MP receberá “orientação” do Exército sobre “relatórios de inteligência”

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Foto: Agência Brasil/CNMP

A Escola de Inteligência Militar do Exército, com sede em Brasília, vai preparar membros do Ministério Público Federal (MPF) para produzirem relatórios de inteligência.

O evento, denominado “Estágio de Planejamento de Inteligência”, reunirá, em outubro, representantes dos Grupos de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado (Gaecos) e das comissões provisórias instaladas por Augusto Aras, procurador-geral da República.

Esses grupos, previstos desde 2013, foram ativados no Ministério Público Federal (MPF) depois da desmontagem das forças-tarefas da Lava Jato, em 2020.

A atividade envolvendo o Exército é desdobramento da aproximação do MPF com órgãos de inteligência através do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP).

Em 4 de maio deste ano, foi firmado um Acordo de Cooperação Técnica (ACT) entre o CNMP e a Agência Brasileira de Inteligência (Abin), que sucedeu ao Serviço Nacional de Informações (SNI), órgão da ditadura militar. A Abin é vinculada ao Gabinete de Segurança Institucional da Presidência da República.

O objetivo anunciado é estimular o intercâmbio de informações e disseminar no MP metodologias da doutrina de inteligência. Os membros do MP disporão de plataformas de comunicação desenvolvidas pela Abin e telefonia portátil com criptografia. Os ramos e unidades do Ministério Público poderão aderir ao acordo de cooperação técnica, por meio de termo de adesão. Vários MPs estaduais já aderiram.

O CNMP informou ao Blog que seria “inconcebível enfrentarmos as grandes pautas que envolvem a segurança pública e o meio ambiente, ainda com o constante fluxo migratório das facções criminosas, sem um mínimo de troca de informações e projeções de cenários”. [veja a íntegra da manifestação do conselho no final deste post].

O conselho não forneceu cópia do acordo –disponível na internet– sob a alegação de que o documento é sigiloso, pois contém dados sensíveis.

Membros do MP e especialistas consultados pelo Blog consideram arriscado misturar atividades de investigação e de inteligência. Alertam para o risco de violação de direitos fundamentais e perseguições por motivos políticos.

“Tenho muito receio disso. Inteligência e investigação são atividades que deveriam ser separadas. Têm escopos incompatíveis entre si”, diz o subprocurador-geral aposentado Eugênio Aragão, ex-ministro da Justiça no governo Dilma Rousseff.

“Enquanto a investigação se concentra sobre fatos pretéritos de relevância para estabelecimento de responsabilidade individual ou corporativa, a inteligência foca em cenários futuros para avaliar riscos. Juntar os dois pode levar à criminalização de cenários e atores, bem como à alimentação de investigações com conhecimento de inteligência obtido por vias que não se coadunam com o devido processo legal.”

Segundo Aragão, “haveria uma tendência de incrementar atividade conspirativa entre aqueles responsáveis pela persecução penal”. “Nós já vimos esse filme antes. No Brasil e em outros países, sempre levando ao prejuízo das liberdades individuais”, diz.

O presidente da Associação Nacional dos Procuradores da República (ANPR), Ubiratan Cazetta, diz que “o mundo da inteligência envolve troca de informações”. “Como órgão de classe, acompanhamos a atuação do Conselho Nacional do Ministério Público”, diz.

Sobre a possibilidade de distorções no cumprimento do acordo, o presidente da ANPR afirma: “Temos algum conforto, pois qualquer coisa que venha a ser feita depende de ordem judicial. O CNMP não é órgão de execução judicial”.

Dados obtidos através do acordo serão usados pela Abin para pesquisar antecedentes de indicados a altos cargos na administração pública federal.

A Abin já vinha realizando intercâmbio de dados com Ministérios Públicos Estaduais, de forma pulverizada. O acordo com o CNMP alcança o MPF.

Segundo o pacto firmado em maio, “a centralização desse modelo de cooperação no CNMP interessa à Abin, tendo em vista sua atribuição constitucional de exercer o controle da atividade administrativa e correicional do Ministério Público do Brasil”.

