes Torres incluiu o nome de um desembargador entre os alvos da delação de Júlia, o que fez com que o caso fosse remetido à PGR (Procuradoria-Geral da República).

Segundo a assessoria da Secretaria de Polícia Civil, “a defesa da viúva Júlia Lotufo procurou a delegada Ana Paula Costa Marques, coordenadora da Ciaf, tendo esta comunicado o fato ao secretário de polícia e ao assessor-chefe da atribuição originária do Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro”.

A delegada Ana Paula, diz a nota, acompanhou as oitivas realizadas pelos promotores no Ministério Público.

Júlia é acusada de comandar a lavagem de dinheiro dos bens do miliciano, morto em fevereiro de 2020. O ex-capitão foi morto num sítio em Esplanada (170 km de Salvador) em 9 de fevereiro de 2020 numa operação da Polícia Militar da Bahia com a participação de agentes fluminenses.

Segundo denúncia do Ministério Público, coube a ela a administração das atividades ilícitas de Adriano. No dia 22 de março, com a deflagração da Operação Gárgula, ela teve a prisão decretada por associação criminosa, agiotagem e lavagem de dinheiro.

Júlia ficou foragida por um mês. Ela se apresentou em 26 de abril, quando sua prisão foi convertida em domiciliar, com uso de tornozeleira eletrônica. À época, seu advogado era Délio Lins e Silva.

Demostenes assumiu a defesa de Júlia na primeira semana de julho, quando ela já negociava com o Ministério Público do Rio de Janeiro os termos de um acordo de delação premiada.

Adriano foi companheiro de batalhão de Fabrício Queiroz, amigo do presidente Jair Bolsonaro e apontado como operador financeiro de uma suposta “rachadinha” no gabinete de Flávio Bolsonaro (Patriota-RJ) na Assembleia do Rio.

O miliciano teve a ex-mulher e a mãe empregadas no gabinete de Flávio, ambas denunciadas junto com o senador sob acusação de envolvimento no esquema de desvio de dinheiro público.

Oito meses após a morte do marido, Júlia casou-se com Eduardo Vinícius Giraldes Silva. A Folha apurou que o marido negociava os honorários com Demostenes, que na sexta-feira (27) deixou a defesa de Júlia por falta de pagamento.

Relatório da PF, ao qual a Folha teve acesso, aponta a relação de Giraldes com milicianos e contraventores, entre eles o bicheiro Rogério Andrade, foragido após ter prisão decretada.

Procurado para explicar por que a delegada foi encarregada de ouvir Júlia sem conhecimento de promotores, o “Ministério Público do Estado do Rio de Janeiro informa que não se pronuncia nem divulga qualquer dado relacionado a colaboração premiada, nem mesmo a existência de simples tratativa para sua realização, por expressa vedação legal.”

O advogado Délio Lins e Silva Jr, que acompanhou as primeiras reuniões entre Júlia e a equipe da delegada Ana Paula, disse que a relação advogado cliente é sigilosa. “Não tenho autorização da minha ex-cliente para comentar qualquer detalhe de sua defesa.”

A delegada Ana Paula Costa Marques não atendeu à reportagem.

Folha de S. Paulo

 

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