Uma resolução assinada pelo ex-PGR Rodrigo Janot, em 2016, estabeleceu que o CNMP deve “firmar instrumentos de cooperação técnica com o Conselho Nacional de Justiça, com o Poder Judiciário, com órgãos de inteligência nacionais e internacionais e com outras instituições”.

Em seu primeiro mandato, Augusto Aras militarizou o CNMP. Ele defendia uma “democracia militar” antes de assumir o cargo. Aras inovou ao nomear secretário-geral do CNMP Jaime de Cássio Miranda, ex-chefe do Ministério Público Militar (MPM).

O acordo de cooperação com a Abin foi firmado pelo conselheiro do CNMP Marcelo Weitzel Rabello de Souza, por delegação de Aras, presidente do conselho. Weitzel foi procurador-geral da Justiça Militar entre 2012 e 2016, ocupa a vaga do MPM no conselho e preside a Comissão de Preservação da Autonomia do Ministério Público.

Um ano atrás, quando Aras nomeou Wilson Roberto Trezza –ex-diretor-geral da Abin– membro colaborador do CNMP, o conselho informou que a nomeação atendia ao pedido de Weitzel. Na ocasião, conselheiros conheceram o sistema Argus, do MPM, que faz o cruzamento e análise de dados de quebras de sigilos bancários autorizados pela Justiça.

Pela Abin, assina o acordo o diretor-geral da agência, delegado da Polícia Federal Alexandre Ramagem. Em abril de 2020, o ministro do STF Alexandre de Moraes suspendeu a nomeação de Ramagem para a diretoria-geral da PF com base em afirmações de que Bolsonaro pretendia usar a PF, um órgão de investigação, como produtor de informações para suas tomadas de decisão.

Moraes entendeu que a PF não é um “órgão de inteligência da Presidência da República”, mas sim “polícia judiciária da União, inclusive em diversas investigações sigilosas”.

Ramagem chefiou a equipe de segurança de Bolsonaro durante a campanha eleitoral de 2018. Tornou-se amigo da família e virou diretor-geral da Abin. O responsável pelo acordo da Abin com o CNMP será o delegado da PF Carlos Afonso Gonçalves Gomes Coelho, atual secretário de Planejamento e Gestão da agência, espécie de braço-direito de Ramagem.

O promotor de Justiça Militar Nelson Lacava, membro auxiliar da comissão presidida por Weitzel no CNMP, foi designado para gerenciar as atividades e zelar pelo acordo.

Promotores e procuradores ouvidos pelo Blog –que pediram para não ser identificados– dizem que não está claro qual o propósito do convênio entre a CNMP e a Abin. Entendem que a instituição de controle externo do MP não pode ser influenciada por órgão de informação. Órgãos públicos não precisam de acordo para colaborar, mantida a atribuição de cada um, dizem.

“O Ministério Público sempre teve relações institucionais com os órgãos de segurança, mais com as polícias (federal, civil e militar) e menos com a Abin”, diz Ricardo Prado Pires de Campos, presidente do MPD – Movimento do Ministério Público Democrático.

“Os órgãos de investigação e de informações podem colaborar com o Ministério Público, seja no desenvolvimento por busca de provas, seja em outras matérias de interesse comum das instituições. O risco, todavia, é a utilização política desse estreitamento de interesses. Não pode se transformar em mecanismo de perseguição política de adversários”, afirma Campos.

O advogado Airton Florentino de Barros, fundador e ex-presidente do MPD, manifesta maior ceticismo. “Considerando os péssimos precedentes dos antigos serviços de inteligência no país, que só serviram para a manutenção das ditaduras, é demasiadamente preocupante o uso indiscriminado de bancos de dados pelas polícias, Ministério Público e Judiciário, num Estado já por demais policialesco. É que agentes públicos poderiam explorá-lo no interesse pessoal, para indevidos favorecimentos ou perseguições”, diz.

“Bancos de dados deveriam permanecer na sua origem, sob a responsabilidade do órgão incumbido de sua custódia, com informações fornecidas sempre de maneira oficial, para finalidades específicas e expressamente declaradas pela autoridade requisitante. Só assim se pode forçar o uso exclusivamente oficial das informações, em investigações efetivamente legítimas”, diz o advogado.

“A aproximação do MP a órgãos de informação não seria nociva se trouxesse melhora nos indicadores sociais da região observada. Entretanto, quanto mais o MP se aproxima de órgãos policiais, todos os indicadores pioram, o que aponta para o uso da informação como instrumento de mero poder pessoal, a serviço da vaidade dos agentes, certamente caminho para o abuso”, afirma Barros.

O acordo entre o CNMP e a Abin foi firmado meses depois do enterro da Operação Lava Jato. Como este Blog registrou, a tentativa de Aras de obter acesso a dados e informações sob sigilo judicial foi o estopim da renúncia coletiva das forças-tarefas no Paraná, São Paulo e Distrito Federal.

Sob o título “Operação tapa-buraco“, o Blog publicou em julho uma série de posts sobre a iniciativa do MPF de recuperar os prejuízos com o esvaziamento da Lava Jato.

A PGR queixava-se das “negativas” dos procuradores em atender aos pedidos de acesso às informações, o que seria uma “afronta ao princípio da unidade do Ministério Público”. A procuradoria-geral entendia que as forças-tarefas “não podem ser compreendidas como órgãos estanques”.

Segundo os membros da força-tarefa de São Paulo, “o princípio da unidade não leva à permissão de que dados, cujo sigilo é imposto por lei, sejam compartilhados entre membros do Ministério Público sem a imprescindível autorização judicial, em atendimento ao princípio da reserva de jurisdição”.

Doze membros da força-tarefa do Rio de Janeiro sustentaram que Aras “não tem poder hierárquico algum para requisitar informações ou ditar regras aos procuradores”.

“O que se pretende é uma verdadeira devassa, com todo o respeito. E isso, ao contrário do que argumenta a PGR, não foi autorizado pelo Plenário do Supremo”, concluíram.

A resistência ao modelo de Aras foi reafirmada quando os procuradores regionais da República que atuam na área criminal no TRF-4, corte que julga os recursos da Lava Jato, não quiseram integrar o grupo de combate ao crime organizado no Rio Grande do Sul (Gaeco/RS).

O acordo firmado entre o CNMP e a Abin considera a “impossibilidade de utilização pelo Ministério Público de Relatórios de Inteligência para fins de instrução processual, ainda que findo o prazo legal para a classificação sigilosa a eles atribuída”.

Agentes, membros, servidores, empresários, estagiários, bolsistas e colaboradores deverão ser submetidos à assinatura de um Termo de Compromisso e Manutenção de Sigilo.

O produto final do acordo, ainda segundo o documento firmado em maio, é “o alinhamento entre a Abin e o Ministério Público, no desempenho da atividade de inteligência e na proteção de conhecimentos sensíveis relativos aos interesses e à segurança do Estado e da sociedade.”

Por intermédio da Assessoria de Imprensa do CNMP, a Comissão de Preservação da Autonomia do Ministério Público (CPAMP) prestou as seguintes informações:

O propósito do Acordo de Cooperação Técnica entre CNMP e ABIN é promover a capacitação e integração do Ministério Público e do Sisbin [Sistema Brasileiro de Inteligência] na atividade de inteligência. Não há intenções encobertas em nenhuma ação do Conselho Nacional do Ministério Público.

Houve delegação do procurador-geral da República, Augusto Aras, para o ato [ser assinado pelo conselheiro Marcelo Weitzel]. Havia diversos acordos de cooperação de diversos ramos nesse sentido. A ideia foi criar um ACT guarda-chuva para abranger todo o Ministério Público brasileiro e propiciar, inclusive, uma melhor relação entre a Abin e o Ministério Público Brasileiro.

Inteligência trabalha com cenários e produção de conhecimento. Considerando que o Ministério Público tem como uma de suas atribuições a defesa dos interesses transindividuais e individuais indisponíveis e é o titular da ação penal, inconcebível enfrentarmos as grandes pautas que envolvem a segurança pública e o meio ambiente, ainda com o constante fluxo migratório das facções criminosas, sem um mínimo de troca de informações e projeções de cenários.

Folha  

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